Por Victor Faria
Em uma padaria, dia desses, contava ao meu amigo Castro as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades para poder do esporte viver.
Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive nos Emirados Árabes, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos jogadores, que atribuíam todos aqueles planos táticos a meios de feitiçaria e adivinhação. Pelo menos era o que parecia.
O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:
– Tens levado uma vida bem engraçada, Tite!
– Só assim se pode viver… Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas?
– Cansa-se! Mas, não é disso que me admiro. O que me admira, é que tenhas obtido tanto sucesso aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.
– Qual!? Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui contratado para ser professor de futebolês?
– Quando? Aqui, depois que voltaste do ano sabático?
– Não, antes. No começo da carreira. E, por sinal, fui efetivado como técnico por isso.
– Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
– Bebo.
Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos e continuei:
– Eu havia a pouco me aposentado dos campos e estava literalmente na miséria devido aos custos das cirurgias no joelho e da faculdade, vivia sem planos concretos, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no jornal da cidade o seguinte anúncio:
“Precisa-se de um professor de prática futebolesca. Cartas, pranchetas, etc.”
Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá tantos concorrentes; se eu capiscasse quatro jogadas bem elaboradas; ia apresentar-me. Saí do café que estava e andei pelas ruas, a imaginar-me um professor de futebolês. Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Municipal. Não sabia bem que livro deveria consultar; mas, entrei, cumprimentei o porteiro, recebi um aceno de volta e subi. Na escada, acudiu-me verificar a Grande Encyclopédie, letra F, a fim de consultar o artigo relativo ao futebolês e à prática futebolesca. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que o esporte era praticado primeiramente no arquipélago de Sonda, colônia inglesa imagino eu, oriundo do grupo maleo-polinésico, possuía um desenrolar tático digno de nota, em curtos espaços de campo, e regras derivadas do velho esporte bretão.
A Encyclopédie dava-me a indicação de trabalhos sobre tal esporte malaio e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei alguns desenhos, a sua aplicação figurada e saí. Novamente andei pelas ruas, perambulando e idealizando planos.
Na minha cabeça saltavam as jogadas; de quando em quando consultava minhas notas; entrava no campo e fantasiava cada movimentação para guarda-las bem na memória e habituar a mente a naturalmente executar. À noite fiquei em meu quarto a estudar o “bê-á-bá” malaio com tanto afinco que, de manhã, já o havia decorado perfeitamente.
Convencido do que deveria fazer, saí; mas não sem antes encontrar o encarregado logo me cobrando o aluguel atrasado:
– Senhor Adenor, quando salda a sua conta?
Respondi-lhe então, com a mais encantadora esperança:
– Breve… Espere um pouco… Tenha paciência… Ainda serei nomeado professor de futebolês, e… Por aí o homem interrompeu-me:
– Que diabos vem a ser isso, senhor Adenor?
– É um esporte praticado lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é?
Oh! Alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com aquele falar típico dos portugueses:
– Eu cá por mim não sei bem; mas ouvi dizer que são terras lá pros lados de Macau. Senhor Adenor, sabes disso?
Animado com esta saída que me deu a história do futebolês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi propor-me à prática do esporte oceânico. Redigi a resposta e em seguida voltei à biblioteca para continuar com os estudos futebolescos.
Ao cabo de alguns dias, recebi uma carta para ir encontrar o doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, presidente do Guarany de Garibaldi. É preciso não esquecer que entrementes continuei estudando o jogo, isto é, o tal futebolês. Além dos desenhos táticos, fiquei sabendo o nome de alguns jogadores e técnicos antigos e duas ou três regras próprias do esporte.
Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, com maternal carinho, as mangueiras, perfiladas em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram, me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza…
Era uma enorme sede que parecia estar deserta; estava maltratada, mas não sei por que me veio a pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era pintada. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um funcionário aparentemente antigo, cujas barbas e cabelos de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.
Na sala do clube, havia uma galeria de retratos. Nada que parecesse tão relevante. Esperei um instante o dono do time. Tardou um pouco. Foi cheio de respeito que o vi chegar.
– Eu sou – avancei – o professor de futebolês que o senhor disse precisar.
– Sente-se – respondeu-me o velho – O senhor é aqui de Garibaldi?
– Não, sou de Caxias.
– Como? Fale um pouco mais alto, já não escuto bem.
– Sou de Caxias do Sul – insisti.
– Onde fez seus estudos?
– Em Campinas.
– E onde aprendeu o futebolês? – indagou ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos.
Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma história. Contei-lhe que meu pai praticava o esporte. O velho ouviu-me atentamente, considerou demoradamente minhas explanações, parecia julgar meu conhecimento esportivo malaio.
– Então, está disposto a ensinar o futebolês a mim e aos jogadores?
A resposta saiu-me sem querer:
– Pois não.
– O senhor há de ficar admirado – aduziu o presidente – que eu, nesta idade, ainda queira aprender algo, mas…
– Não tenho que admirar. Tem-se visto exemplos e mais exemplos…
– O que eu quero, meu caro senhor…?
– Tite – adiantei-me.
– O que eu quero, meu caro senhor Tite, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que sou tataraneto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro com figuras e desenhos esquisitos, a que tinha grande estimo. Fora um hindu ou um siamês que dera-lhe, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu tataravô. Em seu leito de morte, chamou meu avô e disse: “Tenho este livro aqui sobre futebolês. Diz-se que evita desgraça e traz felicidade ao time que o tem. Eu não sei nada ao certo.” Meu avô não acreditou muito na história, mas o manteve guardado. Cheguei até a esquecer dele; mas o manteve guardado. Cheguei até a esquecer dele; mas, de uns tempos a essa parte, tenho passado por tanto desgosto com o time que lembrei-me do talismã familiar. Tenho que o entender. Eis aí.
Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o funcionário, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera seus melhores jogadores, os medianos, só lhe restando alguns veteranos e os meninos da base, cujo talento estava reduzido a um garoto, ainda débil de corpo e de condição física frágil e oscilante.
Veio o livro. Era um antigo calhamaço, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia saber a data de impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava dos feitos do príncipe Kulanga, craque futebolês de muito mérito.
Logo informei disso ao velho senhor que, não percebendo que eu tinha chegado ali pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber futebolesco. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de pagamento e tempo de contrato, comprometendo-me a implantar o futebolês ao time antes de se completar um ano.
Dentro em pouco, dava minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente como eu. Não conseguia perceber sequer a organização tática do time. Enfim, em menos de uma semana já não acompanhava os treinamentos e logo só se interessaria pelos resultados.
Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que os jogadores, principalmente os mais experientes, tiveram por mim. Que coisa única! Eles não cansavam de repetir: “É um assombro! Tão moço! Se soubéssemos disso antes, ah! Onde estaríamos!
O presidente estava contentíssimo. Ao fim de dois meses desistira de vez da aprendizagem, mas se entusiasmara com o que via em campo, um dia sim outro não aparecia para saldar o grupo. Bastava ver o time em campo, disse-me uma vez, não importava entender, não se opunha, gostava mesmo é de ficar a admirar. Assim evitava a fadiga e cumpria o encargo. Sabes bem que ate hoje não sei bem de futebolês, mas compus umas jogadas bem boladas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele se encantava!
Ficava extático, como se estivesse a ser movido por música. E eu crescia aos seus olhos!
O bom velho atribuía à nova fase do time ao futebolês implantado, e eu estive quase a crer também.
Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal desporto malaio. Esse meu temor foi grande quando fui convidado a dirigir um time de maior torcida, de maior destaque, magnitude. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, a continuação do trabalho. – “Qual!? Retruca ele. Vá, menino; você mais que ninguém sabe futebolês!” fui. Cheguei ao Caxias com excelentes recomendações. Foi um sucesso.
O diretor do novo time logo me apresentou aos conselheiros do clube: “Vejam só, um homem que sabe futebolês – que portento!”
Os resultados obtidos naqueles campeonatos levaram-me a comandar o time do Grêmio. Na chegada ao tricolor gaúcho, um dos diretores me dirigiu o olhar com mais ódio do que com inveja ou admiração. Talvez pela derrota no último campeonato estadual um ano antes. E todos me indagavam: “Então sabe futebolês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!”
Imagina tu que até aí nada sabia de futebolês, mas estava empregado e iria representar uma equipe na Série A do Campeonato Brasileiro.
Soube que o velho presidente do Guarany veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no testamento.
Pus-me com afã nos estudos das práticas futebolescas, esportivas maleo-polinésicas; mas não havia meio!
Depois da conquista da Copa do Brasil daquele ano, parecia-me que não tinha a energia necessária para fazer entrar na cabeça dos jogadores aquelas táticas e movimentações esquisitas. Comprei novos livros, assinei revistas, acompanhei outros times, o diabo, mas nada!
E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: “Lá vai o sujeito que sabe futebolês.” Os fanáticos consultavam-me sobre a disposição dos atletas em campo, as variações durante a partida. Recebia cartas de admiradores de outras regiões, os jornais citavam meu nome, meu saber e recusei aceitar uma turma de treinadores sequiosos de entenderem o tal futebolês. A convite da redação, uma vez, no jornal da cidade, escrevi um artigo de quatro colunas sobre a prática esportiva da ilha de Sonda antiga e moderna…
– Como, se tu nada sabias? – Interrompeu-me o atento Castro.
– Muito simplesmente: primeiramente, descrevi o arquipélago com o auxílio de enciclopédias e cartografias, e depois citei a mais não poder os feitos do príncipe Kulanga.
– E nunca duvidaram? – Perguntou-me ainda o meu amigo.
-Nunca! Isto é, uma vez quase me complico. Estávamos no Japão com o time do Corinthians para a disputa do Mundial de Clubes e eis que me aparece um tipo bronzeado que falava uma língua estranha. Ninguém o entendia, mas parece que era possível entender os dizeres “Sonda” e “futebolês”. Sabendo do meu conhecimento sobre os esportes da região, pediram-me que fosse ter com o tal homem. Demorei-me a descer, mas fui afinal. Quando cheguei, ele já havia partido, mas o assessor de imprensa do time jura que o mesmo praticava o futebolês. – ufa!
Chegou, enfim, após diversas conquistas, a época de meu recesso, meu retiro sabático, e lá fui eu pra Europa. Que delícia! Assisti a diversos jogos e a treinos preparatórios. Quando voltei, o presidente alvinegro me pediu desculpas por não ter me dado a continuidade necessária e pediu que eu voltasse ao comando do time. Já conhecia meu trabalho e julgara que melhor opção não haveria. Aceitei suas desculpas e explicações, e com a certeza de que teria autonomia na montagem da equipe e total liberdade para implementar o conceito de titebilidade.
No tempo que fiquei afastado não perdi tempo nem dinheiro. Passei a ser a glória de uma nação, o preferido dos brasileiros para dirigir a seleção. Não aconteceu, mas, ao retornar ao clube do Parque São Jorge, recebi uma ovação de milhares de torcedores e até o ex-presidente da República, dias atrás, convidara-me para um almoço em sua companhia.
Dentro de um ano, se todo sair como planejado, chegaremos novamente ao outro lado do Mundo, onde já estive e pretendo novamente chegar.
– É fantástico – observou Castro, agarrando o copo de cerveja.
– Olha, se não fosse este desporto, sabes que pretendi ser?
– Quê?
– Bacteriologista eminente. Vamos?
– Vamos.