por Gabriel Brito, do Conexão Sudaca
O relato que se segue é uma análise mais emocional do que técnica do clássico deste domingo, como, por sinal, já sugeria a data.
Dias atrás, publicamos mais um elogio ao trabalho metódico e abnegado de Adenor, meio professor, meio pastor, e sua capacidade de renovação. Após a vitória contra o Santos, seguida da extasiante virada sobre o Coritiba, o Corinthians apresentara-se mais uma vez como candidato ao título nacional.
No entanto, nada disso apagava o temor em relação a uma faceta cada vez mais flagrante – e irritante – da chamada “titebilidade”. Apoiado nos seus sólidos “argumentos futebolísticos”, o Corinthians do trabalho e dos resultados friamente obtidos parece desconsiderar outros aspectos que decidem rumos de um jogo que, por mais se tente, continua fora da categoria de ciência exata.
Sentado ao lado de outros dois corintianos de lei, esperávamos um clássico à altura de suas exigências sentimentais. Mais uma vez, nossa expectativa foi atirada no lixo. Depois de uma semana marcada pela mancha histórica do primeiro derby de torcida única, instrumento demagógico que dessa vez não foi combatido pela diretoria do clube, ao contrário do que fez Mario Gobbi na primeira visita ao novo Palestra, o que se viu em campo só piorou.Fica a sensação de que o embotamento das emoções e o processo de transformação da realidade em cópia perfeita do videogame vai acabar com o valor dos clássicos em São Paulo, essa terra deveras apegada ao regramento, militarização e restrições mil.
Assim, continua a se impor a visão corporativa e aburguesada da vivência do futebol, para alegria dos “nobres” de hoje – tanto a leste como a oeste, pra ficar claro. Ao mesmo tempo em que se versa contra comportamentos violentos, estimula-se o não convívio, até chegarmos ao ponto de aceitar resignadamente o dispositivo da torcida única, patrocinado por promotor cujo mentor já mostrou todo o fiasco, quando não má fé, de suas políticas antiviolência. Gente que é parte de péssimas gestões de tudo que seja público, isso se não falamos da pura e simples roubalheira, como se vê na sucateadíssima educação pública, dentre outros escândalos que sob a atual presidência da Assembleia Legislativa sempre morrem numa gaveta.
Portanto, nossas frustrações se dão tanto fora como dentro de campo. E, a nosso ver, uma coisa influencia na outra. Ao aceitar jogar sem sua torcida – e não adianta estampar FIEL nas costas e rejubilar os admiradores de departamentos de marketing – o Corinthians aceita também a condição de pária na casa alheia, o que reflete em todo o clima e andamento do jogo.
Dentro de tal contexto, não surpreende o alto número de cartões amarelos e o critério levemente mais tolerante ao dono da casa. Já não bastasse um futebol menos de “pegada”, quase sempre conduzido por árbitros de mentes policialescas, ávidos em distribuir cartões pra “controlar”, fica-se num claustro onde não há um único aliado, um único grito de apoio a escapar em meio ao burburinho da caldeira alviverde.
E mais uma vez o Corinthians se acomodou em ser um visitante especulador. Pela segunda vez no ano, o Palmeiras vence o clássico muito mais por conta da garra e disposição, a ganhar a maioria das divididas, correr mais, ainda que sob pior elaboração, o que na verdade não chega a ser o caso, pois Cuca sabe montar boas equipes.
Aliás, vale um olhar sobre a personalidade dos comandantes. Tite entra em campo com o “trabalho da semana”, já sabedor de quem sairá jogando, quem receberá chances no segundo tempo e quem muito dificilmente entrará. Como um algoritmo que já sabe das nossas preferências e, sob uma lógica predeterminada, decide o que aparece em nossas timelines.
Cuca, se já teve sua emotividade criticada em diversos momentos, também merece elogios pelo mesmo fator. Seu envolvimento com o momento, com aquilo que está diante de seus olhos enquanto a bola rola, também incide positivamente. Sentir o jogo e saber quem pode entrar melhor, a despeito de quem “tirou as melhores notas” na semana, pode ser mais efetivo do que apostar apenas na teoria do trabalho acumulado e da “gestão de pessoas”, tão marcantes no gaúcho.
