Por Gabriel Brito
Vigésima primeira Copa do Mundo, sétima da minha vida, primeira com a pequena Ana Cecília no colo. Certamente o Mundial com o qual me sinto menos envolvido. Dei conta disso ao notar que nem de perto havia decorado os grupos. O que se mantém igual é a pretensão de assistir a todos os jogos.
Os motivos deste aparente desencanto podem ser vários, desde o cansaço que o futebol-negócio nos causa até a vertigem alucinante de um futebol brasileiro que teve o jogo mais importante do campeonato nacional 12 horas antes da partida de abertura. E cujo êxodo, a ponto de formarmos garotos que antes de construir qualquer história com a camisa de um grande clube não têm pejo de assumir seu sonho europeu, sem dúvida alguma nos tira um pouco das energias de outrora.
Posto isso, lá estava eu diante da tevê a conferir mais uma chatíssima cerimônia de abertura, desta vez com o mérito de ter sido mais curta que as anteriores.
Em campo, uma partida de abertura que nada prometia e talvez por isso mesmo tenha sido tão leve. Rússia e Arábia, essa sem dúvida, não convertem suas portentosas economias em talento futebolístico.
No primeiro caso, estranho, pois investimento no futebol não faltou nos anos 2000. Desse modo, a seleção e sua bela camisa vermelha ainda carregam destaques da Euro-2008, sua única boa campanha da era pós-soviética.
O lado saudita é de dar pena. Time inexpressivo, comandado por monarco-oligarcas que fazem o que querem com esse jogo de bola. Revoltante ver o técnico do meu Corinthians trocar um trabalho que já era histórico em nome de um “projeto” num país no qual uma mulher não pode sair na rua, o que ajuda a explicar a introdução do texto, óbvio.
Considerando o tradicional nervosismo que qualquer time local tem em abrir o maior campeonato de todos, um adversário perfeito.
Assim, o 2–0 do primeiro tempo veio sem grandes segredos. No primeiro gol, a impressão de empurrão de Gazinskyi foi logo desmentida pelo replay; foi só escorregão do zagueiro. No segundo, uma manjada saída de jogo de um time que não prima pela velocidade foi parar no golaço de Cheryshev. Capacidade de recuperação próxima de zero dos sauditas.
O terceiro gol reitera essa fragilidade física, quando o zagueiro não salta uma gilete e Dzyuba marca. Fim de papo. Os dois gols depois dos 40 minutos, a selar a goleada, reforçam a ideia de que o time da monarquia fundamentalista é o pior de todos no aspecto físico.
Destaque para Cheryshev, improvável herói saído do banco ainda no primeiro tempo, com dois golaços. Ambos com classe e bonitas definições.
E também para a transmissão feminina, sob o comando da voz da narradora mineira Isabelly Moraes, na FoxSports, por onde vimos este cotejo inaugural. Essa é a boa lufada de ar nas transmissões e, principalmente, em nossa combalida cultura machista, ainda mais em tempos de jornalismo mais afeito ao estúdio do que às ruas.
Fora de campo
Para além das quatro linhas, impossível ignorar a política em países tão marcados por regimes autoritários que frequentemente mexem no tabuleiro geopolítico.
Mais ainda ao depararmos com a foto das tribunas, com Giovanni Infantino, presidente de uma FIFA que faz de conta que os tempos são outros, em meio ao novo e todo poderoso príncipe do reino Mohamed bin Salman e o inefável Vladimir Putin, presidente e autocrata do país-sede.
Na grande mídia, não faltam debates sobre o déficit de democracia russo e as manifestações de intolerância, especialmente racistas e sexistas, que podem marcar esses dias de “confraternização dos povos”. Até aí beleza, mas parece até que vivemos um éden democrático por aqui.
Ver a Globo falar em cerceamento à livre-manifestação e lembrar do que houve por aqui nos protestos contra a Copa, inclusive no dia de abertura, quando uma manifestação na zona leste foi massacrada pela Polícia Militar de São Paulo, é de chorar. Lembrar do papel do jornalismo hegemônico no ciclo de 2014 é pra chorar mais ainda.
Mas o que mais impressiona é ver a presença de Bin Salman não suscitar discussão alguma sobre o que se passa no reino do petróleo. O processo sucessório que levou o atual príncipe ao poder, com direito à prisão e até torturas de membros do alto escalão da dinastia nas lutas intestinas pelo poder, é coisa que faz da Lava Jato brincadeira de criança (ver aqui e aqui)
A prisão de lideranças feministas locais que lutavam pelo singelo direito de dirigir sem autorização de pais, irmãos ou cônjuges não poderia passar batida. O detalhe é que no fim deste mês tal direito será enfim concedido, o que não quer dizer que o despotismo tenha descansado. Os monarcas querem os louros de sua “generosidade” (ver aqui).
Por fim, cabe constatar a semelhança do público, ordeiro e “família”, com aquele das últimas copas. De fato, um evento com cara cada vez mais corporativa, em estádios cujo padrão arquitetônico já são uma marca. Tristes tempos em que batemos o olho no campo e não conseguimos distinguir o estádio e cidade, como se o videogame tivesse superado a realidade.
De toda forma, a bola rolou. E assim será até 15 de julho.