Por Victor Faria
O homem sentado à minha frente se portara como um irmão, assim me disseram; e bem pode ser verdade, uma espécie de ajuda. Ele regula pelos vinte e quatro anos, justamente o tempo que estive de acordo com os dirigentes, sem que houvesse qualquer suspeita ou denúncia. Quanta coisa muda em mais de duas décadas, até nossas aspirações, e quanta coisa acontece – um menino nasce, cresce e se torna um homem e de repente nos olha na cara e temos que confessar nossos erros, e com urgência porque as notícias proliferam lá fora.
A princípio queria tratá-lo como intruso, mostrar-lhe minha hostilidade, não abertamente para não chocá-lo, mas de maneira a não lhe deixar dúvidas, como se lhe indagasse com todas as letras: que direito tem você de estar aqui na intimidade de minha cúpula, de meus negócios, entrando nos nossos segredos mais íntimos, lendo meus velhos cadernos contábeis, talvez sorrindo de minhas anotações, talvez discutindo minha conduta, com certeza criticando-a?
Mas depois vou notando uma atitude que não me é estranha, o seu sorriso tem um traço de sarcasmo que conheço muito bem. De repente fere-me a ideia de que o errado seja eu, que ele tenha mais direito de hostilizar-me do que eu a ele, que vive neste país há mais de vinte anos, que fez dessa instituição seu lar, estabeleceu intimidade com o espaço e com os objetos, criou suas preferências e suas antipatias, e agora eu caio aqui de repente desarticulando tudo com minha conduta diferente. O intruso sou eu, não ele.
Ao pensar nisso vem-me o desejo urgente de entendê-lo e de ficar amigo, de abrir-lhe meu mundo e de entrar no jogo dele. Ele me faz algumas perguntas que respondo com altivez, mas logo ele vê a inutilidade em prosseguir esse caminho, as perguntas parecem formais e as respostas forçadas e complacentes.
Há um silêncio incômodo, eu olho os pés dele, noto os sapatos bastante usados, os solados já gastos, as rachaduras do couro, a poeira acumulada nas fendas. Se não fosse o receio de parecer inadequado eu perguntaria se ele tem outro sapato mais conservado, se gostaria que lhe oferecesse um novo, uma nova roupa pra combinar. Mas seria esse o caminho para chegar a ele? Não seria uma atitude tendenciosa demais, e por conseguinte inapropriada?
Tenho tanta coisa a dizer, mas não sei como começar, até minha voz parece ter perdido a naturalidade, eu mesmo me aborreço ao ouvi-la. Ele me olha, e vejo que está me examinando, procurando saber se devo ser tratado como um inimigo ou aliado. Ele me pergunta se eu moro numa casa grande, com muitos quartos, e antes de responder procuro descobrir o motivo da pergunta. Porque falar em casa? E qual a importância de muitos quartos? Causarei inveja nele se responder que sim? Não, não tenho casa aqui, há muito tempo que tenho morado num hotel.
Ele me olha parece que fascinado, diz que deve ser bom viver num hotel, num outro país, onde se pode reclamar e exigir mesmo sendo um estrangeiro. Saliento a proibição de certos atos e a vigilância. Ele suspira e confirma seu ofício.
Ficamos novamente calados e eu procuro imaginar como será ele quando está com seus amigos, quais seus assuntos favoritos, se fala do trabalho, o timbre de sua risada quando ele está feliz e despreocupado, a fluência de sua voz quando ele pode falar sem estar sendo gravado. O telefone toca na outra sala e eu fico desejando que o chamado seja para um de nós, assim teremos um bom pretexto para interromper a conversa. Mas passa-se muito tempo e perco a esperança, o telefone já deve ter sido desligado. Ele parece interessado na chamada, mas disfarça muito bem a impaciência.
Agora ele está olhando pela janela com certeza desejando que algum colega traga novas evidências. É melhor não dizer nada de novo por enquanto, só o que é espontâneo interessa, e a simples hesitação já estraga a espontaneidade.
Uma mulher entra na sala, reconheço ela de um dos meus depoimentos, entra com um ar de quem vai pedir algo urgentemente. Levanto-me de um pulo, ela diz que não sabia que estávamos conversando, promete não nos atrapalhar e desaparece. Não sei se consegui disfarçar um suspiro. Olhamo-nos novamente, eu e ele, já em franco desespero, compreendemos que somos prisioneiros um do outro e que somente a delação poderia nos libertar. Ele diz qualquer coisa a respeito do tempo, eu acho a observação tão desnecessária – e idiota – que nem me dou ao trabalho de responder.
Francamente já não sei o que fazer, a minha experiência não me socorre, não sei como fugir daquela sala, do velho espelho que reflete um lado e transparece o outro. Esforço-me com tanta veemência que a consciência do esforço me amarra cada vez mais àquelas quatro paredes. Só uma catástrofe me salvaria, e eu desejo intensamente um terremoto ou um incêndio, mas infelizmente essas coisas não acontecem por encomenda. Sinto o suor escorrendo frio por dentro da camisa e tenho vontade de sair dali correndo, mas como poderei fazê-lo sem oferecer alguma prova contundente, e como depois explicar a minha conduta quando eu puder examiná-la de longe e ver o quanto fui inepto?
Não, basta de fugas, preciso ficar aqui sentado e purgar meu erro.
A porta abre-se abruptamente e a mulher entra de novo trazendo nas mãos alguns documentos, olha alternadamente para um e outro e diz, numa voz que mal entendo:
– O Marín está pedindo um advogado.
Levantamos os dois de um pulo, dando graças pela oportunidade de uma confissão que nos faria enfim escapar daquela câmara de suplício.