Por Léo Lepri
Jorgito saltou da cama e sentiu o pé esquerdo tocar o azulejo do piso. O frio da manhã subiu pelos dedos descalços e, de uma só vez, possui o corpo que segundos antes repousava confortavelmente abrigado debaixo de toneladas de cobertores.
Ele se arrependeu por ter tirado – voluntariamente – as meias durante a madrugada. Teve aquela súbita vontade de retornar para o refúgio particular, mas percebeu que a hora no relógio com o escudo do River o condenava: estava atrasado para o colégio. Muito atrasado. O suficiente para querer dar-se ao luxo daqueles tradicionais cinco minutinhos a mais.
“Pero que cagada, che. Justo hoy que tengo ese maldito examen de Matemática“, pensou enquanto vestia o uniforme escolar ainda anestesiado pelo sono. Os números nunca foram o seu forte.
Fez correndo, e sem café da manhã, as dez quadras que separavam a casa do colégio. A pressa impediu que Jorgito percebesse ter vestido calça e a camiseta do lado avesso. Detalhe que obviamente não passou desapercebido pelos colegas.
“La vida puede ser muy difícil a los 13 años“, refletiu com alguma razão.
Foi até o banheiro e consertou tudo que havia de errado na vestimenta. Com uma manhã começando de maneira tão desastrosa, e com o temido encontro com a Matemática no horizonte, procurou ser otimista. Calculou os benefícios que teria a futuro, no final daquele dia. Como se fosse um último esforço antes de pisar no gramado, ainda no túnel do vestiário, animou a si próprio:
“No me importa nada. Porque hoy a la noche, hoy al fin, voy a ver River jugar en el Monumental”.
Abriu a porta da sala de aula esbaforido. Imediatamente foi fuzilado pelo olhar da professora que o condenou sem lhe dar qualquer chance de defesa. A velha era um árbitro implacável. Com um gesto simples e ditatorial, mandou –o sentar-se na única cadeira que restava vazia.
Recebeu a prova e, para a própria surpresa, não haviam problemas ali. Ou melhor, haviam mais problemas do que aqueles para o qual ele tinha se preparado.
Percebeu que o entusiasmo em torno da ideia de ver o River Plate pela primeira vez no estádio desorganizou completamente seus pensamentos. Jorgito misturou a data do exame de Matemática com o de História. E os acontecimentos históricos que se passaram fora de uma cancha, assim como os números, não eram o seu forte.
Foi embora do colégio caminhando envergonhado através de um corredor cruel, construído com as impiedosas zombarias dos companheiros. O atraso, o uniforme, a prova errada, as gozações… A sensação era de que a manhã tinha sido uma tremenda derrota. Por goleada. Mais uma vez, buscou consolo na promessa feita pelo pai na semana anterior. Sussurrou baixinho, como quem convence a si mesmo:
“No me importa nada. Porque hoy a la noche, hoy al fin, voy a ver River jugar en el Monumental”.
Chegou em casa com um buraco no estômago. Não tinha comido nada no que ia do dia. Sentiu o cheirinho da comida da mãe há duas casas antes da sua. Abriu o portão correndo e jogou a mochila no chão da sala. Gambeteou o sofá e a mesinha de centro com o movimento de um típico enganche que esquiva das patadas dos zagueiros. A ideia de uma suculenta milanesa napolitana caseira fazia Jorgito recuperar o alento para um dia tão especial.
Recebeu o tradicional beijo na testa que a mãe brindava sempre que ele voltava da escola e sentou-se à mesa. Não queria comentar nada sobre a trágica manhã. Agarrou o garfo e a faca, um em cada mão, e esperou o almoço ser servido. Uma espera que se fazia demasiado longa. Colaborava apenas para aumentar a expectativa do que estava por vir. Era comparável aos acréscimos de uma partida que se encaminha para a prorrogação.
Mas ele estava esperançoso. Conhecia bem a especialidade da casa. “La milanga de mamá no falla nunca”.
