“ABANDONAAAADA POR VOCÊÊÊÊÊ”
Foi meio assim que a Fafá de Belém se apresentou para mim, nos discos que minha mãe ouvia. Não foi um começo muito auspicioso. Eu e meu irmão fazíamos versões com outros verbos, os mais rocambolescos possíveis, tipo “atarraxaaaada por vocêêêê” ou “esmigalhaaaaaadaa por vocêêêêê”. Antes disso, no começo dos anos 1990, eu até gostava de “Nuvem de Lágrimas”, que ela gravou com Chitãozinho e Xororó (gostava tanto que ela está logo depois de “Paradise City”, do Guns´n´Roses, numa das fitas cassete que gravávamos do rádio nessa época). Mas o fato é que de maneira geral a Fafá era para mim uma cantora brega, com tendências ao exagero na interpretação, e em cujo trabalho eu não tinha muita vontade de me aprofundar.
A junção de Fafá com Guns naquela fitinha de adolescente mostra um ecletismo musical que só é possível a quem está completamente despido de preconceitos. É algo que a gente tem quando é bem jovem, aí perde um pouco quando acha que é adulto e tem um monte de opiniões muito formadas e definitivas, e depois volta a ter quando fica um pouco mais velho. Não há uma idade muito exata para cada uma dessas fases, cada pessoa tem seu tempo e, bem, talvez nem todo mundo passe por todas as fases. Já há algum tempo eu tento não ter preconceito musical algum. Músicas bem produzidas e feitas para as massas tem seu momento, sua razão de ser, assim como as cervejas baratas que eu já não tomo mais, mas reconheço o valor e a utilidade. Já tomei muita Brahma e ouvi muito Raça Negra pra agora ficar pagando de ser superior.
Dito isso, volto à Fafá. Há uma coleção da Universal Music, chamada “Tons”, que é uma coisa linda para qualquer colecionador. São caixas com reedições em cd de álbuns em geral já fora de catálogo, com reprodução fiel da arte original, trazendo encartes com letras, fichas técnicas e textos contextualizando cada disco. Quando vi que havia uma edição da Fafá achei que era hora de fazer as pazes com a cantora que foi ABANDONAAAAADA por mim por tanto tempo.
Fafá lançou seu primeiro disco, “Tamba-Tajá”, em 1976. A caixa traz os três trabalhos seguintes dela, “Água” (1977), “Banho de cheiro” (1978) e “Estrela radiante” (1979). Não há reedição em cd do primeiro álbum, mas é possível ouvi-lo na internet. Apesar de não ser minha maneira usual de consumir música, ouvi o disco uma vez para escrever esse texto. É bem regional, algo que já pode ser depreendido de seu título, que faz referência a uma lenda indígena. É curioso notar como nos trabalhos seguintes a cantora vai aos poucos se distanciando do repertório mais da “terra” e caminhando para a urbe. Isso fica claro já nas capas, em que partimos da cantora em meio à mata em “Tamba-tajá”, seguindo com ela em cima de uma árvore à beira-mar em “Água”, depois ainda bem brejeira mas com a vegetação apenas desfocada ao fundo em “Banho de cheiro”, para finalmente termos só o rosto da artista bem maquiado em primeiro plano em “Estrela Radiante”.
Claro que tal mudança se reflete também na escolha de repertório e nos arranjos. A cada disco vamos vendo Belém sumir do retrovisor aos poucos. Mas o lado regional não desaparece completamente. Mesmo “Estrela radiante”, o mais recente deles, traz “Pacará”, bem percussiva, que já carrega a influência indígena no título, que significa “cesto pequeno de carregar peixe ou homem pequeno” (essa tradução está impressa no encarte).
Para além das escolhas estéticas, tanto gráficas quanto artísticas, os três discos que ouvi com mais atenção me impressionaram pela maturidade e versatilidade que a artista apresentava com pouco mais de vinte anos de idade. Maturidade na segurança do canto e na escolha do repertório e versatilidade nos diversos registros que sua voz apresenta, em alguns momentos parecendo ser várias cantoras em uma. Isso fica claro já nas duas faixas que abrem o disco “Água”, a primeira, “Pauapixuna”, trazendo os versos gritados, rasgados e intensos que eu já conhecia, e a segunda, “Araguaia”, surgindo com ternura e delicadeza. Sem contar a extensão vocal que ela apresenta, à vontade tanto nos graves quanto nos agudos. Em resumo, uma máquina de cantar.
Apesar de ter ABANDONAAAAAADO o “de Belém” de seu nome artístico no decorrer da década de 1980, a verdade é que Fafá nunca deixou sua terra natal totalmente de lado. “Vermelho”, uma de suas gravações mais conhecidas, já da década de 1990, deixa isso bem claro, fazendo referência ao Festival de Parintins, famosa festa amazonense. Mas é certo que de maneira deliberada ela fez uma escolha como artista de abraçar a canção popular romântica – e diga-se de passagem foi extremamente bem sucedida nessa empreitada. Não me cabe outra coisa a não ser respeitar tal decisão, embora como ouvinte eu tenha ficado imaginando outras mil possibilidades para seu imenso talento. Inclusive me peguei pensando que ela poderia fazer um BAAAAAAITA disco de rock. Nunca é tarde, viu Fafá?
*Luiz Felipe de Carvalho é nosso COLUNIIIIIIIIIIIIIIIIIISTA musical – e do que quiser falar.
Regina Aurea Pereira disse:
Fafá é uma grande referência pra mim na fase da canção popular romântica, mas sempre soube de suas raízes e de seu talento pra cantar e encantar. Assim como este colunista, me surpreende e fascina.
Edna Cristina Bernardes de Souza disse:
Que gostoso ler um texto sobre Fafá de Belém.
Algumas canções de Fafá são trilhas sonoras de um momento lindo da minha vida. Podem falar o que quiserem…que suas canções são bregas…etc , mas meu carinho por essa voz será eterno.
Obrigada por nos presentear com esse texto.
Edna Cristina Bernardes de Souza disse:
Algumas canções de Fafá são trilhas sonoras de um momento lindo da minha vida. Podem falar o que quiserem…que suas canções são bregas…etc , mas meu carinho por essa voz será eterno.
Obrigada por nos presentear com esse texto.
Luiz Gusmão disse:
Olá, Luiz, nossos vizinhos amazonenses vão ficar chateados quando souberem que você chamou o Festival de Parintins de “famosa festa paraense”.
Parintins fica no Amazonas e não aqui no Pará.
Um abraço.
Luiz Felipe Pereira de Carvalho disse:
Olá Luiz! Você está coberto de razão! Falha do escriba…vou pedir pra corrigir…obrigado pela leitura…abraço!