Por Victor Faria
Fatal e interessante idiossincrasia de El Patón! Rosario não deve ter esquecido, e me atrevo a sugerir que não esquecerá, minha franca decisão de não conceder mais um prólogo aos reclamos, sem dúvidas já tão legítimos, da irrecusável admiração ou da meritória valia. Reconheçamos, no entanto, que este socrático “Bicho Feio” é irresistível. Diabo de homem! Com uma gargalhada que me desarma, admite a rotunda validade de meus argumentos; com uma gargalhada contagiosa, reitera, persuasivo e tenaz, que sua filosofia e nossa velha camaradagem exigem meu prólogo. Todo protesto é vão. De guerre lasse, resigno-me a encarar minha intuição, cúmplice e muda confidente de tantos equívocos.
Arrisco-me, no entanto, a confessar que não sou um escravo da moda: noite após noite, na solidão de meu dormitório, postergo ao engenhoso Bielsa e me engolfo nas aventuras imarcescíveis de Russo, protegido de Macri. Mas culto a severa epopeia continental em todo seu esplendor. Desenterro empoeirados dossiês, em imensos planos de jogos imaginários, para captar os sigilosos passos de nosso comandante.
Antes de abordar a fecunda análise das grandes diretivas desta decisão, peço a vênia do leitor para congratular-me de que, finalmente, no confuso percurso das escolhas, faça sua aparição um herói argentino; em palcos nitidamente argentinos. Insólito prazer de saborear, entre duas tragadas aromáticas e ao lado de um irrefragável conhaque do Primeiro Império, um jogo que não obedece às torvas concepções de um estilo de jogo anglo-saxão, estrangeiro.
Também sublinharei, na surdina, minha satisfação de portenho, ao constatar que o candidato, embora provinciano, mostrou-se sensível aos reclamos de um localismo estreito e soube escolher para suas típicas águas-fortes e contexto natural: Buenos Aires. Tampouco deixarei de aplaudir a coragem, o bom gosto, de que gaba-se o nosso popular “Bicho Feio” ao não dar as costas, apesar da obscura figura de nossa associação. Não obstante, nesta paleta metropolitana faltam algumas notas, que me atrevo a solicitar de candidatos futuros.
Enquadraremos agora a característica mais saliente e ao mesmo tempo mais profunda do treinador campeão de duas Copas Libertadores. Aludi, não duvideis, à concisão, à arte de El Patón é, o tempo todo, um atento servidor de seu público. Em seu estilo de jogo não há planos que esquecer nem posicionamentos que confundir. Economiza-nos qualquer tropeção intermediário.
Rebento de nossa tradição, atem-se aos momentos capitais de seus problemas: a proposição enigmática e a solução iluminadora. Meros títeres da peculiaridade, quando não pressionados pelo adversário, seus personagens acodem em pitoresco tropel ao campo. Na primeira preleção, expõem o mistério que os aflige; na segunda ouvem a solução que pasma por igual a crianças e anciões. O treinador, mediante um artifício não menos condensado que artístico, simplifica a prismática realidade e aglutina todos em forma e padrão. O torcedor menos avisado sorri: adivinha a omissão oportuna de alguma tediosa entrevista e a omissão involuntária de mais de um vislumbre genial, expedido por um cavalheiro sobre cujos sinais particulares resultaria indelicado insistir.
Examinaremos ponderadamente o histórico. Não ocultarei, certamente, minha preferência por um estilo de jogo caseiro, sem desdenhar os atrativos da revelação de um mundo sui generis, à margem de nosso verniz europeu e de nosso refinado egoísmo. Também lembro sem desapego, a prolongada busca por um título, que renova, a seu modo, o clássico problema do craque escondido.
Uma das tarefas que põem à prova a garra do homem de valor é, não há dúvida, a destra e elegante diferenciação em campo de seus comandados. Recorre, em suma, aos grossos traços conservadores, se bem que, sob essa pena regozijada, as inevitáveis deformações dispostas realçam o físico de seus fantoches e se obstinam, com feliz encarniçamento, nos modos de se jogar.
Em troca, nos brinda com um panorama incontido satírico, e é toda uma galeria de nosso tempo, onde não faltam o herói tímido, o coadjuvante de agilidade afiada, que despacha, talvez com menos ponderação que soltura, o destrambelhado marcador decididamente simpático, de família abastada, e outros misteres.
Traço que augura o mais sombrio dos diagnósticos sociológicos: neste afresco que não vacilo em chamar Argentina contemporânea, falta o perfil equestre do gaúcho e em seu lugar caminha o global, para denunciar o fenômeno em toda sua repugnante crueza. Desta enervante lassidão apenas consegue redimir-nos, talvez, nosso “compadre suburbano”, cuja energia visceral é mais uma prova dos quilates estilísticos de Edgardo Bauza.
Mas nem tudo são flores. O ático censor que há em mim condena sem apelação o fatigante esbanjamento de marcações episódicas: formação engessada que recarga e escamoteia as severas linhas de quatro.
Pesquisadores estáticos, tais curiosos de pranchetas virtuais, pressagiam, ainda que parcialmente, El Patón: figura carimbada no curso das escolhas, mas cuja revelação é uma proeza argentina. A imobilidade do treinador é todo um símbolo intelectual e representa o mais rotundo dos destemidos à vã e febril agitação portenha, que algum espírito implacável, mas certeiro, comparará, talvez, com o célebre esquilo da fábula.
Mas acredito advertir uma velada impaciência no rosto do torcedor. Hoje em dia, os prestígios de uma escolha primam sobre o resultado final, pensamento colóquio. Certamente soará como um juízo final.