A panela fez seu trajeto do fogão até a mesa acompanhada pelo olhar atento do garoto. Como a bola que viaja do escanteio pela área do rival, pronta para ser cabeceada por um artilheiro oportunista. A decepção só veio quando a mãe retirou a tampa e revelou o menu do dia: legumes! Assim como Matemática e História, legumes nunca foram o forte de Jorgito.
Aceitou duas pequenas porções, servidas em discretas colheradas, e comeu em silêncio. Nem bem terminou, pediu licença e foi encontrar os amigos do bairro no campinho que fica no final da rua.
Estava ansioso para contar a todos que o dia finalmente tinha chegado. Para aquele jogo, seu pai tinha se comprometido a enfrentar a viagem desde Zárate até Nuñez. A forma como o velho reclamava da distância sempre que ele pedia para irem ao Monumental, deixava a impressão de que o River jogava como local na altitude de La Paz.
Nem bem terminou de contar a novidade e logo surgiu uma bola. Os garotos armaram o picadito e formam os times habituais. No segundo lance do clássico improvisado, José, o mais velho, mais forte e menos habilidoso dos moleques da turma, mandou a bola direto no para-brisa do antigo Renault 9 do viejo Osvaldo.
Todos saíram correndo, mas apenas Jorgito foi alcançado. Entre súplicas e pedidos desesperados, ele conseguiu convencer o velho a procurar por seus pais apenas no dia seguinte. Tinha medo que o menor deslize colocasse em risco a ida ao jogo.
Engoliu o choro e mais uma vez repetiu o mantra do dia:
“No me importa nada. Porque hoy a la noche, hoy al fin, voy a ver River jugar en el Monumental”.
Chegaram ao estádio com bastante tempo. Tudo correu surpreendentemente bem. O trânsito não foi um problema e Jorgito matou a fome devorando um choripan a poucos quarteirões da entrada da popular.
Assim que virou a esquina, foi surpreso pelo gigante de concreto que surgiu diante de seus olhos de repente. Como qualquer torcedor que vê pela primeira vez a morada de seus sentimentos, foi tomado por uma emoção inexplicável. Tão particular que não poderia ser compartilhada nem mesmo com o pai.
Fitou o Monumental em silêncio durante alguns minutos. Repassou mentalmente todas aquelas histórias que um dia haviam lhe contado; de tardes e noites, de vitórias e derrotas. Tudo aquilo que o fizeram ser torcedor do time que leva a banda roja cruzada na alma.
Entrou pelo túnel de acesso à arquibancada e ficou admirado com as luzes. Tudo brilhava em seus olhos. O campo, os uniformes dos jogadores, o rosto das pessoas…
O tento de Mercado logo no começo do jogo serviu como uma redenção para Jorgito. De pronto ele ganhou um novo ídolo, meio impensado é bem verdade, mas estava ciente de que jamais se esqueceria do jogador que desatou seu primeiro grito de gol verdadeiro. O primeiro que foi ouvido pelos atletas em dentro de campo.
Cantou as canções que conhecia e aprendeu muitas outras. Se esforçava em armazena-las na memória para dividir depois com os amigos do bairro. Dividia a atenção entre o que acontecia lá embaixo e nos movimentos da torcida, lá em cima.
O Millonario atacava, sufocava o time peruano em seu campo de defesa. Acumulava chances de gols perdidas e carimbava todas as traves possíveis do arco rival. O um a zero era pouco, muito pouco. O próximo grito viria a qualquer instante, alertava o pai.
Mas não veio. A partida entrou em seu último minuto. River e Jorgito foram surpreendidos. Uma bola lançada, um zagueiro que não acompanhou a corrida do atacante contrário e tudo estava acabado. O gol de empate do Juan Aurich foi um soco bem no meio da barriga do garoto, que se curvou para assimilar aquela tremenda dor.
Veio o apito final e o Monumental calou-se incrédulo. O garoto descobriu que poucas coisas são tão injustas quanto um jogo de futebol. E no fundo do peito sentiu, que entre todas as emoções, aquele dia tinha valido a pena.