Por Luiz Felipe de Carvalho
Guerras, ditaduras, recessões econômicas. Não é que exista um manual para lidar com tais desgraças, mas todos nós conhecemos alguém que já passou por elas, ou se não conhecemos poderíamos conhecer, já que essas pessoas estão por aí. Mas uma pandemia em escala mundial, não. Nenhum ser vivente passou por isso, e se passou era muito jovem para se lembrar com clareza, se pensarmos que a pandemia da Gripe Espanhola se deu em 1918. Então como lidar com isso?
Obviamente, não existe uma resposta pronta. Muitos de nós devem estar passando por um dilema moral inquietante: é permitido ser feliz enquanto o mundo se despedaça? Minha opinião é de que não apenas é permitido, como é necessário. Claro que não devemos confundir a busca por uma felicidade possível com a negação da realidade que está ali à porta. Mas é preciso buscar maneiras de aquietar a mente, de buscar repostas (ou renovar as perguntas), e até, por vezes, de sair um pouco da realidade atual e projetar um futuro.
Todas essas buscas encontram na arte sua melhor plataforma de impulsão. Dentro de nossas cavernas modernas, os artistas, todos eles, são nosso contato com um mundo imaginário que é o único possível no momento. Enquanto confiamos na ciência, que curará nossos corpos, precisamos da arte para curar nossas almas. “Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba”, como disse com precisão Oswaldo Montenegro.
Escavei meus discos para encontrar canções que, mesmo que não saibam, podem nos ajudar a sair dessa com a sanidade em dia. Cada uma serve para algum momento específico – e não são poucas as curvas, subidas e descidas súbitas na montanha-russa que anda habitando nossas cabeças.
1 – Momento dúvidas (Canção: Hermana duda – Artista: Jorge Drexler – Composição: Jorge Drexler)
Provavelmente o que mais temos atualmente, talvez à frente das dívidas: as dúvidas. Não, essa música não dirime nenhuma delas, apenas transforma a dúvida em um ser consciente, entendendo sua importância, mas pedindo gentilmente que, ao menos nesta noite, ela dê uma trégua. Outra coisa que adoro na letra é quando ela fala “passarão os discos/subirão as águas/mudarão as crises/pagarão os mesmos”, o que me parece bastante atual, especialmente a parte de que “pagarão os mesmos”.
2 – Momento incentivo (Canção: Stuck in a moment you can´t get out of – Artista: U2 – Composição: U2)
Quando pensei em músicas para sair de uma crise emocional, essa foi a primeira que lembrei, sem precisar fazer pesquisa. Bono escreveu a letra após o suicídio de Michael Hutchence, vocalista do INXS, e tinha o amigo em mente ao escrevê-la. Ou seja, é uma mensagem feita tarde demais. Não é meu interesse discutir suicídio, ou se essa canção é capaz de impedir alguém de cometê-lo, mas sei que ela me faz bem. Existe certa rudeza na mensagem, mas com carinho. Afinal, como diria Paul Simon, honestidade sem ternura não vale muita coisa. A versão abaixo já vem com a tradução, que está boa, embora eu humildemente preferisse “você se prendeu em um momento e não CONSEGUE sair dele” ao invés de “não PODE sair dele”. A palavra em inglês é a mesma, mas em português faz bastante diferença. Isso dito, para o atual momento, “não poder” faz mais sentido do que “não conseguir”.
3 – Momento ficar em casa (Canção: Hoje eu não saio, não – Artista: Marisa Monte – Composição: Arnaldo Antunes/Marcelo Jeneci/Betão/Chico Salem)
Essa música parece uma profecia. A letra fala de alguém que não quer ir ao bar, não quer ir à praia, não quer ir à academia. E nos lembra de um momento em que ficar em casa podia ser uma decisão deliberada e pessoal, e não uma necessidade em nome do bem comum. E talvez nos ajude a pensar que, sim, há prazer em ficar em casa. E ficar em nome do bem comum talvez seja mais nobre do que ficar por qualquer outro motivo.
