Por Luiz Felipe de Carvalho
Ganhei meu primeiro violão quando era bem novo. Por muitos e muitos anos ele foi uma peça de decoração em minha casa. Ficava ali, mais ou menos como a quase totalidade das bicicletas ergométricas espalhadas pelo mundo: totalmente destituído de seu intento original.
Não foi culpa de meus pais. Eu adorava – e ainda adoro – ver meu tio tocar violão, e eles me deram o instrumento na melhor intenção de despertar em mim aquela vontade de aprender. Não me forçaram a fazer aula, nem nada disso. Iria depender de minha vontade, e nada mais.
Durante um bom tempo, essa vontade não veio. Ali por volta dos treze anos bateu uma vontadinha, porque seria uma boa maneira de me aproximar daqueles seres mitológicos dos quais eu tinha tanto medo: as mulheres. Me lembro de uma excursão da escola, em que um grande amigo deu um beijo na menina que eu gostava. Eu pensei “porra, se eu tivesse um violão aqui no ônibus eu tocaria “Poderosa”, da Banda Brasil (nota do autor nos dias atuais: pois é…) e esse beijo seria em mim” (hoje eu sei que meu violão provavelmente seria a trilha sonora do beijo deles).
Mas mesmo essa ilusória perspectiva de dar meu primeiro beijo não me fez ir atrás de um aprendizado sério. O máximo que eu fiz foi aprender umas notas da marcha fúnebre (parece piada, mas é sério), do tema de Top Gun (“Take my breath away”) e do tema de Grease (“Summer Nights”, aquela do “tell me more, tell me more!”) com um amigo (não é o mesmo do beijo!), mas tudo bem tosco, com uma corda só do violão. Inclusive ensinei pro meu irmão essas singelezas, e 27 anos depois ainda é tudo que ele sabe de violão – mas nunca se esqueceu!
E lá se foi meu pequeno DiGiorgio® outra vez para o seu ostracismo. Passaram-se o ginásio e o colegial (é, sou velho), e então, na faculdade, logo no primeiro ano, finalmente aprendi alguns acordes de verdade, usando todas as cordas do violão. Dessa vez o objetivo não eram seres mitológicos, mas quase isso. Era a busca de um sonho, que nem era tanto meu, mas de um amigo, que me ensinou os quatro acordes de uma composição sua (tinha até pestana!), e então a partir deles aprendi todos os outros. Montamos uma banda que era basicamente feita de quimeras, um material lindíssimo mas complicado de se transformar em algo concreto. Ele me ensinou muita coisa, e eu ensinei pra ele que os Beatles eram melhores do que o Oasis – pois é, ele achava o contrário, mas foi salvo a tempo.
Ainda na faculdade, vieram outros amigos, outras canções, minhas composições, uma banda, um começo de quase-carreira de músico, barzinhos, alguns shows, uma demo, a dissolução da banda, a desistência da quase-carreira (sem ressentimentos), alguns discos totalmente independentes, e o violão definitivamente como parte da vida.
Parece um bom final para essa história, mas ainda não. Com o passar do tempo, meu violão, que já não era mais o pequeno DiGiorgio® sem nome, mas um Crafter® chamado Aline, foi ficando meio de lado. Outros interesses, trabalho, vida corrida, todas aquelas desculpas que a gente arruma. E Aline só saia de sua roupinha de guardar para alguma festa de família, ou vez-em-quando-quase-nunca comigo sozinho.
E veio o coronavírus. E no começo da pandemia, sem muita informação, com muito medo, fiquei muito tempo sem ver minha namorada. E comecei a pegar o violão quase diariamente para gravar vídeos e mandar para ela. Aline mal acreditava em nosso reencontro, e era como andar de bicicleta, com a memória mecânica fazendo a sua parte. Junto com Aline, me reencontrei com o Feu, com a Regina, com o Marcílio, com o Elias, com o Boto, com o Daniel, com o Dom, com o Marcos, com a Chris, todos personagens dessa história, que agora nomeio, e que de uma forma ou de outra me (re)conectaram ao violão.
Não existe saldo positivo na crise em que vivemos. Como pensar em algo assim quando tantos perderam suas vidas? Mas pequenos reencontros, minúsculas mudanças, ligeiros aprendizados, talvez sejam o que restará de consolo quando um fragmento de luz se apresentar no fim do túnel.
Até lá, lembrarei que Caetano tem razão: como é bom poder tocar um instrumento.
P.S.: o título desse texto é um verso de “Poderosa” (Banda Brasil), esse grande clássico do cancioneiro popular.
REGINA AUREA PEREIRA disse:
O meu coração fica feliz com você. Texto que revive as memórias de um jovem que se encanta pela música
e descobre nela um motivo para aprender e enxergar luz em tempos sombrios. Aline, muito obrigada!