Time do Sport campeão do Torneio Norte-Nordeste de 1968 (fonte: Diário de Pernambuco 24/12/1968)
Começamos o Baião de Dois, nesse ano da graça de 2018 (a terceira temporada!), no dia preciso da estréia da gloriosa Copa do Nordeste em sua sexta edição nessa “nova fase”. É importante falar “nova fase” porque esse torneio regional já contou com vários formatos e nomenclaturas.
Nesse ano teremos uma (infeliz) e impressionante coincidência: completa-se 50 anos da realização do Torneio Norte-Nordeste de 1968. Vencido por ninguém menos que o Sport Recife, aquele clube que optou por não participar da Copa do Nordeste de 2018 (veja mais sobre o caso aqui).
Seria apenas mera coincidência se fosse apenas uma questão de data. E é esse o caso que o Baião de Dois traz, aproveitando o início da nossa terceira temporada e a estréia da Copa do Nordeste.
O Torneio Norte-Nordeste foi realizado de forma paralela à chamada Taça de Prata, em 1968, 1969 e 1970. Era conhecido por “Nordestão” na grande imprensa, apesar de contar com a presença de um grupo de nortistas, reunidos na “Chave Norte”, cujo vencedor enfrentaria na final o campeão da “Chave Nordeste”, que contava com três grupos e um número bem maior de clubes. Nas três edições os campeões foram respectivamente Sport, Ceará e Fortaleza.
Para contextualizar o final dos anos 1960
Era um tempo em que as distância eram muito maiores e as informações só chegavam na voz dos locutores dos rádios e em poucas páginas de jornais impressos. Os “olhos” dos torcedores espalhados pelo país eram os olhos dos ditos “cronistas desportivos”, responsáveis por construir o futebol brasileiro ao longo de muitas décadas. E era um momento chave para a Ditadura Civil-Militar se apoderar do futebol para fins de propaganda.
Afinal, o país era bicampeão mundial e ainda contava com Pelé em seus gramados. O Mundial de 1970 seria decisivo para a propaganda do governo, e a cobrançados clubes e da crônica esportiva pela realização de um campeonato nacional “de verdade”, era intensa. A Taça Brasil, então “nacional” da época, estava se esvaziando, pelo baixo número de confrontos entre os clubes do Rio e de São Paulo, desde sempre lideranças políticas do futebol nacional – que inclusive não concordavam com o formato regionalizado do certame. O discurso também era contrário à reprodução dos campeonato estaduais, considerados muito deficitários já à época.
Foi assim que os tais grandes resolveram intensificar o então Torneio Rio-SP em 1967, transformando-o na Taça Roberto Gomes Pedrosa, também chamada de Taça de Prata; realizando-a de forma paralela à Taça Brasil. Mas como chamar um torneio com cinco clubes de dois estados de “nacional”? Eis que surgem os convites para dois mineiros, dois gaúchos e um paranaense.
Como vingou na sua primeira edição, no ano de 1968 a Taça Brasil acabou sendo literalmente abandonada por clubes paulistas, que focaram na Taça de Prata, novamente ampliada: Bahia e Náutico seriam convidados para dar ainda mais “consistência” nacional ao torneio, que finalmente ultrapassava as fronteiras do “norte”. A Confederação Brasileira de Desportos (CBD), já aparelhada pelos militares, atenta às movimentações, passaria a tomar para si a organização do certame (essa mudança confusa inclusive causou a ausência de brasileiros na Libertadores de 1968).
Vale considerar que o futebol nordestino na época era marcado por uma discussão sobre a falta de estádios de grande porte – outro “ramo” posterior de investimentos da ditadura no futebol. Isso causava uma defasagem ainda maior com os clubes do eixo, uma vez que a parte mais importante dos recursos dos clubes era proveniente das rendas. Ainda que clássicos baianos, pernambucanos e cearenses batessem na casa dos 40 mil pagantes, isso ainda era considerado pouco em comparação aos jogos no Maracanã e no Pacaembú, ou nos recém-inaugurados Mineirão e Beira-Rio, e o futuro completo Morumbi.
