*Por Luiz Felipe Carvalho
Bater no peito. Batucar um tambor. Assoprar uma flauta feita de ossos. Esta é mais ou menos a sequência inicial da evolução musical da espécie humana, ainda milhares de anos antes de Cristo. Fato é que a gente sempre gostou de fazer um barulhinho, fosse para intimidar um inimigo ou tecer loas de amor a alguém. Trovadores e menestréis, na Idade Média, podem ser considerados os primeiros astros pop, mas havia um sério problema: não era possível dissociar o ato de ouvir música da presença do próprio músico. Thomas Edison inventou o fonógrafo já em 1877, o primeiro aparelho capaz de reproduzir um som gravado. O fonógrafo evoluiu para o gramofone, os primeiros discos em 78 rotações foram lançados, mas música ainda era coisa para poucos, já que era tudo muito caro. Foi o lançamento de toca-discos mais baratos e a invenção do LP de 33 rotações (1948) e dos compactos de 45 rotações (1949) que finalmente levaram a música “portátil” a se tornar realmente acessível à maior parte da população.
Ainda não cheguei onde quero chegar com todo esse preâmbulo. Demorou ainda alguns anos para que Frank Sinatra lançasse o maravilhoso “In the wee small hours”, em 1955, e formatasse a música pop como a conhecemos – ou conhecíamos. Um LP feito à reboque do fim de seu relacionamento com Ava Gardner, e que traz, pela primeira vez, uma unicidade entre as canções, não só tematicamente, mas também nos arranjos e em todo o clima do disco, inclusive na arte da capa. E é sobre isto que quero falar, sobre discos de música pop em formato físico, algo que parece estar aos poucos sumindo do mapa.
Não quero ser melodramático. É certo que os artistas ainda lançam discos. Mas são poucas as pessoas que os ouvem. A maioria, e acho difícil estar enganado, simplesmente seleciona algumas canções que gosta, randomicamente, e as coloca em seu celular, ou em seu programa de música em streaming. É um jeito de se ouvir música, mas definitivamente não é o meu. Costumo dizer que ouço discos, e não música. Claro que isso é um pouco de exagero e provocação. Se eu ouvisse só discos perderia, por exemplo, Hey Jude, que só foi lançada pelos Beatles em compacto e em compilações, e nunca fez parte de nenhum álbum.
Nasci em 1980, e cheguei a comprar – ou ganhar – alguns LPs, mas o formato da minha vida, por assim dizer, é o cd. Abaixo listo alguns motivos que me fazem ser um velho de 36 anos que ainda compra pelo menos 50 cds por ano:
1 – O fetiche de colecionador
Costumo dizer que tenho três prazeres: um quando faço compras de discos, outro quando os ouço e outro quando os coloco junto aos seus colegas de coleção. Neste momento solene eu fico um tempo olhando para o mais recente “induzido” com um sorriso nos lábios. Só o fetiche de colecionador pode explicar o fato de eu achar esse último ato tão prazeroso quanto os outros dois. Fetiche é uma palavra bonita. Minha namorada diz que é doença.
2 – A fisicidade
Não me considero um consumista contumaz, mas no que se refere à música gosto de ter, fisicamente, o produto. Pegar nele. Deixar nele minhas marcas, minhas digitais. Até fico feliz quando cai um pingo de vinho no encarte, ou quando a pontinha dele se amassa um pouco. São as marcas do uso. Mas nunca fiz nada disso deliberadamente, juro.
3 – A arte da capa
Ok, aqui está um quesito em que os discos de vinil dão de lavada nos cds. Mas aprendi a ver charme também nas versões reduzidas, mesmo em discos que também foram lançados em vinil. E muitos artistas que já surgiram na era dos cds se esmeram para lançar produtos diferenciados, investindo também em charmosos e belíssimos encartes, que são verdadeiras obras de arte. O primeiro disco de Marcelo Jeneci, “Feito pra acabar”, é um excelente exemplo. Agora eu vou soar muito blasé, mas realmente não sei se os serviços de streaming oferecem as capas dos discos. Caso ofereçam, ainda assim mantenho meu argumento, invocando o item dois aqui acima.
