Por Victor Faria
Eu
Eu estava preocupado com meu carro, a minha mala e com os meus pertences. Quando o pesado portão de ferro se abriu, um sujeito pediu meus documentos e a chave do carro. Apontou a recepção. O portão se fechou, deixando o mundo lá fora.
– Tire a roupa!
– Como, senhora?
– Fica de cueca e sobe ali.
Uma enfermeira, talvez. Eu já conhecia todo o lugar com o gerente de futebol daqui.
– Sobe ali.
Num negócio que parecia tudo, menos uma balança. Era, era uma balança.
– Agora fica parado ali, que eu vou checar sua altura.
– Esses fios todos são para quê?
– Eletro. Deita ali, Walter.
Como ela já sabia meu nome?
Devo confessar que eu estava com a meia de ontem e não tinha tomado banho naquele dia. Havia chegado de longa viagem. Suado. A noite anterior…
Minha meia estava fedendo. Pra valer. Ela pediu que eu tirasse a meia também. Não sei se para o exame geral ou pelo exame geral particular ao qual ela já havia se submetido.
– É o seguinte, a minha mala… O refrigerante, sabe?
– Não fala nada agora.
Meu Deus, onde é que estou?
– Agora você vai soprar aqui. Puxa o ar, segura e solta com toda a força aqui neste tubo. Isso… Isso. Assim! Agora solta!
Soltei, fiquei tonto, disfarcei.
– Agora pode ir para o quarto.
– Claro.
Era um fim de tarde de uma quarta-feira de janeiro. Entrei nas acomodações do Caju e estava tudo lá, bonitinho. Mas, o refrigerante, eu nunca mais veria.
Bomba
O que mais tem me impressionado aqui, neste primeiro dia, é como todos os eles, os funcionários, os médicos, são eficientes e simpáticos.
Juro que logo nas primeiras horas eu estava achando meio demais, meio viadagem. Comecei achar que era falso. Cortesia demais pro meu gosto. Depois eu vi que era assim mesmo.
Você pode estar onde estiver que te acham. Se você tem uma entrevista ou consulta com alguém, eles te localizam.
Tem uma máquina aqui, parecida com uma bomba, aquela bomba de comer. Você entra nela, ela se fecha, acendem umas luzes lá dentro. Sabe pra quê? Bronzear. Pode?
Pois eu estava lá dentro, numa boa, pegando uma cor e ouço lá de fora.
– Walter, psiquiatra daqui a meia hora.
Grito:
– Como é que você sabe que sou eu que estou aqui?
Ela já tinha ido. Relaxei e me queimei.
Apelido
Acho que é o apelido que salva qualquer carreira. A primeira coisa que os jogadores devem providenciar, antes mesmo dos apetrechos esportivos, é o apelido. E tem que ser apelido novo, não vale aumentativo ou diminutivo.
Quer coisa mais gostosa do que ser chamado pela massa de Quico ou Tufão?
Rodrigueanos
Os grandes personagens do mestre Nelson Rodrigues são gordos e boleiros. Os melhores, os mais espertos. E debochados.
Curinga
Estou pensando em convidar o Anderson Lopes para me fazer uma visita.
Envelhescência
Se você é um jogador de futebol entre os 26 até os 35 anos, preste bem atenção ao que se segue. Se você for mais novo, preste também, porque um dia vai chegar lá. E, se já passou, confira.
Sempre me disseram que a vida do homem se dividia em quatro partes: infância, adolescência, maturidade e velhice. Quase correto. Esqueceram de nos dizer que existe a “envelhescência” que nada mais é que uma preparação para entrar na aposentadoria, assim como a adolescência é uma preparação para a maturidade.
E, se você está em plena envelhescência, já notou como ela é parecida com a adolescência? Coloque os óculos e veja como esse nosso estágio é maravilhoso:
- Assim como os adolescentes, os envelhescentes também gostam de meninas de vinte anos.
- Os adolescentes mudam seu modo de jogo. Nós, envelhescentes, também. Mudamos o nosso ritmo de jogo, nossa cadência. Os adolescentes querem jogar mais rápido; os envelhescentes querem jogar mais lentamente.
- Os adolescentes vivem a sonhar com o futuro; os envelhescentes vivem a falar do passado. Bons tempos.
