No espaço do Sem Firulas buscamos promover a disseminação de conteúdos bastante diversos e amplos. Apesar de termos alguns assuntos preferidos, não adotamos uma linha editorial e portanto raramente costumamos repetir temas.
Nas últimas semanas, no entanto, acabamos escrevendo dois textos que abordaram a importância do fator casa. No primeiro, fizemos um levantamento estatístico apontando como é prejudicial vender mandos de campo do ponto de vista esportivo. No texto seguinte, homenageamos o Avaí principalmente por ter se negado a vender um mando de campo que lhe renderia uns bons trocados a mais.
No texto de hoje, vamos fechar a trilogia improvisada trazendo um caso extremo e atípico: A mudança involuntária de lar do Shakhtar Donetsk.
Desde a metade de 2014, Donetsk é controlada por forças armadas pró-Russia e por conta do conflito, o Shakhtar foi obrigado a abandonar a cidade.
Nas palavras do CEO Sergei Palkin “Do dia para noite nós perdemos tudo. Nós perdemos um dos melhores estádios do mundo, perdemos um CT moderno, mas principalmente, perdemos nossos fãs. Jogar sem nossos torcedores e vencer sem nossos torcedores é a situação mais complicada e problemática de todas”.
Atualmente, os jogadores moram e treinam em Kiev, mas mandam as partidas em Lviv. As duas cidades ficam 541 Km distantes uma da outra.
“Não foi muito conveniente por causa das constantes viagens. Penso que esse foi o principal motivo para não termos sido campeões no ano passado.” Declarou o goleiro Anton Kanibolotskiy.
O estádio de Lviv, onde a equipe preta e laranja têm atuado, comporta 35 mil pessoas. Apesar de ser um número relativamente alto, estamos falando de 20 mil pessoas a menos do que a capacidade máxima do moderno estádio Donbass Arena, onde a equipe costumava atuar em Donetsk. Além disso, a arena do oeste ucraniano geralmente recebe um público bastante abaixo da crítica: aproximadamente metade dos assentos ficam vazios quando o Shakhtar joga.
A baixa quantidade de torcedores traz prejuízo ao clube, mas a qualidade da torcida também é lamentada pelos jogadores. Marlos, ex-São Paulo que se juntou ao clube depois de atuar pelo Metalist, afirma em tom resignado: “Foi um ano difícil porque a gente não estava com o calor da nossa torcida por perto. Nós jogamos todos os jogos fora de casa. No jogo contra o Bayern pela Champions League, as pessoas presentes preferiam admirar o time alemão à torcer pro Shaktar.”
Apesar de toda a confusão política, o Shakhtar ainda mantém um laço afetivo forte com sua região local e está intensamente envolvido com a ajuda humanitária para trazer a normalidade de volta à cidade.
Sergei Palkin expõe o sentimento de todos quando diz: “O Shakhtar é um símbolo de Donetsk. Por isso, nós precisamos fazer o possível e o impossível para restaurar a paz na região”. Na sequência, Marlos sentencia: “Nós temos a esperança de que um dia acabe o que está acontecendo para que possamos voltar para o nosso estádio, voltar para nossa casa. Um lugar onde as pessoas amam o Shakhtar.
Coincidentemente, o vídeo abaixo contando a história do exílio do clube mais brasileiro da Ucrânia praticamente conclui nossos textos anteriores e reforça ainda mais nossa indignação com a venda de mando de campo principalmente quando praticada por clubes da série A, que contam com mais recursos e possibilidades.
Precisamos fazer algumas ressalvas quando analisamos a situação na Ucrânia. Entendo que o fato do clube estar fugindo de uma guerra seja um componente forte que não pode ser desprezado. Este fato não foi citado no vídeo, mas certamente deve ter influenciado o psicológico dos jogadores e afetado o desempenho dentro de campo além do cansaço que é bastante ressaltado nas entrevistas. Psicologicamente uma coisa é jogar fora de casa por opção como fazem os clubes daqui e outra coisa é jogar fora de casa por não ter opção como aconteceu por lá.
Uma outra diferença que vejo é o fato de aqui termos alguns clubes com abrangência nacional. Quando um Corinthians, um São Paulo, um Palmeiras, um Flamengo ou um Vasco vendem um mando de campo, eles realmente podem contar com uma massa torcedora apaixonada ainda que não estejam jogando em seus domínios. Penso que isso não deve acontecer com o Shakhtar em nenhuma cidade fora de Donetsk.
No entanto, guardadas as devidas diferenças podemos sim traçar um paralelo comparativo que nos deixa com uma pulga atrás da orelha. Por que na Ucrânia, um país com uma tradição muito menor do que a nossa em futebol, é preciso estourar uma guerra para fazer com que uma equipe atue fora da sua cidade e aqui no Brasil vendemos esse “direito” a troco de uma mixaria? Como um jogador do Shakhtar consegue reconhecer a importância de jogar em casa, tanto esportivamente como pela ótica cultural, histórica e simbólica e nossos dirigentes e jogadores parecem não se importar tanto com isso?
O futebol é um jogo global, fincado em raízes locais. Um time de futebol deve servir ao seu bairro e à sua cidade seja mandando as partidas em seu estádio sempre que puder, seja estabelecendo um elo humanitário com a sua comunidade.
Espero que não precisemos de uma guerra para nos darmos conta que estamos abrindo mão de um privilégio sagrado. Um privilégio que nos confere não apenas sentido, tradição e história como também nos proporciona uma vantagem significativa para vencer as partidas.