Esse fato, inclusive, perdurou como um argumento para criar algum “pré-requisito” para o convite à Taça de Prata. E assim as três edições “cebedeenses” da competição mantiveram o mesmo formato e número de participantes. A única alteração, do ponto de vista nordestino, foi a troca do Náutico pelo Santa Cruz em 1969 e 1970. Enquanto isso, América, Bangu, Ponte Preta e Lusa – clubes notadamente médios em seus certames – puderam participar como “quinto” carioca e paulista.
Com a CBD à frente da Taça de Prata e com a notícia do encerramento da Taça Brasil rodando, a solução encontrada foi autorizar a realização de torneios que colocassem em atividade os clubes ausentes nessa nova competição de nível nacional. É aí que surgem o Torneio Norte-Nordeste e o Torneio Centro-Sul.
Torneio Norte-Nordeste, ou “Nordestão” para os íntimos
A ideia desses torneios, além de dar atividade aos clubes, era de legitimar a Taça de Prata como um torneio nacional, em contraste com os dois “regionais”. Apesar das promessas de que uma disputa entre campeões desses torneios os credenciaria a uma final contra o vencedor da Taça de Prata, a fim de definir o verdadeiro campeão nacional, isso nunca aconteceu. E o Centro-Sul, na verdade, só aconteceu por um único ano: não contou com tanto apelo quanto o Nordestão.
O Torneio Norte-Nordeste, no entanto, seguiu existindo, inclusive até 1972 (é preciso uma outra contextualização, por isso vamos nos resumir aos que ocorreram em paralelo à Taça de Prata). Em sua edição de estréia, organizado poucos meses antes, a promessa de que ele seria um torneio seletivo para outra competição era pública. Isso não acontecendo, o Nordestão precisava ser visto então como um torneio secundário, mas não necessariamente uma divisão inferior, afinal, não havia critério claro (senão a indicação política) para os competidores da Taça de Prata.
Apesar da ausência de duas grandes forças, Bahia e Nautico ou Santa, o torneio era considerado importante para os clubes locais (apesar das queixas de falta de apoio financeiro da CBD). Seu destaque era grande nas páginas dos jornais locais, e ganhavam alguma relevância nos jornais maiores. Diário de Notícias, Correio da Manhã, Jornal do Sports, Folha de S. Paulo e O Estado de São Paulo são exemplos de periódicos do eixo RJ-SP que noticiavam, em diferentes medidas, a competição.
Bastidores da organização do Torneio Norte-Nordeste (fonte: Diário de Notícias 11/08/1968)
A reportagem do Diário de Notícias destacada acima é curiosa pelo nível de detalhes e cobertura dos bastidores, partindo de um jornal que, inclusive, era opositor da ditadura (e teria sido fechado pela perseguição promovida pelo regime). A ênfase era sempre sobre a criação de um torneio que ultrapassasse as fronteiras estaduais, bem como proporcionasse maiores rendas aos clubes. Uma outra interessante reportagem do Diário de Notícias com referência ao Nordeste foi uma entrevista com um diretor do Santa Cruz, de título “Gradim: ‘Falta de estádios retarda o progresso do futebol nordestino’”.
Com a dificuldade de superação das grandes distâncias, o torneio era pensado para cruzar os vencedores do torneio do Nordeste com o do Norte, mas ao que as páginas da época nos mostram, a conquista da fase nordestina já proporcionava grande comemoração aos clubes. É algo que aparece com o Sport em 1968, com o Ceará em 1969 e com o Fortaleza em 1970.
Na edição de 1969 está outra curiosa coincidência que retorna quase 50 anos depois: a federação baiana, em uma crise interna e buscando conquistar maiores benefícios ante a CBD e ao regulamento do torneio, ameaçou inscrever dois clubes menores no Nordestão. Os clubes cobravam maiores participações nas rendas dos jogos fora de casa (lembrem que não exisita cota televisiva), e esvaziar o torneio era uma forma de pressionar.