4 – Momento ódio do presidente (Canção: Apesar de você – Artista: Chico Buarque – Composição: Chico Buarque)
Será que esse momento ganha das dúvidas em termos de frequência? É capaz. Se você achar ódio uma palavra forte, troque pela que achar melhor. No meu caso, e nesse caso específico, é ódio mesmo. Que tenhamos um presidente nefasto como esse já é uma tristeza, que o tenhamos em um momento como esse ganha ares de tragédia. Então vamos de Chico, que escreveu a canção em outro momento nefasto, mas olha a arte aí apontando uma resposta sem saber. Não que seja lá uma grande resposta, na medida em que não resolve muito na prática, mas sua letra dá uma desopilada na alma que é boa – e isso já resolve uma porção de coisas. Chico diz que escreveu a música para a situação, e não especificamente para o Médici, mas aqui acho que vale personalizar o alvo, porque cabe direitinho.
5 – Momento fé (Canção: Life uncommon – Artista: Jewel – Composição: Jewel)
Não vai rolar proselitismo religioso por aqui. Talvez pelo fato de eu ser agnóstico, entendo essa música como um chamado à fé na humanidade. Caso você seja religioso, pode fazer outra leitura. Fato é que Jewel advoga literalmente que rezar não é suficiente. É preciso fazer. É preciso lutar pela liberdade, acima de tudo. E não “deixar suas palavras escravizarem ninguém”. A mim parece claro que ela não está falando de religiões organizadas, mas da fé pessoal. A música começa com “não se preocupe, mãe, vai ficar tudo bem”, e acho que isso é o que gostaríamos de dizer – e ouvir – para/de todas as nossas pessoas queridas: vai ficar tudo bem.
Obs: tem tradução minha nos comentários do YouTube. Para ler você tem que ver o vídeo direto no YouTube, clicando no ícone do site no canto inferior direito do vídeo.
6 – Momento felicidade (Canção: O princípio do prazer – Artista: Geraldo Azevedo – Composição: Geraldo Azevedo)
Citando Freud, Geraldo fala de nossa busca natural e instintiva pelo prazer, que traduzimos em português como felicidade. Uma busca cujo objetivo final é a própria busca, uma vez que não existe um platô no alto de uma montanha onde a felicidade está instalada para nosso uso. Nesse momento é difícil lembrar, mas no mundo pré-pandemia a busca da felicidade também era uma constante jornada, muitas vezes repleta de frustração. E continuará sendo assim no pós-pandemia. Mas Geraldo entrega já no primeiro verso uma possível chave: “Juntos vamos esquecer/Tudo que doeu em nós”.
7 – Momento sozinhar-se (Canção: Sozinhar-me – Artista: Pélico – Composição: Pélico)
Me dei ao desfrute de usar o neologismo criado por Pélico para descrever esse momento em que ficamos sozinhos – seja por vontade própria, seja por necessidade. Tem acontecido bastante com vários de nós esses momentos de solidão, que antes eram mais escassos. Na letra da canção a solidão de Pélico se dá após um fim de relação, e a maioria dos versos trata disso. Mas o refrão, que é a parte que cantaremos juntos após a primeira ouvida, não precisa de contexto: “Sozinhar-me vou/Se isto é felicidade, esperar-te vou”. Aquele a quem esperaremos pode ser um amor, pode ser um amigo, pode ser o momento de saírmos de novo.
8 – Momento beleza (Canção: Mês de maio – Artista: Almir Sater – Composição: Almir Sater/Paulo Simões)
Uma vez eu li que quando estamos com muita sede, mas muita mesmo, nosso corpo começa a ter sintomas graves pela falta de água, mas deixamos de ter a sensação de sede. E que também quando nossa alma se priva da beleza, as consequências surgem sem entregar sua raiz. Nossa fontes de beleza são várias, mas com a quarentena ficam certamente mais escassas. Mais uma vez a arte entra em cena para nos prover do que nos falta. Além de essa música ser repleta de boniteza, também fala sobre o mês de maio, que tá logo aí. É uma faisquinha de possibilidade de que ele traga um pouco de “luz do sol pela janela”.
