Por Leandro Iamin
A pauta urge. Falta o profissional realmente bamba o suficiente para conquistar a confiança da turma. O círculo é fechado e a premissa original, chamada “fé”, une pessoas e, por consequência, ideias na mesma medida que afasta sem tolerância os observadores céticos, jornalistas inclusos.
Chamar o grupo de Atletas de Cristo não é, após 33 anos de vida, muito exato. Os Atletas de Cristo fazem parte de uma espécie de folclore do futebol brasileiro dos anos 90, e conseguiram, de fato, a lealdade de muitos esportistas sem, no entanto, terem suas intimidades impublicáveis desnudadas. O mundo mudou bastante dos anos 90 pra cá, e, embora a fé continue despertando a mesma sensação de proteção aos que a encontram, a prática é um pouco mais sofisticada e, ao mesmo tempo, intimista.
Um time de futebol tem sua ala evangélica, ou cristã, ou alguma denominação derivada destas. Essa ala tem seu próprio grupo, vamos dizer assim, de Whatsapp. E neste grupo está lá o representante da fé, o profissional da palavra, o estudioso dogmático. Ali, na mesma telinha onde, noutros grupos, estão o empresário e a família. Nas viagens da vida da bola ou nas frestas da rotina dos treinos, esse grupo se reúne pessoalmente e este “novo” personagem do esporte é ouvido com mais atenção que o próprio técnico dos atletas. E na mão dele, argumentos irrefutáveis se unem a práticas de exibição da fé. A concorrência é potente a qualquer voz contraditória e, em casos extremos, o contraditório minoritário fica sem espaço no vestiário.
Jogador de futebol se torna rico, muito rico. Se cerca, portanto, de tentações medonhas, falsos amigos, energias negativas, inveja e o escambau. É preciso guardar o dinheiro, menino, e aplicar uma parte. Não jogue fora nem divida o que fatura. Ele, o dinheiro, não aceita desaforo. Feche-se em sua família, não deixe que rompam ou invadam seu cinturão familiar de oração e conforto. Pense neles, não vale a pena nenhuma loucura que ponha em jogo o futuro deles. Orientações que servem, claro, igualmente ao jogador pobre, que também reforça estas fileiras. Com alguma interpretação a mais, é possível enxergar o próprio futebol, essencialmente um jogo de difícil compreensão emocional e cercado de contradições e salamaleques, como uma tentação medonha. Desfrutar este esporte pode desdizer muito do que é, vá lá, o correto.
Foi de repente, poucos anos atrás, que a comemoração “todos de joelhos após os abraços” pipocou pelo país. A mais recente é aquela apontada para o peito e depois para o céu, dizendo “não fui eu, foi Deus”. A hora do gol é a hora que o patrocinador mais quer aparecer, dá até cartão amarelo ocultá-lo nesta hora. Entre os negócios e a gratidão religiosa, tudo ao redor do autor do gol está protegido com um gesto neutro para um, devoto para outro. O tal do staff, tal qual aquele arroz que abraça o feijão, complementa a lista de valores que os homens da fé colocam na dieta do atleta: não se meta em confusão política, não fale verdades inconvenientes, não se torne alguém muito diferente do seu rebanho, mas seja diferente o suficiente para caber em um contrato bom, fale bem, mas não muito, faça o bem, mas não muito, que a linha tênue que te põe numa polêmica te ameaça sempre, pegue até uma doença, mas nunca pegue um apelido pejorativo.
Estão todos munidos de boas intenções. A palavra certa, o conselho positivo e a disciplina estimulada em uma linguagem de fé que cabe na cabeça de quem ouve já ajudou e até salvou muitas carreiras, e é legal saber que um jogador rico sustenta e paga bem outras famílias. É, entretanto, uma questão simples de valores – e não escrevo com coração ateu/comunista, mas, sim, com coração de torcedor – o incômodo com tantas cercas, ainda que bem-intencionadas, entre um jogador e uma arquibancada, que, paradoxalmente, hoje em dia nem precisam mais de alambrado no Brasil para se separarem, mas nunca estiveram tão longe entre si. Pois que uma cola pegajosa do discurso de qualquer fé envolve medo ou culpa, ao passo que a rigidez do pensamento econômico mesquinho subverte a possibilidade da espontaneidade como propaganda boa, e o resultado disso é o fim do jogador errante. E sem esse personagem o futebol deixa de ser uma representação metafórica da vida.
Resistem em grupos de Whatsapp igualmente ativos mas certamente menos numerosos os jogadores adeptos da boemia e da picardia. Suspeito e quero crer que alguns tomam decisões para a carreira levando em conta a badalação da cidade, a relação com a camisa ou uma chance de revanche, segunda chance ou coisa do tipo. Sem forçar a mão na tinta cinza, pode ser até que haja a intersecção, sujeitos que transitam nos “dois mundos”, alvos de desaprovação de um lado e deboche do outro, e que legal, gente rica não devia se levar tão a sério mesmo. Urge, a pauta e toda pauta que nos ajude a entender o que estão se tornando os jogadores de futebol de ponta. São figuras esquisitíssimas e incrivelmente frágeis. Uma caricatura, daquelas de jornal antigo, cheia de aumentativos, do que nossos abrigos espirituais, pecuniários, físicos e mentais podem fazer de nós.
Vinicius Faunges disse:
Mais um belo texto Iamim. Esse novo modelo de comemoração parece ser ainda mais “frígido” que o antecessor da ajoelhada. Dê uma conferida no texto que fiz sobre o personagem Tite, acho que irá gostar: https://medium.com/@Vinicius_Fagundes/tite-se-tornou-um-personagem-e-deve-ser-questionado-eb3464c136fc#.uxq3uyur0