- Os adolescentes não tem ideia do que vai acontecer com eles daqui a vinte anos. Os envelhescentes até evitam pensar nisso.
- Ninguém entende ambos. Irritadiços, se enervam com pouco. Acham que já sabem de tudo e não querem palpites em suas jogadas.
- Quase todos os adolescentes acabam sentando no banco de reservas ou mesmo junto à torcida nas arquibancadas. Os envelhescenes, também, a contragosto, idem.
- Ambos bebem escondido
Tardinha
Caminhar muito no campo à tardinha, se não pra jogar bola, é infelicidade.
Poluções
As pessoas aqui costumam, como nos internatos, ter poluções noturnas.
Mas, em vez de sonharem com atrizes e modelos, o objeto dos desejos oníricos, em geral, é o misto de frutos do mar, risoto com molho de ossobuco, as empadinhas de frango, rosbife com salada de batata, rabada.
Tem gente que tem orgasmo durante o sono ao sonhar com copos de Coca-Cola vermelhos, do guaraná Jesus (melhor que o Antártica), da Soda bem gelada, das variações de maçã, laranja e uva.
Meu querido e paciente leitor: me desculpe as tentações acima, mas não resisti. Já estou aqui há sete dias. Não custa sonhar.
Coca
Um jornalista senta-se na minha mesa para o jantar. Dois minutos depois, como é normal aqui, a gente já estava íntimo.
Ele:
– Não sei o que estou fazendo aqui. Aqui não tem nem sexo, nem maconha, nem Coca.
Olhei bem pra ele. Respondi.
– Olha, Coca eu não tenho, mas agora o resto…
Ele não entendeu a minha mensagem. Ou será que entendeu e me achou ainda um pouco inchado?
Atração
Toda noite, entre o jantar e a ceia (ceia?), tem uma atração no restaurante que vira bar.
E não é que é maravilhoso? Fica todo mundo bêbado. Descobri aqui que o que embriaga não é o álcool. São o bar e as companhias. O clima.
Juro que, depois de quatro refrigerantes diet, eu estava numa boa. Aliás, todo mundo estava numa boa.
Curinga II
O Anderson Lopes topou me visitar. Deve vir pra cá nos próximos dias.
Novo
No quarto dia aqui, comecei a perceber mudanças na minha cabeça. Estava mudando e para melhor. Estava começando a gostar de mim. As meninas me chamaram de gato.
Coisa que não ouvia há muito tempo.
Não vinha gostando de mim.
Estou descobrindo o velho (novo) Walter que tinha dentro de mim.
Alguém disse que não é?
Bem
Dele se pode dizer que está bem de vida, mas não necessariamente bem na vida.
Jardim
– Centro de treinamento?
– Campo de concentração?
– Colégio interno?
Nada disso. Apenas:
– Um adorável Jardim-de-Infância.
Livro
Estou aqui escrevendo este livro, que é o tipo de livro que eu gostaria de receber ao entrar aqui.
Bronze
Entro na máquina de bronzear. A sensação é boa. Momento para pensar em nada. Coisa de rico, penso. Deve ter burguês em casa com essa máquina.
Nada de ir pra praia, se besuntar todo, crianças jogando areia no seu corpo, o sol que some, o vento frio…
Rico sabe das coisas.
O Anderson me liga do celular. Oito e meia da noite.
– Tô levando a muamba. Como eu escondo?
– No carro, não revistam.
– Certeza?
– Absoluta!
– Olha…
Revista
Desde que eu entrei aqui, que me falavam da revista das malas. Depois de alguns exames, finalmente me reencontrei com as minhas malas e o meu computador.
Entramos no meu dormitório, eu a funcionária da recepção, para a revista. Entramos e eu logo contei as malas e as sacolas.
– Está tudo certo, disse eu.
– Mas eu ainda não fiz a revista.
– Mas eu estou lhe dizendo. Está tudo aqui, tudo certo. Muito obrigado.
– Acho que o senhor não está me entendendo. Eu é que tenho que revistar suas malas.
– Como?
– É que tem pessoas que trazem coisas proibidas pra cá.
– Você está se referindo a drogas?
– Outro tipo de drogas.
– Não acredito… Fique à vontade.
Mas ela não parecia nenhuma generala repressora. Para falar a verdade, era uma gracinha que estava ali olhando as minhas cuecas e demais intimidades.