Isso causou uma reação da federação pernambucana, que disse que não inscreveria Náutico e Sport se assim permanecesse, que também provocou protestos da federação cearense. Uma matéria do Diário de Pernambuco aponta que o Vitória denunciou uma a ação da federação local tinha “propósito desmoralizar torneio”. Depois de diversas reuniões a federação aceitou inscrever Galícia e Bahia de Feira, deixando o Vitória de fora.
Baianos também protagonizaram boicote mesquinho no Nordestão (fonte: Diário de Pernambuco 10/09/1969)
O caso curioso – noticiado em diversos dos jornais pesquisados – nos lembra uma movimentação recente em que uma federação e um clube provocaram uma crise no Nordestão. Naquela época esse clube implorava para que esse certame não deixasse de existir.
Sport na seca, bateu rival e fez carnaval com Nordestão
O Náutico era o todo poderoso no certame local, colecionou títulos em cima dos rivais, dentre eles o hexa-campeonato, e era o bicho-papão e sempre representante do Nordeste na antiga Taça Brasil. No seu encalço o Santa Cruz disputava títulos e prestígio, sendo o queridinho da CBD na formação da Taça de Prata, onde só os “eleitos” participavam, também acumulou taças por cinco anos consecutivos.
O jejum do Sport era imenso, inédito e dolorido. Após ser vice seis vezes consecutivas para o Náutico, o rubro-negro via o Santa Cruz crescer sob o comando do gringo James Thorp, exatamente o algoz do sétimo vice seguido. Depois do último título em 1962, o Leão da Ilha só voltaria a conquistar um campeonato estadual em 1975. Ainda deu tempo do Santa Cruz ser penta-campeão e o Náutico também sair da fila depois da única glória do clube em todos esses anos: o Torneio Norte-Nordeste 1968.
E como comemorou a torcida do Sport. As páginas do Diario de Pernambuco contavam a festa depois da vitória acachapante em 4 a 1 em cima do arquirrival tricolor (que no ano seguinte jogaria a Taça de Prata). Ilha do Retiro abarrotada, festa em campo e na quadra e jogadores recebendo faixa.
Dias depois o convite para a torcida em forma de anúncio na edição de 28 de dezembro de 1968:
Parecia pouco importar que o título de fato só se consumaria após o confronto contra o vencedor do Norte (que seria o Remo, igualmente batido pelo Sport).
Jornal local exaltava a festa com estádio lotado (fonte: Diário de Pernambuco 24/12/1968)
O Sport ainda voltaria a apostar suas fichas nos dois torneios seguintes. Em 1969 foi líder disparado do Grupo 2, mas acabou fracassando no quadrangular final. O vencedor dessa fase enfrentaria o Remo, novamente campeão do Norte. Deu Ceará no quadrangular e na final.
Em 1970 o Sport alcançou o Hexagonal Final do Grupo Nordeste, quando passou em primeiro, junto ao Fortaleza. O formato nesse ano previa um quadrangular final com os vencedores do Norte, que eram Fast e Tuna Luso. Como começou mal, o Sport enfrentou o Fortaleza precisando da vitória, ou o título ficaria com os cearenses. Para evitar a perda do título, seus dirigentes contrataram por empréstimo, às pressas, o jogador Copeu, diretamente do Palmeiras.
A estratégia não vingou e a taça voltou à capital do Ceará.
Moral da história: o Sport Club Recife hoje alega ser grande demais para disputar o Nordestão. Um torneio que em um momento da história foi a salvação, o respirar aliviado, de toda uma geração de torcedores rubro-negros, quando o leão era considerado pequeno para ser convidado para os torneios nacionais, preterido pelos seus maiores rivais.
O mundo do futebol dá muitas voltas. A manobra mesquinha e obscura da diretoria do Sport para tentar detonar a Copa do Nordeste, atendendo a interesses de terceiros, representa um crime contra sua própria história. E abre a brecha no espaço-tempo para uma nova decadência.
*Irlan Simões (@IrlanSimoes) é jornalista e pesquisador do futebol. Participa do Baião de Dois na Central3. Autor do livro “Clientes versus Rebeldes – novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno”.