Na frente da bilheteria destinada aos visitantes – um único guichê, insuficiente, e que fez com que alguns torcedores perdessem todo o primeiro tempo – um repórter com microfone na mão vai fitando quem passa já com o ingresso entre os dedos. Vem em minha direção.
– Pode falar um instante? Você é torcedor?
– Não, melhor falar com quem está com camisa mesmo.
– Mas é isso que estou procurando, alguém que só veio assistir o jogo na boa.
– Não, mas não necessariamente vim assistir ‘na boa’. Sei lá, melhor falar com quem é torcedor dos times, não?
– Estou procurando quem não é. Quem só veio. Esse é o clássico do bem.
– Não, não, como assim… ah, fala com os torcedores, até mais.
Portuguesa e Juventus fizeram um ótimo jogo na noite desta quarta-feira. Tradicionalíssimos, se encontraram apenas pela segunda vez na história pelo Campeonato Paulista da Série A-2: há três anos, deu Lusa; desta vez, o Moleque Travesso fez 1 a 0, conquistando apenas a segunda vitória sobre o rival visitando o Canindé em, agora, 23 jogos pelo Estadual na casa portuguesa – os demais pela elite do Paulistão, claro.
Logo nos primeiros minutos, deu para perceber os confrontos tramados em campo. No ataque lusitano, o grandalhão Dominic brigava por cima e por baixo com os zagueiros Astorga e Borges; do lado de lá, os rápidos juventinos Adriano Paulista e Nathan partiam para cima dos laterais Digão e Luan. E foi exatamente Adriano que saiu um pouco da ponta esquerda, recebeu mais centralizado e soltou o pé, de longe, para surpreender o goleiro Douglas e abrir o placar aos 21 minutos. Explosão da torcida grená que já cantava forte atrás do gol da Marginal.
Aí surgem os dois caras do meio-campo do Juventus que passam a dominar o jogo. Adiel, aquele, para desafiar qualquer analista tático do mundo pós-Guardiola, não joga só de 10, mas, pasmem fãs da Premier League, joga de 10 clássico. E que classe. Ensaboa a bola a cada domínio, foge das faltas, lança de chapa, de trivela, no chão, por cima, finta, passa e corre para a área. Partida grandiosa, interrompida antes da metade do segundo tempo para dar novo gás no momento de pressão adversária. E que falta faz o meia de 35 anos num campeonato de técnica tão nivelada, ainda que tenha saído empurrado pelos rivais que reclamavam de cera – e o jogo esquentando.
O outro é Derli. Camisa 8 de fôlego invejável e passadas largas, rouba a bola até do sobrinho em festa de aniversário. Junto do parceiro Fellipe Nunes, o 5, venceu a grande maioria dos lances que se propôs. Gigante.
A Portuguesa também criou e por pouco não empatou. No primeiro tempo, o juventino Astorga salvou bola em cima da linha; no segundo, cruzamentos na área, puxados pela torcida da casa, pararam no quase e numa defesa incrível, à queima-roupa, do goleiro André Dias. Nas escapadas do contra-ataque visitante, Léo Souza e Nathan deram trabalho, mas faltou capricho, e perna, para matar o jogo.
Já eram os minutos finais quando, numa falta na ponta esquerda, de pé de ouvido nos cantos da Setor 2, Elder Granja, aquele, que substituira Adiel, faz o tradicional gesto pedindo para sua torcida cantar mais alto, motivando as bancadas. Os juventinos seguem em bom som quando Adriano Paulista, naquelas de segurar a bola perto do escanteio para ganhar tempo, arrisca um chapéu. Ele erra um pouco no movimento, mas ainda recupera a bola, o zagueiro dá o tranco, ele se segura, rola a bola para um companheiro, que sofre a falta e é chutado no chão. Renan, capitão da Lusa, compra a briga e vai cobrar o atacante. Vai ter volta!, dá um chapéu pra cima de mim?, tá cheio de graça, hein?… dessas para baixo, imagino.
O confronto termina quente. O elenco do Juventus, duas vitórias em dois jogos, se aproxima da torcida em gestos de gratidão e reverência. Um membro da comissão técnica pula de forma eufórica, feito título. Não é para menos: na volta à Série A-2, resultado maiúsculo contra grande fora de casa, estádio com mais de 7 mil pagantes (Flamengo, Fluminense e Botafogo jogaram nesta rodada do Carioca para, somados, nem 6 mil).
Segue a comoção. E a comunhão entre o cimento, a grade e a grama. Um atacante beija o símbolo do clube insistentemente. Um zagueiro bate nas veias do braço, depois no peito. O goleiro também atravessa o campo, exausto, mas em tempo de aplaudir os torcedores. Cantando que os grandes terão de aguentar o Moleque Travesso novamente na primeira, vão deixando lentamente as arquibancadas do rival, roucos.
Para lembrar que é por isso que existem os clássicos, os grandes jogos, os tabus, as rivalidades. Por noites como essa. Sem espaço para ‘clássico do bem’.
Ainda bem.