Cleiton Xavier estaria encostado até agora se fosse treinado – ou gerido – por Tite. Mas seu valor técnico pode pesar em certas ocasiões, como no segundo tempo da semifinal do Paulista-2015, quando regeu sua equipe na busca do 2-2 em Itaquera, seguido de vitória nos pênaltis. Praticamente a única contribuição que deu ao seu time no ano, mas daquelas que ficam na memória do torcedor.
Tite se mantém fiel a suas planilhas, incapaz de dobrar seu próprio critério de escolha. Luciano já mostrou que não voltou bem, mas o treinador parece querer esgotar todas as chances, até que o coloque de volta no banco sem perder a lealdade do atleta.
André entrou e achou um gol contra o Coxa, logo, só podia ser ele a entrar na reta final do jogo seguinte, apesar de tudo levar a crer que Lucca era o mais indicado num duelo de velocidade e intensidade. O mesmo vale pra Danilo, um ídolo, mas que não aguenta mais jogar por tantos minutos nas condições descritas.
Isso pra não voltarmos à Libertadores, na qual o treinador foi até o fim com Rodriguinho, Romero, Alan Mineiro e o mesmo André. De resto, dentro da lógica das planilhas, Felipe, mais um protótipo do moderno jogador de laboratório, é o capitão do time, mesmo sem a menor capacidade de incendiar o coração de seus colegas contra o maior rival.
Ademais, parece ter passado batido entre os alvinegros a celebrização da data pelos verdes, que obviamente tomaram o famigerado título de 1993 como motivação para a primeira vitória em derbys na nova casa.
Outra vez, a frieza expulsa a crença na mística, na alma e no “fogo sagrado” que conduzem os homens em suas grandes missões. Por esses fatores pouco contabilizados nas análises dos jogos, o Corinthians só sentiu necessidade do gol quando já era tarde, quando os palmeirenses já se atiravam nas bolas chutadas a seu gol e dispunham dos contra-ataques.
Pra completar o combo da alienação celebrada pelos engravatados que lucram com a passividade alheia, chega-se ao gol de empate. Se Rafael Claus teve coragem de expulsar Cássio por cera na primeira visita à nova arena, não teve o mesmo brio para admitir que não houve falta alguma na subida de Prass, Felipe e Thiago Martins, que culminaria no gol de Bruno Henrique (houve impedimento, mas não foi isso que se marcou).
E, como estão todos acomodados na obediência às normas, ficou tudo bem! Nenhuma indignação, cerco no juiz, confusão com rivais, que em outros tempos justificariam umas duas expulsões em nome da honra da camisa e foda-se STJD, suspensão, comentarista careta. Desculpem os bons moços, mas na sala da minha casa sentimos essa falta de fúria como uma adaga tão dolorosa quanto o gol de Xavier.
“É o que dá estágio com Ancellotti, Mourinho, Real Madrid e blablabla. Podia ter ido ver o Simeone também. Podiam ir ver como se joga e vive futebol na Argentina, Uruguai, Paraguai, Colômbia, afinal, jogamos contra times desses países, não da Europa”, bradavam meus pares na sala de estar.
Não é caso isolado: clássicos têm sido disputados como meros jogos de três pontos. O pior é que a fórmula do campeonato atesta a tese, ainda mais quando nem se sente o cheiro da rivalidade, pelas razões descritas no início.
O problema é que quem não lucra, apenas sofre, precisa de mais. Queremos aquilo que se pode chamar de “alimento da alma”, que justifica a centenária história, seus grandes marcos, façanhas e necessidades. Que justifica, enfim, que nos importemos. Queremos nos emocionar, e não contabilizar 70% de aproveitamento nisso ou naquilo. Queremos engolir o rival, e não enxergá-lo como se fosse igual a Chapecoense ou “Guarani da capital” – termo nefasto que só contribui para a atitude blasé que jamais fez jus à história de humildade dessa instituição.
Queremos mais sujeira e sangue, menos play, start, stop, end, entrevista, banho, casa, treino no dia seguinte. Compreendam-nos!