-Não, Galeano!
Esta frase habitou minha infância como poucas outras. Fosse minha família alvo de uma comédia televisiva, este seria o bordão conehecido do público. Consistia em reclamar de alguma presepada ou ato desastrado fazendo analogia com o errante e ogro volante do Palmeiras, o Galeano. “Não Galeano” era grito recorrente nos jogos do clube.
Deve ser por isso que as primeiras lembranças que tenho de Eduardo Galeano são carregadas de um preconceito infantil e simplório. Ele não deve ser nada de bom, pensava. Até que li As Veias Abertas da América Latina. Estava tudo tão claro e nenhum professor nem ninguém na rádio, na TV, no ponto de ônibus, jamais havia me falado do meu lugar e das minhas amarras sociais, econômicas e culturais do jeito que ele me falou ali. Era segundo ano de faculdade e os volantes do Palmeiras eram ainda piores que o loirinho da camisa 5.
Nada mais bonito que escrever simples. Muitos festejaram a posterior afirmativa de Eduardo Galeano sobre a possível pobreza de seus relatos neste clássico. Qual o quê. A narrativa de Galeano, mesmo em seus últimos ensaios, sobre Gaza, Israel, Palestina e até Dilma, eram de uma simplicidade assustadora, e isso é ótimo. Coisa de bom professor, de quem não cospe cólera no tubo de tinta da caneta, de quem quer se comunicar, dividir filosofias e pontos de vista ao invés de promover o próprio intelecto. O mestre menos soberbo que eu já li, quase um avô sem pressa no quintal da casa te contando algo banal.
Galeano nunca banalizou o objeto de suas pensatas. Quando escreveu Futebol Ao Sol e À Sombra, deu ao esporte tratado com deboche uma obra definitiva sobre a dignidade, a beleza, o intangível daquela coisa toda e seus detalhes todos. Pena que só fui ler o dito cujo muito depois, com os olhos já cansados pelo muito que eu li e pelo pouco que eu sei. Ao Sol e À Sombra, sim, é um exemplo de como a comunicação pode ser humilde na forma, comum na estrutura, e ao mesmo tempo firme nos propósitos e profundo na reflexão. O redator do novo milênio dourando sua pílula com um lide gourmet nunca leu, ou não entendeu, um Galeano da vida.
Eduardo Galeano era poesia tão pura que a dita cuja era detectada no parágrafo comum, nas frases normais, não no truque literário e no efeito do argumento especial, que sequer havia. Um humanista que bateu no estabelecido com a arma que tinha, e sem colocar nada de si a perder – nem mesmo a liberdade analítica que lhe custou pedrada da esquerda e bombardeio da direita nos pólos do ranço literário. Problematizou o mundo até seus últimos dias, e nunca se furtou das pautas mais elementares: a miséria, a humilhação de um continente, de povos, a opressão de poderes imbatíveis, a voz de uma gente calada.
Mais adulto, encontrei um livro de Galeano chamado Nós Dizemos Não. Dei risada, lembrando do bordão da minha família. Quando sentei para ler, fui beijado pelas mais gentis palavras do mundo, uma forma acachapante de ser doce para falar da América Latina tal qual conhecemos – doente, estraçalhada, colonizada. Um petardo definitivo. E é finda, agora, a história deste homem.
Nós dizemos Não, Galeano.