4 – As informações técnicas do encarte
Uma coisa que me deixa pau da vida é comprar um cd cujo encarte não tem informações sobre o disco. Tem muita gravadora preguiçosa, principalmente no Brasil, mas já comprei disco importado bem pobrinho também. Acho importante, mas não essencial, que tenha as letras, mesmo quando são em português. E claro, os músicos participantes. Assim fiquei sabendo, por exemplo, que Antônio Adolfo já tocou piano em discos da Angela Ro Ro e do Raul Seixas. Costumo ler tudo, até os agradecimentos. De que outra maneira saberia que no encarte de seu disco Lazaretto, Jack White agradece, entre outras coisas, ao baseball, National Geographic, água, inimigos manufaturados, café, chá e açúcar? Não teria como. Aí eu te pergunto, como eu viveria sem isso? Não teria como.
5 – Aquela música escondida
Em geral o consumo de música digital de forma aleatória faz com que a pessoa só escute canções selecionadas. Dificilmente ela vai conhecer aquela que não tocou em lugar nenhum e que ninguém conhece. E aqui não se trata daquela besteira de se gabar de conhecer o que ninguém mais conhece, mas sim do fato de que talvez aquela música seja a melhor do disco. Ou a melhor do disco para aquela pessoa. Mas vamos supor que o contribuinte use os serviços de streaming para ouvir um álbum inteiro. Ele ouve o disco alguma vezes, e acaba escolhendo as músicas de que gosta mais, que passam a fazer parte de sua lista. E então aquelas outras coitadinhas nunca mais serão ouvidas. E uma verdade inabalável é que o tempo passa, as pessoas mudam e, mais voláteis ainda, os estados de espírito mudam. E aquela faixa que não tinha “funcionado” talvez seja a que ele precisa ouvir agora. Tendo o disco em formato físico também há o risco de ela ser sempre pulada, mas também há o risco de ela tocar sem querer, porque ele foi ao banheiro e deixou o cd rolando, e ser redescoberta. Aconteceu comigo, por exemplo, com a canção “Black Cowboys” do disco “Devils & Dust” de Bruce Springsteen. Eu a ouvia pouco, até que em um dia mais sensível eu a escutei prestando atenção na letra e chorei. Tornou-se minha preferida do álbum.
5 – Um instantâneo do momento do artista
Muito mais do que uma canção isolada, um disco é o retrato de um momento da vida de um artista. E isso vale tanto para intérpretes, que escolhem seu repertório baseados no seu momento pessoal, quanto, obviamente, para autores que escrevem suas próprias canções, seja em bandas ou em carreiras solo. E mais: cada disco é também um retrato de seu tempo. Acho que foi a crítica do cineasta francês Éric Rohmer que disse que todo filme é um documentário de sua época. O mesmo vale para os discos.
6 – As pequenas maravilhas
Esses são meus motivos mais concretos, mas existem outros, menos facilmente categorizáveis. Exemplifico. Tenho um grande amigo que não entendia essa coisa de se sentar para ouvir música. Para ele as canções eram sempre trilhas sonoras para algo que ele estava fazendo, e não um fim em si. Eu sempre adorei me sentar, com uma(s) cerveja do lado, e simplesmente ouvir música. Num desses dias estava ouvindo um álbum do Cartola, e peguei o cd nas mãos. Ainda não havia retirado o encarte, que tem uma foto do mestre sorrindo, em preto e branco. Por algum efeito de luz, me vi refletido na caixinha de plástico do cd. Então, naquele momento, eu não estava apenas ouvindo Cartola: eu estava ao lado dele.
E esse me parece um poético e definitivo motivo para encerrar essa minha loa.
*Luiz Felipe Carvalho é jornalista, colecionador voraz de CDs e escreve mensalmente sobre música na Central 3
Inês disse:
Realmente, é lamentável a falta de informações nas capas dos cds. Já deixei de comprar por esse motivo. Ha capas que nem identificam o artista, um absurdo! E a presença das letras enriquece a escuta, permite que se re-interprete, que se acrescente outros sentimentos à melodia, e a percepção da musicalidade das palavras….
Fechou o artigo com chave de ouro, Luiz Felipe!!!
Regina Aurea Pereira disse:
O LP vive! Lendo o texto pensei na minha coleção de discos de vinil (basicamente Roberto Carlos).
Adoro ouvir aquelas músicas que conservam o “risco” da agulha. Nesses momentos, estou ao lado da minha história, assim como você se sente ao lado do Cartola.
. Este texto é uma homenagem à música, ao artista,à vida, às pessoas que partilham o trabalho – músicos, compositores, técnicos, fotógrafos, amigos… E, principalmente, reflete a sensibilidade de um eterno sonhador.