Nova Orleans. Memphis. Nashville. Os Estados Unidos são pródigos em promover o turismo musical, e provavelmente essas três cidades são as mais conhecidas nesse quesito. Em suas casas de shows, ruas e estúdios nasceram e/ou se desenvolveram ritmos e estilos musicais que são hoje famosos mundialmente, como o jazz e o country. A fama musical traz a essas cidades, além de muitos turistas, um ganho de imagem difícil de ser mensurado. Ou existe algo melhor do que ser reconhecido por um ativo cultural intangível e incalculável? Pensando sobre isso, me coloquei a pensar qual cidade brasileira teria esse potencial.
Claro que Rio de Janeiro, Salvador, Recife ou São Paulo podem ser citadas como cidades musicais, onde é possível frequentar uma roda de samba, um ensaio do Olodum, um bloco de frevo ou um show de rock alternativo. Mas quando nos lembramos delas, não é “música” a primeira coisa que nos vem à cabeça. Fato é que talvez existam outras, mas para mim a cidade brasileira que mais rima com música é a pequena São Luiz do Paraitinga, cidade colonial no interior de São Paulo.
Não é que a cidade não possua outras atrações. Há um centro histórico recuperado depois de uma grande enchente em 2010, trilhas e cachoeiras pelas redondezas, além de um rico legado gastronômico. Mas é a música que faz a cidade pulsar – literalmente. Considero que há quatro pontos fundamentais que fazem a cidade ter potencial para ser uma das “cidades musicais” brasileiras – um mote que bem poderia ser mais bem aproveitado pelo Ministério do Turismo.
1 – O compositor Elpídio dos Santos – Músico, e filho de músico, nascido na cidade em 1909, foi o compositor preferido de Mazzaropi, e fez as músicas de dezenas de seus filmes. Mas Elpídio não se limitou à parceria com o ator e diretor. Uma de suas músicas, “Despertar do sertão”, interpretada pela dupla Cascatinha e Inhana, tem a curiosa honraria de ser a primeira música brasileira a tocar na rádio BBC de Londres.
Talvez seu sino não tenha batido com a canção acima, mas certamente essa aqui abaixo vai atiçar algum lugar da sua memória:
Ou quem sabe essa aqui, com interpretação de Mazzaropi:
Pode ser uma hipérbole chamar Elpídio de “alma musical” de São Luiz, mas é certo que sem ele muito provavelmente os outros itens deste meu compêndio não seriam possíveis. Seu talento como músico e letrista, e todo o sucesso decorrente disso, deram à São Luiz um ponto de partida, como se fosse um aviso dizendo “aqui se faz boa música”. A partir de Elpídio aquelas montanhas, aqueles riachos e rios, as construções coloniais, sempre seriam reduto de artistas, de gente que respira e vive de música. Elpídio foi o fio condutor e também o elo para o futuro, como se verá a seguir.
2 – O Grupo Paranga – Formado nos fins da década de 1970, após a morte de Elpídio, nada menos do que quatro dos sete integrantes originais do Paranga são filhos de Elpídio dos Santos. Em verdade a banda surgiu como uma forma de homenagear e carregar o legado de Elpídio adiante. Mas o Paranga não se limitou a isso. Com suas três vozes femininas comandando o show, inovou na forma como se apresenta música caipira, formando o que se chamou na época de “big band caipira”, devido à quantidade de integrantes em cima do palco. Infelizmente não há muitos registros de shows dessa época, sendo uma apresentação no extinto programa “Fábrica do Som” a melhor maneira de tentar entender o que era o Paranga.
O grupo fez parte do que se convencionou chamar de Vanguarda Paulista, movimento que revelou artistas como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Premeditando o Breque, Rumo, Língua de Trapo, Tetê Espíndola, entre outros. Após a estréia com o disco “Chora Viola, Canta Coração”, que rompeu algumas barreiras estilísticas, o grupo passou a lançar álbuns bissextos. O último deles saiu em 2015, se chama “Essa festa é pra você” e tem uma embalagem linda em formato de envelope, cheia de confetes dentro. Aliás, boa parte do repertório pós primeiro disco da banda está baseado em marchinhas de carnaval, estilo que passou a marcar a cidade de São Luiz do Paraitinga, como veremos em seguida.
