Por Luiz Felipe de Carvalho
A década de 1980 está na moda. Está em séries, filmes, livros, música, decoração, moda, tudo isso em pleno 2018. A explicação é simples, claro: nós, nascidos nela, estamos ficando tiozinhos (as) e fazendo nossos filmes, escrevendo nossos textos, criando nossas séries, desenhando nossas roupas, decorando nossos bares e restaurantes. Nada mais natural do que rememorarmos nossa infância. Mas não é bem isso que farei neste texto.
Nasci junto com a década, no ano redondo de 1980. Algumas coincidências mórbidas eu descobri há algum tempo: meu escritor favorito (Henry Miller), meu músico favorito (John Lennon) e meu cineasta favorito (Alfred Hitchcock) encontraram-se com o único mal irremediável nesse mesmo ano (em nome da ética devo dizer que as duas primeiras premissas são inequívocas, mas que Hitch está “apenas” entre meus cinco cineastas favoritos, não chega a ser “o” favorito, e foi colocado aí para que a coincidência fique mais perfeitinha). Com isso em mente me peguei a pensar, e a pesquisar, sobre o que nasceu junto comigo e é importante para mim. Não exatamente pessoas, mas obras de arte. Discos, para ser mais preciso, já que esta coluna é majoritariamente sobre música.
(Mas abro um parêntese rápido para dizer que foi um bom ano para os filmes, com coisinhas como “O Touro Indomável”, “O Iluminado”, “Vestida para matar” e “O Império Contra-Ataca”, além do primeiro “Sexta-feira 13” e do pior filme da carreira de Fellini, “Cidade das Mulheres”, uma chatice memorável)
Entre os discos, há vários que gosto, como “Back in black” do AC/DC, “Só nos resta viver”, da Angela RoRo, “The River”, do Bruce Springsteen e o da Rita Lee que tem “Lança Perfume” e outra penca de sucessos. Mas escolhi apenas três que moram mais profundamente nesse coração que tem 38 anos como eles. Não foram discos que eu necessariamente ouvi na minha infância, mas que vieram a ser importantes na minha formação – musical e até moral.
1 – Coração Bobo (Alceu Valença)
A arte da capa é simples e até meio tosca. Com a fonte sombreada em verde e mostrando Alceu com cabelos molhados e olhar lânguido, parece um disco com trilha sonora de motel. Triste de quem o descarta pela capa. O interior é poesia pura. Foi meu primeiro contato com canções dele menos conhecidas do público geral, e me lembro do choque ao perceber o quanto as melhores estavam escondidas. Outra coisa que me chamou a atenção à época que o conheci foi o cuidado de Alceu em colocar o ritmo de cada música no encarte, ao lado do nome da canção (tenho o encarte em mãos enquanto escrevo, e os ritmos são toada, xote, baião, côco, aboio, novena, maracatu, caminho da roça e canção).
Há duas regravações de Luiz Gonzaga, que também cumpriram um papel importante na minha futura busca por mais coisas do mestre Lua. Abrindo o lado B está “Na primeira manhã”, que depois ganhou regravação de Maria Bethânia. E há a sublime “A moça e o povo”, um poema musicado, que me emocionou aos vinte e poucos e me emociona até hoje. Uma retrato dolorido de um artista longe de sua terra e arrebatado, com tudo de bom e ruim que a palavra traz, pela capital do Rio de Janeiro.
2 – Abre-te Sésamo (Raul Seixas)
A arte da capa é simples e até meio tosca (eu já disse isso hoje?). Mostra Raul todo de branco, na Praia de Ipanema, com o volume das calças talvez mais aparente do que deveria. Mas não foi esse o disco que me fez conhecer o outro lado de Raul além dos sucessos “Gitá/Ouro de Tolo/Tente Outra Vez” e afins. Foi uma coletânea chamada “A arte de Raul Seixas”, que eu delicadamente roubei de uma tia. Apesar de ser uma coletânea havia ali algumas canções menos conhecidas que me fizeram empinar as orelhas para o baiano. Daí passei a comprar tudo dele, e naquela época as Lojas Americanas vendiam quase todo seu catálogo (eita saudade disso). Numa dessas comprei “Abre-te sésamo”, que tem pouquíssimos sucessos, mas uma sucessão (pegou o trocadilho?) de músicas boas – as mais conhecidas são “Rock das Aranha”, especialmente pela regravação do Ultraje a Rigor (cujo vocalista se transforma cada vez mais em triste figura) e “Aluga-se”, notadamente pela versão dos Titãs.
O parceiro da vez é Cláudio Roberto, mas há espaço até para um canção de Raul Varella Seixas, o pai de Raul. Imbuído do papel de profeta, Raul chega a fazer na faixa “Anos 80” um diagnóstico da década que mal tinha começado: “Hey, anos 80/ Charrete que perdeu o condutor/ Hey, anos 80/ Melancolia e promessas de amor”. No meio de pérolas como “Baby” e a própria faixa-título, destaca-se para mim a única música que Raul assina sozinho no disco, “Conversa pra boi dormir”, de versos como “Dizem que Deus não quis dar asa à cobra/ Seria um bicho ameaçador/ Mas tem uma peste delas avoando que o diabo fez enquanto Deus marcou”. Não sou lá um cara muito religioso, portanto é irônico que o “profano” e “satanista” Raulzito tenha sido o responsável por me ensinar que “Jota Batista batizou Jesus”, verso inicial da canção e que sempre me vem à mente quando quero relembrar o responsável pelo ato histórico.
3 – Oswaldo Montenegro (Oswaldo Montenegro)
A arte da capa é simples e até meio tosca (designers, onde vocês estavam nessa porra desse ano?!). Ao menos é uma pose não posada, com o artista fazendo o que sabe. Minha relação com Oswaldo é diferente da relação da maioria das pessoas com Oswaldo. Isso porque tenho uma tia, aquela mesma da qual roubei o cd do Raul, que tinha uma relação “luansantanesca” com Oswaldo. Ela era tipo a maior fã do universo, de ouvir disco e chorar, de ir a shows, de tudo (e peço desculpas aos deuses da música por comparar Oswaldo Montenegro com Luan Santana, me referia mais a essa relação de fã meio maluca). Então Oswaldo pra mim entra um pouco no terreno da mitologia, de ver minha tia toda arrumada pra ir ao show, de não poder ir junto porque era muito pequeno, de depois ficar perguntando como foi, que música ele tocou, de ficar ouvindo meu tio tocar suas músicas, enfim, era algo até próximo da magia (e os magos todos louvados sejam!).
Esse disco de 1980 é tão bom que parece um “best of”. Tem “Bandolins”, “Intuição” e “Agonia”, três grandes sucessos da carreira de Oswaldo. Tem a participação de Jane Duboc na belíssima “Ao nosso filho morena”. Tem produção de Liminha e direção artística de Sérgio Cabral (o pai, bom que se diga). E tem “Aquela coisa toda”, uma singela e pungente canção sobre um fim de relação que já chamava minha atenção mesmo quando eu era pequeno e não tinha tido uma puta de uma relação amorosa na minha vida – a não ser com a Mônica, a filha do Maurício de Sousa.