Por Raphael Sanz
Recebi, na noite do dia 6 de Setembro de 2015, o convite do meu amigo e companheiro de terrão, Xico Malta, para escrever um artigo sobre a proibição da PM ao mosaico da Mancha Verde no clássico disputado naquela tarde. Agradeço e peço desculpas ao amigo. Desculpas pela demora na entrega do texto (a correria tá braba) e por não ser possível escrever apenas sobre essa nova proibição. O momento é de disputa para o Palmeiras. Mas essa disputa não tem nada a ver com o Brasileirão ou a Copa do Brasil.
Em primeiro lugar é preciso tomar algumas notas, algumas internas ao convívio que tenho com os “centralinos”. Já encontrei diversas vezes meus amigos Leandro Iamin e Paulo Silva Júnior nas imediações do Palestra Itália, curtindo a vida e o Palmeiras. Infelizmente, como já demonstrou com maestria o velho Cartola, minha alegria é tão mentirosa quanto o beijo que o Lucas deu no escudo do clube ao marcar o primeiro gol daquele jogo. Só que, assim como o nosso lateral, eu preciso me iludir, me enganar para viver com um mínimo de conforto mental nessa conjuntura insana.
Por alguma razão, ainda vibro e transbordo meus sentimentos futebolísticos, ainda que a Razão, substantiva, me diga o tempo todo que o futebol não é mais o mesmo. A impressão que eu tenho é que a proibição do mosaico, além de uma ironia danada visto o mosaico exibido no Lixão uma semana depois, foi apenas mais uma medida de penalização e de ataque ao torcedor nessa que é a maior disputa da história do centenário clube dos imigrantes: a do acesso ao estádio.
O jogo foi considerado o melhor do ano pela imprensa que desequilibra sua atenção e a balança de noticias positivas e negativas a favor do outro time. “Nossa, 3 a 3! Que clássico!”, bradaram os colegas.
Para nós, torcedores, uma vergonha. Vimos o nosso goleiro, que até então seguia confiante, falhar no terceiro gol do adversário, vimos um treinador que errou na escalação do time, vimos uma defesa tenebrosa e uma arbitragem desastrosa. Também vimos um líder de campeonato que até buscava o jogo, mas não oferecia perigo. Chegou três vezes e, por três vezes nossa defesa bateu cabeça. O que vimos de positivo foi um ataque que marca gols contra boas defesas e uma torcida que, restrita a pouco mais de 7 mil lugares atrás do gol norte, cantou sem parar e ignorou as telinhas e os telões.
Tive a felicidade de estar presente no estádio por causa do “irmão do amigo de uma amiga minha”, que tem um plano de sócio torcedor no qual paga 100 reais por mês que lhe garante um ingresso preferencial nas cadeiras do gol norte. Ele não foi ao estádio e me repassou, através de conhecidos, o seu cartão. Isso é muito comum. A presença no estádio conta pontos para compras de ingressos preferenciais. Quem paga 100 reais mensais, por exemplo, não paga o ingresso do gol norte e, tendo mais de 80% de presença nos jogos do Palmeiras, ainda tem a possibilidade de garantir a entrada antecipadamente em relação aos portadores do mesmo plano que têm uma frequência menor. É uma estratificação extremamente complexa que gera competição entre os torcedores por ingressos e tem na mensalidade e na frequência os seus pilares. O pilar da frequência abre uma brecha, esta pela qual consegui ir ao jogo.
Minha modalidade custa 30 reais por mês. Fui obrigado a fazer em 2012, quando essa era a única possibilidade de comprar ingressos para os jogos finais da Copa do Brasil daquele ano. Sempre tive o costume de ir ao estádio, durante aquela Copa não foi diferente. A partir da final de 2012, eu acompanhei – comprando ingressos através do Avanti – as campanhas do rebaixamento de 2012, da lamentável Libertadores de 2013, a série B do mesmo ano e todo o ano de 2014, que, se eu pudesse, apagaria da memória. Pagava em média 15 reais o ingresso no Pacaembu. Eu tinha em torno de 80% de presença quando foi inaugurada a moderníssima arena.