3 – As marchinhas de carnaval – Eis aqui o motivo que fez São Luiz ficar conhecida em boa parte do país: seu carnaval de marchinhas genuinamente luizenses. Nada contra a cabeleira do Zezé ou o filho que quer mamar, mas uma cidade ter suas próprias marchinhas cantadas por todos os foliões não é algo corriqueiro. É para poucas. Mas nem sempre foi assim.
No começo do século XX um padre italiano, titular da paróquia local, proibiu todas as festas profanas, e propagou a lenda de que cresceriam chifres e rabos em quem brincasse o carnaval. O povo, muito religioso, obedeceu. São Luiz ficou sem carnaval por muitas décadas, até bem depois da morte do padre, na década de 1960. Isso porque quando o carnaval estava ameaçando retornar, uma grande enchente devastou a cidade, adiando a volta da folia por mais alguns anos. Parecia castigo, mas não era não. Tanto que em 1981 o carnaval voltou de vez, para nunca mais parar. Podemos dizer que o padre é o grande responsável pelo carnaval da cidade ser o que é hoje. Não subestimemos a força de uma paixão recolhida. Desde esse recomeço a cidade faz valer sua vocação de brincar ao som de músicas de compositores locais, sendo Galvão Frade talvez o mais proeminente entre eles. O Bloco Juca Teles, surgido em 1985, é o mais famoso da cidade, e teve a música composta por Galvão, com letra de Marco Rio Branco, outro compositor recorrente nas marchinhas. No vídeo abaixo, a partir do minuto 2:50 é possível perceber como as letras estão na boca do povo.
A cidade já teve mais de cinquenta blocos, muitos com nomes espirituosos, como “Espanta-vaca” e “Cruis Credo”. Nem todos ainda desfilam, mas suas músicas ainda fazem parte do carnaval luizense, que arrasta centenas de milhares de pessoas à cidade de apenas onze mil habitantes. Este escriba esteve por lá por um pequeno período em um carnaval no começo dos anos 2000, e seguiu felizão o Bloco Bico do Corvo, do refrão “mas o que é que eu vou dizer lá em casa/ que eu tô no bico do corvo, que eu tô no bico do corvo”. Segue um vídeo do bloco, que não foi postado por mim, mas coincidentemente por um xará. Dá pra sentir bem como é a energia da festa, com todo mundo cantando e ainda fazendo uma gracinha no meio da música, quando todos se fingem de morto sentando no chão.
4 – O presente que não nega o passado e aponta pro futuro – Apesar do passado glorioso, São Luiz não está parada no tempo. Novos artistas estão surgindo, e podemos citar como exemplo o cd solo de Lia Marques, neta de Elpídio dos Santos, e a banda Estrambelhados, que já está em seu terceiro disco. Os dois exemplos citados tem um pezinho no passado, recriando canções de compositores antigos da cidade, mas também apresentam novas músicas e arranjos modernos e criativos. São discos que representam seu tempo, cheios de frescor, mas que ao mesmo tempo mantem uma reverência respeitosa com o passado da cidade. Ou seja, a cara de São Luiz do Paraitinga.
Os quatro motivos acima me parecem suficientes para fazer de São Luiz do Paraitinga uma “cidade musical”. Mas segue um causinho que simboliza bem a alma da cidade. Neste ano de 2017 a prefeitura anunciou que não haveria carnaval “oficial” na cidade (claro que o povo saiu às ruas assim mesmo, e teve carnaval, embora sem a estrutura da prefeitura). O motivo alegado foi falta de verbas, já que o prefeito anterior havia dito que tinha deixado 4 milhões de reais, mas o que a nova prefeita verificou foi um rombo nas contas. Pouco depois já fizeram música sobre o assunto, e parte da letra canta “diz que tem quatro milhões/ Mas nem quatro reais acredito que tem”. E isso já nos dá o bordão a ser usado pelo Ministério do Turismo: “São Luiz do Paraitinga – A cidade onde tudo vira música”.
Regina Aurea Pereira disse:
Filha de um grande cantor violeiro que amava a música e a boemia e de uma mulher de linda voz, claro que conheço as músicas do Elpídio. Infelizmente, não sei cantar.
Mãe de meninos apaixonados pelo mundo, claro que conheço São Luiz do Paraitinga.Infelizmente, só pelos relatos.
As músicas selecionadas trouxeram lembranças boas e o texto me convenceu a conhecer nossa cidade musical, mesmo sem apreciar tanto as marchinhas carnavalescas.