*escrito e publicado originalmente em 15 de abril de 2015, quando Geraldinos estreou no É Tudo Verdade; agora, a partir de 28 de abril de 2016, o filme entra no circuito comercial, inicialmente no Cine Belas Artes, em São Paulo, e foi tema do Central Cine Brasil #13 (clique aqui para ouvir).
Futebol é janela para entender a luta pela cidade: alguém ainda duvida da força da metáfora?
Lima Barreto detestava o futebol, achava que o jogo motivava a falta de educação, a discórdia, que era coisa que não prestava; para Graciliano Ramos, essa coisa de chutar bolas não ia pegar, no máximo um “fogo de palha que deve durar um mês” ao chegar no sertão, chegou a escrever.
Foi-se o tempo de negar o entendimento desse fenômeno mundial, ainda que ele ainda sofra, hoje menos, do preconceito por parte de uma possível elite intelectual ou acadêmica aqui ou ali. Não que tenha chegado também ao nível do jazz ou da literatura ocidental clássica, mas estamos lá com o José Miguel Wisnik e seu Veneno Remédio, com Hilário Franco Jr. e A Dança dos Deuses, com Nick Hornby e seu Febre de Bola, com Franklin Foer e o seu Como o Futebol Explica o Mundo. Uma prateleira cheia, que vai levando o futebol para outros mundos, mundos onde também poderíamos citar Bernando Buarque de Hollanda, José Paulo Florenzano, Flávio de Campos e tantos outros nomes espalhados por esse país que trabalham pelo estudo e tratamento de um futebol total, com estética, história e complexidade artística robustas, não menores.
Essa prateleira, mais cheia mas ainda repleta de espaços, ganha a partir dessa semana o documentário Geraldinos, que da estreia no Festival É Tudo Verdade já salta para o primeiro time das obras que elevam o futebol enquanto metáfora ímpar e privilegiada para se entender a sociedade contemporânea: alguém ainda duvida que se explica o Rio de Janeiro com duas fotos, uma antiga e uma atual, do terreno do Maracanã?
Geraldinos é dirigido por Pedro Asbeg e Renato Martins (respectivamente diretor e montador de Democracia em Preto e Branco, menção honrosa no É Tudo Verdade 2014 que conta a história da Democracia Corinthiana, da luta pelas eleições diretas e da relação com o rock paulista nos anos 1980). Conta a história desses frequentadores da geral — o lugar mais popular e mais próximo do campo, no nível do gramado, marcado pela festa e pela fantasia dos torcedores que criaram uma identidade própria, a do geraldino — e do fim desse setor no Maracanã, contextualizada pelos interesses em se construir um novo estádio e pela consequente elitização do público do futebol.
Levou uma década para ficar pronto entre o início das filmagens — o registro dos últimos jogos da geral do Maracanã, em 2005 — e a concepção do estádio para a Copa do Mundo, em 2014. E junta nessa linha narrativa cronológica os causos populares desses apaixonados por futebol, que sofrem com a perda de seu lugar favorito na cidade (ou no mundo), com a análise, mais sóbria, de quem debate os porquês desse momento transformador do futebol e do Rio de Janeiro.
A partir daí, a destruição da geral sem cerimônia — já imaginou ver a espetacularização de uma obra que estupra com britadeiras o teu canto favorito em casa, mesmo contra tua vontade? — vai ganhando a reflexão de nomes como o historiador Luiz Antonio Simas, o jornalista Lúcio de Castro, o deputado Marcelo Freixo e o ex-jogador e hoje senador Romário: juntos, consolidam a ideia de que o fracasso do futebol brasileiro em manter o espaço da geral é também um fracasso de uma ideia de cidade para todos.
Para quem talvez não acompanhe nem goste de futebol, Geraldinos recoloca de uma vez por todas o processo acelerado principalmente pela Copa do Mundo de 2014 como grande metáfora do projeto de transformação dos espaços públicos no país. Para além do romantismo e do rompimento com a maneira com que o país aprendeu a amar do jogo, debate a derrubada de um patrimônio histórico, a privatização do lazer e da cultura, a colocação do interesse econômico por sobre uma ideia de convívio afetivo.
Geraldinos é obrigatório, infelizmente. Não só pela Tijuca, pelo Rio de Janeiro, mas pelas gerais que vamos vendo cair nas nossas esquinas brasileiras, dando lugar a grandes obras que espelham o consumo em avenidas inabitadas.
Uma pena não ter sido visto por Eduardo Galeano, geraldino de vida, morto dois dias antes do lançamento, que há muito já nos avisou que não existe nada menos vazio que um estádio vazio; nem pelos 96 de Hillsborough, mortos também num 15 de abril, geraldinos de corpo e alma. Sigamos.