Por Victor Faria
Ainda faltavam alguns minutos para o embarque e Massimiliano Allegri já se instalara confortavelmente em sua poltrona. Como de costume escolhera um lugar à janela, gostava de observar o mundo de pontos de vista inesperados, refletia acerca do tempo tendo como tema paisagens naturais.
O trem ia de Genebra a Turim, uma das viagens preferidas do treinador. Gostava do percurso, a imensa extensão de prados, ou melhor, uma pradaria viçosa. Desde a primeira viagem de volta à Itália que seus olhos captam a planície amarelada, desbotada pelo forte calor que abafa a cor que a percorre. Eram instantes em que lhe pesava o tempo, em que pensava no que ele seria, suas ideias e escolhas sobre um futuro já conhecido, uma difícil missão de ir além de um acostumado apogeu. Num dos raros momentos em que podia ficar só, naquele vagão, era apenas um homem à espera da partida ao seu destino.
Junho reservava um clima esplêndido e justamente naquele dia já se sabia da eminente saída de Antonio Conte da squadra tricampeã italiana da atualidade. Seu nome era dado como certo no comando da equipe e cabia somente a ele dar a resposta. É certo que não havia dúvidas quanto à sua escolha, mas Allegri ainda fazia mistério e dizia que gostaria de resolver as coisas pessoalmente. A viagem a Turim de trem era apenas uma escolha pessoal, um pretexto para ter mais tempo e tranquilidade para pensar.
Composições e variações táticas, motivação de jogadores já acostumados ao título, um plano de jogo resistente ao estrangeiro em competições europeias, Massimiliano Allegri tinha o dever de exportar o sucesso adquirido em campos nacionais. Muito a se fazer e pensar, mas no momento a ordem era descansar.
O trem partira há mais de 90 minutos e já se percebia a insuperável presença da noite. A calada noite percorria os assentos vazios e os poucos acordados já se preparavam para se entregar à condição de descanso. Se podia ouvir apenas um burburinho, vindo do fim do corredor, vozes distintas que se confundiam por vivência do diálogo. Antes de repousar ainda pode notar a palha curta dos campos, recém-cortados, identificados como ideal para a prática do futebol.
Apesar do atraente cenário de repouso não conseguia dormir, as vozes vindas do corredor se misturavam a rabiscos de improviso. Era possível escutar o lápis a roçar a folha de papel incansavelmente, freneticamente em busca de perfeição sonora e visual. Por curiosidade, que por sinal deve ser a melhor de suas qualidades, Massimiliano Allegri se dirigiu ao fundo do vagão e flagrou um pintor a conversar consigo mesmo, buscando em linhas imprecisas e conclusões de raciocínio a perfeição do momento. Sua presença não fora notada pelo artista que divagava sozinho, retornou ao seu lugar vagarosamente pensando nas palavras não ditas, um momento de inspiração não compartilhado que assim deveria ser conservado porque os pintores, que afinal são aqueles geniais, são extraordinários em captar o movimento não concluído do personagem que representam, em geral igualmente maluco, e o milagre pictórico se cumpre numa forma de estranha levitação que parece prescindir da força da gravidade.
Ajeitou-se confortavelmente em sua poltrona a fim de um melhor pouso e repouso. Despertou algum mais tarde, do lado de fora do vagão já amanhecia. Os sol cobria mansamente as “terras irredentas” e era possível observar, já na região de Piemonte, cavalos selvagens a desbravar os campos.
A manada era de uma dezena de cavalos, talvez mais, quase todos com pelo cinzento, alguns malhados. Porém, um pouco à frente dos outros, pescoço teso em pose altiva como se fosse o chefe do bando, havia um garanhão negro. Não estavam muito distantes e só quando olhou pra eles teve a impressão de que eles também olharam pra ele, como se a troca de olhares constituísse um sinal de entendimento, os cavalos se mexeram ondulando no ar trêmulo daquela manhã quente. O treinador via que eles avançavam, incapazes de se mover, percebendo que o espaço da vasta planície havia falseado a perspectiva, estavam mais distantes do que pareciam, como certas cenas de cinema em que o movimento se realiza mais lento, quase líquido. Avançavam assim, como se navegassem pelo ar, mudando suas posições, ora em fila indiana, ora abrindo-se em leque, ora dividindo-se como se cada um tivesse uma meta diferente e, enfim, reunindo-se de maneira compacta, enquanto a cabeça e o pescoço de cada um seguiam o mesmo ritmo, a mesma cadência. Naquele momento o negro cavalo freou sua corrida plantando os cascos na poeira, com ele parou todo o bando, como se a batuta de um maestro houvesse decretado uma pausa naquele misterioso jogo sem torcida, mas era apenas um intervalo, isso percebeu claramente.
No corredor do trem, um vendedor de sapatos brada em voz alta: “Italian shoes! Feitos à mão, couro de primeira, e observe a frente, a qualidade dos sapatos é medida pela frente”.
Allegri retoma seus olhos à janela, o garanhão levantou sua pata dianteira, deixou-a suspensa no ar por um instante e depois partiu com ímpeto começando a disparada. Os outros cavalos avançavam, mas não se lançavam, constituíam uma linha compacta e precisamente exemplar tanto no ataque como na defesa. Corriam em círculos, cada vez mais rápidos, até que não houvesse mais espaço entre cavalo e cavalo, apenas um muro de cavalos perfilados convertidos num só. O líder da manada, com o mesmo modo repentino da vez passada, rompeu com afastamento brusco desenhando uma tangente de fuga arrastando atrás de si os outros e em poucos instantes os cavalos se afastaram a galope encerrando o espetáculo.
Naquele momento pensava apenas no movimento dos cavalos, na perfeição dos movimentos circulares, na disparada. Nas linhas disposta em campo, no desenho equino feito para se estender até o infinito, aplicados até se transformarem em horizonte. As leis da natureza em caráter esportivo.
O allenatore, ainda encantado com o que lhe fora apresentado, perguntou a um senhor que estava no banco ao lado se ele havia visto o que se propusera lá fora. O senhor, distinto e elegante, era Antonio Tabucchi. Dissera que não havia reparado no que se alinhava em campo, que no momento se preocupava em escrever sobre nuvens e bolhas de ar.
Massimiliano Allegri saltou na estação de Turim com a certeza de um plano tático exato, com a impressão de um sonho mágico, capaz de levar a Vecchia Signora de volta ao melhor de seus idos continentais. Eram cavalos dispostos, personagens em jogo, uma pintura de inspiração febril e horizontal.