Achou cinco latas de refrigerante que foram devidamente confiscadas.
Cabeça
A grande maioria dos jogadores que estão aqui querem cuidar do corpo. Mas o mais incrível é que a cabeça é que acaba sendo mais cuidada.
Muda tudo lá dentro. Aliás, quem está a fim de cuidar do corpo, supõe-se que já tenha uma boa cabeça.
Eu, por exemplo, comecei a perceber que estava fazendo a barba todos os dias. Era desleixado com ela, não com a barba, mas com a cabeça. Comecei a gostar de mim novamente.
A calma volta. Nada de pressa.
Sem pressa. Pra que pressa, gente? Calma…
E amarrar a chuteira devagarzinho, puxando cordinha por cordinha? Caprichar no laço. Depois dar uma olhadinha pra ele e sacar que ele também precisa de um trato.
Vou dar uma lavadinha nele quando voltar.
Jô
O Jô Soares é ótimo. É ótimo ir pra cama com ele. Mas é melhor ainda ir pra cama sem ele. Antes dele.
Afinal, gordo é o que não falta por aqui. E você sabe: gordo não ri, gordo gargalha. E como gargalha gostoso.
Mentira
Tomar água entre as refeições ajuda a emagrecer.
Culpa
– Culpa?
Eu estava diante da psicóloga pela primeira vez.
– Culpa.
– Culpa de quê?
– Trabalho pouco e ganho muito.
– E você sente culpa por causa disso?
– Imensa.
– Há quanto tempo você trabalha?
– Desde os catorze.
– Quantas horas você trabalha por dia?
– Duas. Quando tem jogo. Tem dia que eu não faço nada. Fico com culpa de me divertir, sabe? Fico vendo as pessoas trabalharem o dia inteiro. Este país de merda. Todo mundo ganha pouco. E eu jogando bola, indo pra praia… Um dia cheguei a conversar isso com o Chico Buarque. Que não deve “trabalhar” nem duas horas por dia. Me disse que sentia culpa por muitos anos. Depois relaxou.
– Isso deve acontecer com os artistas, com todos os jogadores.
– Eu seu disso.
– Talvez uma boa terapia…
– Não sei, acho que vou morrer com essa culpa.
Curinga IV
Anderson já está na portaria. Vou até lá.
– E então?
– Debaixo do banco do carona.
– E onde está o carro?
– O manobrista foi estacionar.
Eis que entra o Juca, o manobrista. Na mão direita as chaves. Na esquerda, dentro de uma sacola, ela. A garrafa de refrigerante!
Não diz nada. Entrega para a recepcionista, que pega a garrafa e some com ela. Eu e o Anderson ficamos olhando a garrafa entrar numa gaveta, uma chave a trancar.
Eu e Anderson nos olhamos. Tristes. Nunca havíamos vivido tal situação.
Despedida
Quase todo dia chega um e outro vai embora. E a despedida chega a ser comovente.
Há trocas de contatos, endereços e números de telefone. Lágrimas rolam.
É incrível. São pessoas que nunca se viram. Passaram de uma semana a quinze dias juntos.
Parece que a amizade vai ser para o resto da vida. Com as jogadas ensaiadas ali.
Diet
No lanche da tarde, um dia serviam um quarto de tomate, no outro um palito de cenoura ou uma gelatina diet.
Lema
O que nós oferecemos é somente ensinar a jogar. Treinar dia a dia é um trabalho só seu.
Governo
Seria interessante que o governo criasse locais populares, com a infra daqui. Não para os governantes, mas para toda a população.
Todo brasileiro deveria ter essa experiência que estamos tendo aqui.
Fica uma sugestão: em vez de mandar o jovem servir o exército, manda pra um lugar assim. Mesmo porque não temos que fazer guerra com ninguém.
A não ser contra o nosso corpo e a nossa cabeça. Para encontrar, finalmente, a paz interior.
Graça
A conclusão é antiga, mas aqui eu constatei in loco:
– Todos os gordos são engraçados.
Nunca ri tanto em minha vida.
Finalmente
Não é apenas por vaidade que todos os jogadores estão aqui. Tenho quase certeza que, ao virem para cá, estão, em primeiro lugar, preocupados com o jogo.
Mas descobrem que é com a cabeça completamente mudada que sairão daqui.
O jogo é apenas a prática.