Acontece que ao contrário do Pacaembu e do velho Palestra Itália, a nova arena do Palmeiras veio com um setor popular minúsculo. Pouco mais de 7 mil lugares vendidos a preços caros. Todos os outros setores, caríssimos. Contra o Sport, na estreia, o setor popular esgotou em 40 minutos de venda. Procurei nos outros setores. Impagável. Perdi o jogo e minha porcentagem de presença caiu. Assim sucessivamente. Com alguns jogos perdidos, já era impossível acessar o setor popular antes que ele já estivesse esgotado. Para conseguir o acesso novamente, eu teria que aumentar a taxa do sócio torcedor me filiando a um plano superior nessa estratificação e me submeter aos setores mais caros durante um período para restabelecer a minha frequência e o acesso aos ingressos do gol norte. Fora de cogitação. Não por má vontade, mas por força da realidade.
Em primeiro lugar, é um absurdo obrigar o torcedor a se fidelizar a um programa de sócio torcedor. Deveria ser possível ter acesso aos jogos sem a necessidade de um cartão especial mediante mensalidade. Todos já pagam impostos demais e acompanhar o time do coração deveria ser uma futilidade no orçamento, e não mais um sacrifício. As velhas bilheterias, os pontos de venda e a velha distribuição democrática dos setores, resolveriam.
Em segundo lugar, observei a direção do maldito telão que colocaram no estádio. As imagens variavam entre zooms da partida, replays de lances acalourados e retratos da plateia, não da torcida. Pessoas olhando para seus celulares ao lado de pessoas que olhavam para o telão, e, ao verem-se nele davam “tchauzinhos” para o mundo, contagiando todos ao seu redor com o gesto. Era fácil de localizar onde estavam, bastava olhar para os setores laterais do estádio e ver as mãozinhas tremulando. Proíbem as bandeiras, colocam “tchauzinhos” no lugar. Enquanto isso, um Dérbi centenário comia solto diante dos seus narizes. Nem um “tchauzinho” sequer partiu do gol norte. É possível diagnosticar algumas bizarrices no gol norte, como o uso compulsivo de smartphones, mas nada de “tchauzinho”.
Há uma clara escolha de público para o novo estádio, que deriva da estratificação sócio comportamental (afinal, torcer é comportar-se) gerada pelo programa de sócio torcedor. Digo isto, pois muitas pessoas têm ficado para fora do estádio, quando não encontram uma brecha no sistema. Muitas delas vão ao estádio, mas acabam ficando na esquina das ruas Turiaçu e Caraíbas, assistindo aos jogos nos botecos, restaurantes e sedes de torcidas. Neste 6 de Setembro, essas pessoas encheriam um outro gol norte. O problema é que essas pessoas não estão dispostas a pagar 150 reais para assistir a um jogo de futebol, o que as impede de ir em outro setor. Além disso, quando entram no estádio, geralmente estão mais preocupadas com o jogo do que com o telão. Em tempo: digo isso de maneira geral, sempre existem exceções.
A proibição do mosaico não está descolada deste contexto da modernização do futebol, que prevê um torcedor comportado, civilizado e aberto às diversas interferências extra campo que podem vir a serem feitas. Imagens no telão, selfies e anúncios. Há um desafio enorme que a atual conjuntura nos oferece em relação ao futebol. Há uma disputa econômica, social e cultural. Os preços exorbitantes, as cadeiras marcadas e a obrigação do uso de cartão de crédito, CPF e matrícula no programa de sócio torcedor são os principais ingredientes na seleção do púbico torcedor e na reconfiguração do seu comportamento. A arquitetura também dita comportamento. Isso é fato comprovado. Pode estimular ou inibir, libertar ou reprimir.
Nesse ano, a disputa dentro de campo é a menos importante para o Palmeiras. O time não está nenhuma maravilha, às vezes nos envergonha com erros grotescos, mas está lá, em torno do quinto lugar na tabela e nas quartas-de-final da Copa do Brasil. O grande desafio está nas arquibancadas. Ou melhor, nos portões de acesso ao clube. Brasileirão todo ano tem. Mas essa disputa pelo acesso democrático e popular aos estádios, se perdida, levará anos para ser retomada. Vamos na contramão de tudo, até de nós mesmos. Sempre nos gabamos de sermos uma torcida diferente – apaixonada, amalucada, nervosa e gigante, mesmo sem a ajuda dos grandes meios de comunicação – e hoje assistimos entorpecidos os ratos converterem a paixão centenária do palmeirense em montantes de dinheiro, rankings, fidelizações e lugar marcado. Tudo pré-calculado. E lamentavelmente ridículo. Quem viveu o velho Palestra, sabe.