Por Victor Faria
Por simples acaso, dois quase desconhecidos encontraram-se despencando juntos no alto do Estádio Cícero Pompeu de Toledo, no bairro do Morumbi.
– Oi – disse o primeiro, no alvoroçado início da queda. – Eu me chamo Doriva. E você?
– Alexandre – gritou o segundo, perfurando furiosamente o espaço.
E só para matar o tempo do mergulho, começaram a conversar.
– O que você faz aqui? – perguntou Alexandre.
– Estão me chutando – respondeu Doriva. – E você?
– Que coincidência! Eu também. Tenho a impressão de ser dessa vez definitivo, porque é uma segunda tentativa. Há tempos que vinham tentando. Mas tem sempre um amigo, um desconhecido e até um conselheiro que impede. Você afinal está de saída por quê?
– Por amor próprio – respondeu Doriva, sentindo o vento frio no rosto. – Eu, que amava tanto o jogo, o clube, fui trocado por um homem já acostumado ao time, à instituição. Infelizmente tenho só estes corriqueiros trinta dias…
– E não lhe parece insensato por em xeque sua carreira por algo tão efêmero como o amor próprio? – ponderou Alexandre, sentindo a zoada que o acompanhava até sua saída.
– Justamente. Trata-se de uma vingança da insensatez contra a lógica – gritou Doriva num tom quase triunfante. – Em geral é o mundo do futebol que destrói o amor próprio. Desta vez, decidi que o amor acertaria contas com o futebol!
– Poxa! – exclamou Alexandre – Você fez do amor próprio uma panaceia!
– Antes fosse – replicou Doriva, com um suspiro. – Duvidosa como é, a convicção desse amor me provocou dores horríveis. Nunca se sabe o que chamamos convicção é desamparo, solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que a convicção destrói certezas com a mesma incomparável transparência com o que o caos significante enfrenta a insignificância da ordem. Não, o amor próprio não é a solução para profissão. Mas é culminância. Cair por conta dele me trouxe paz.
– Ante o vertiginoso discurso, ambos tentaram sorrir contra a gravidade.
– E você, como se sente? – perguntou Doriva a Alexandre.
– Oh, agora me sinto plenamente satisfeito.
– Então almejava uma demissão?
– Bom – respondeu Alexandre – me assustou descobrir um fiasco primordial: que a administração tem razões que a própria razão desconhece. Daí, preferi mergulhar de vez no mistério. Da administração conheço demasiado horrores. Mas que mistério é esse em torno da administração de um clube é tão importante a ponto de merecer sua vida?
– Mas de saída você não desvendará o mistério! – protestou Doriva.
– Por isso mesmo. O fundamental no mistério é aguçar contradições, e não desvendar. Sair, por exemplo, é bom na medida em que me torna parte do enigma e, de certo modo, o agudiza. Tem a ver com fé, que gera energias para a vida. Ou para a história, quem sabe…
– Taí um negócio que perdi: a fé. Os presidentes para mim… – e Doriva engasgou.
– Ora – revidou Alexandre vivamente. – A fé nada tem a ver com os presidentes, cujo cargo se reduziu a uma pobre estrela anã de energias tão concentradas que já nem sai do lugar. Eles desistiram de entender os homens, e viraram de maneira igual indagadores. A única fé possível é mergulhar neste abismo do mistério total.
– Mas para isso é preciso ao menos saber onde está o mistério – insistiu Doriva com os cabelos drapejando ao vento.
– Ué, o mistério está em mim, por exemplo, os motivos de minha saída coincidem com os argumentos de minha volta. Mas há mistério também em você: sua demissão por sua convicção é o mais impossível ato de fé. Graças a ela, você participa do mistério. Porque se apaixonou pela beira do abismo.
Doriva olhou com os olhos estatelados, ao compreender. E Alexandre, que já faiscava na semirrealidade da vertigem, gritou com todas as forças:
– Há sobretudo este mistério maior de estarmos, na mesma hora e local, suscitando ao mesmo gesto absurdo e despencando para a mesma certeza, por puro acaso. Além de cúmplices, a intensidade deste mergulho nos tornou visionários. Você não vê diante de si o desconhecido? É que já estamos perfurando a treva.
E como tudo de fato reluzia, Doriva também ergueu a voz:
– Sim, sim. É espantoso o brilho do absurdo.
Foi quando os dois corpos se estatelaram na Avenida Giovanni Gronchi.