9 – Momento cantar (Canção: Planeta e borboleta – Artista: Luiz Tatit – Composição: Luiz Tatit)
Acho que até quem não canta deve estar cantando na quarentena. Se não estiver, deveria. Cantar é uma terapia como poucas. Mas essa música não fala só sobre o ato de cantar, mas também toca em temas que resvalam mais precisamente no momento atual: “toda lembrança atroz/lembra que estamos tão sós/mas a lembrança que é boa/revoa lá dentro de nós/e aparece na voz”. Ali acima está escrito que o artista é Luiz Tatit, porque a faixa está num disco dele, mas na verdade quem canta é Ná Ozzetti – ou melhor, não canta, flutua como uma fada por sobre a melodia.
10 – Momento recomeço (Canção: A cigarra – Artista: Renato Teixeira – Composição: María Elena Walsh – Versão: Renato Teixeira)
Pois é, em algum momento teremos que recomeçar. Não vai ser exatamente de onde paramos, porque aquele lugar não existe mais. Mas pode haver um lugar melhor. Não, não, otimismo não é meu forte, nem auto-ajuda, nem ajuda-alheia. Mas canções como esta, que Renato adaptou de uma compositora e escritora argentina, me fazem mudar um pouquinho de ideia. O disco no qual ela se encontra é um dos meus preferidos da vida, e até já escrevi um texto sobre ele aqui na Central3 (aqui ). “Agradeço ao meu destino/E a essa mão com punhal/Porque me matou tão mal/E eu segui cantando”. É mais ou menos por aí.
11 – Momento projetando o futuro (Canção: The visit – Artista: Regina Spektor – Composição: Regina Spektor)
A arte realmente dá respostas, ou formula perguntas, sem saber. Em 2016, quando lançou esta música, Regina Spektor certamente não fazia ideia que dali a quatro anos uma pandemia tomaria o mundo. Mas eu leio essa letra e parece que ela foi feita agora. Ou melhor, em um futuro, quando voltaremos a receber visitas em nossa casas, e a visitar outras pessoas. E a entender profundamente o que significa a interação com aqueles que amamos. Normalmente eu coloco a tradução no YouTube, mas nesse caso específico ela vai entrar aqui, no corpo do texto, porque é com esta letra que eu quero que essa coluna termine.
A visita
Estou tão feliz que você passou por aqui
E eu tinha algumas coisas pra dizer
Mas agora elas foram esquecidas
Elas serão ditas em um dia diferente
Elas serão ditas de uma maneira diferente
Porque tudo permanece mudando
A vida segue desenfreada
Além dos muros e grades
Todo mundo muda
Até que chegue o ontem do amanhã
Estou tão feliz que você deu uma parada
E eu não vou te perguntar por que
É simplesmente bom te ver
Você sempre me faz sorrir
E você sempre me faz suspirar
Às vezes eu ainda me pergunto
Por que o barulho de trovões distantes
Sempre te botavam pra baixo
Porque você procurou, mas nunca a encontrou
Porque ela sempre fugia
E lá longe, nas montanhas
Dentro do passado nós ouvimos os sinos
Capturando apenas partes de pensamentos
E fragmentos de nós mesmos
Até que comecemos outra vez
Estou tão feliz por você estar aqui
E eu sei que já faz anos
Eu apenas estou feliz por te ver
E não é preciso chorar
O melhor amigo do tempo é o medo
É assim que ele pode nos encontrar
E fazer sua maior bondade
Que é sempre nos lembrar
Que é nossa única chance
Dentro desse corpo e dessa mente
E em algum lugar da minha mente
Por detrás de olhos fechados, eu vejo o passado
Capturando cada momento que se passou
Para fazê-lo durar até que eu comece outra vez
Regina Aurea Pereira disse:
Muita sensibilidade na escolha das músicas. Momentos pra duvidar, chorar, ficar, orar, esquecer, lembrar, sozinhar, iluminar, sonhar,cantar e emocionar.
Nem sei qual mais gostei. “A cigarra” tá no páreo. Sempre gostei mais dela do que da formiga (naquela fábula, sabe?)
Mas a emoção de “A visita” é insuperável!
Amei o texto e as músicas!