Por Luiz Felipe de Carvalho
Se você é mais ligado em futebol do que em música, deve estar se perguntando que cacete fez o aposentado atacante inglês para merecer a linha acima. Mas não, não me refiro a Gary Liniker, e sim à cantora Liniker, que aliás tem esse nome por causa do jogador. Uso o pronome feminino porque essa é a preferência dela, que na verdade nasceu ele, e hoje é um misto dos dois. Um não-binário, para usar o termo da moda. Confesso ainda ser difícil, para mim, definir exatamente os novos conceitos de sexualidade (mas juro estar disposto a aprendê-los).
Ouvir o primeiro disco de Liniker e os Caramelows, chamado Remonta, lançado em setembro de 2016, é ouvir ora uma voz aguda tipicamente feminina, ora um grave forte, com tudo que há no meio disso. Fico imaginando ouvi-lo sem conhecer o personagem. Deve confundir a cabeça do ouvinte com perguntas do tipo “é uma mulher? É um homem? São vários cantores? É um gay? Um travesti? É branco? É negro?”. O manancial de perguntas não é facilmente respondível, porque Liniker é tudo isso junto. Talvez a maneira ideal de ouvi-lo (desculpe, Liniker, às vezes o pronome vem no masculino) seja mesmo sem saber nada a seu respeito. Do contrário o preconceituoso vai pensar “isso é música de viado” e o não-preconceituoso vai pensar “eu tenho que gostar porque é politicamente importante” – e aqui estou sendo um tanto maniqueísta e simplista, porque é certo que entre esses dois rótulos existem várias variáveis. Mas acho que o ideal é que os ouvidos estejam limpos ao se ouvir pela primeira vez.
Os meus não estavam. Já tinha lido bastante sobre ela, e sabia que o disco tinha sido escolhido melhor do ano e o escambau, por diversos críticos e veículos. Não tenho costume de ir atrás de discos assim que são lançados, acabo sempre esperando um pouco para ouvir – tanto que estou aqui escrevendo sobre um disco lançado há quase um ano. Quando finalmente escutei, a primeira impressão foi mesmo de estranhamento. Já ao final na terceira faixa, “Caeu”, ela provoca o ouvinte, cantando a capela por três vezes a frase “nossa, como a gente encaixa gostoso aqui”, com a voz sensual e com direito a gemidinha e risadinha ao final. Meu lado macho franziu a sobrancelha, pensou “que porra é essa?” e continuou ouvindo. Para amainar o estranhamento, a sequência do disco, engenhosamente escolhida, traz uma guitarra deliciosa para introduzir a suingada “Prendedor de varal”, dos belos versos “Enquanto você prometer e eu acreditar/Serão só manhãs, um dia, um meio-tom”.
Não vou fazer um “faixa-a-faixa” de Remonta, não é esse o objetivo. Basta dizer que Liniker e sua banda seguem pelo álbum fazendo black music brasileira, com eventuais canções mais lentas pelo caminho – tem até um bolero chamado “Você fez merda”. Me ocupo mais aqui do lado comportamental, refletido também nas letras. Liniker lançou o disco aos 21 anos, mas já vinha fazendo as canções há alguns anos, ou seja, no auge do pico dos hormônios. Não é um disco só sobre sexo, porque amores perdidos e conquistados também entram no caldo, além de outros assuntos periféricos. Mas se eu fosse elencar seus temas, colocaria o sexo no topo da lista. Não só por conta das letras por vezes explícitas (“Me lembro do beijo em teu pescoço/Do meu toque grosso, com medo de te transpassar”), mas também pela maneira com que são cantadas, com libido em cada nota, sem vergonha alguma de se expressar, até de modo exagerado algumas vezes, o que provavelmente afasta cisgêneros-masculinos-pouco-seguros à primeira ouvida. Pena.
Se você nunca viu Liniker deve estar tentando formar uma imagem em sua cabeça, com base nas informações contidas aí acima, que até agora não dão muito pista de como ele (elaaaaaa) se parece. Como eu citei a black music, você deve estar pensando que ela é negra. Sim, acertou. Cabelos compridos, com trança. Roupas de mulher. Bigode, eventualmente. Pelo embaixo do braço. Magra. Desafiadora, canta e dança, e comanda sua platéia e sua banda como se fizesse isso há cinquenta anos. É no palco que ela mais se permite, e tem uma coragem que me escapa entender, porque está muito longe de mim, que já confessei aqui nessa Central 3 que tenho vergonha até de chegar em casa ouvindo Roberto Carlos no carro. Há quem responda ao que não consegue entender com beligerância e medo. “Como alguém se atreve a ser preto, não ter gênero definido, falar de sexo, e ainda por cima ser talentoso pra caralho?”. Liniker deve provocar essa reação em muita gente. Com sua junção explosiva de imagem, discurso e atitude, também parece estar fadado a ser referência para todos aqueles que, de um modo ou de outro, se sentem apartados da sociedade. E, mais importante ainda, ela é um tapa na cara de nosotros “normais”. Não daqueles tapas pra machucar, mas daqueles pra acordar. Embora, às vezes, também machuque.
Liniker é uma afronta à sociedade. E que bom que seja assim.
Inês disse:
Original, tem força e graça.
Michel disse:
Lineker é maravilhoso!!
Tive a oportunidade de assistir seu show na feira do MST e no auditório do IBIRAPUERA, dois shows intensos e incríveis.