Por Marcelo Mendez
Aconteceu muita coisa em 1981.
No Brasil, o Pelé descolou uma namorada loira, muito bonita com um apelido estranho, “Xuxa”, o Queen inaugurou a rota de shows internacionais no Brasil tocando no Morumbi, do outro lado da Dutra tentaram explodir o Rio Centro e no mês de Junho, chegou por aqui um revolucionário brinquedo chamado “Cubo Mágico”. Mas nem ele, o brinquedo, me interessava.
Com 11 anos de idade, minha vida era jogar futebol, ouvir futebol, ler futebol e assistir futebol, tanto em estádios, como na televisão, na qual o Flamengo que contava com feras como Leandro, Mozer, Junior, Andrade, Adílio, Tita, Nunes, Lico e nosso herói Zico – toda criança queria ser o “Galinho de Quintino” – dava bailes de bola. Em suma, o Mengão arrebentava.
Após ter sido campeão brasileiro em 1980, o “Mais Querido” carimbou o passaporte para a Libertadores do ano seguinte chegando à final, na qual enfrentaria um time chileno que a gente nunca tinha ouvido falar por aqui, um tal de Cobreloa, que ficava numa cidade de nome ainda mais estranho para nós, Calama.
Na partida de ida, placar magro (2 a 1) e um caminhão de gols perdidos. Faltava cruzar a Cordilheira para a volta e aí começa a história que por mim será contada…
21 de Novembro de 1981, a Batalha de Santiago
Posso assegurar que para nós, até aquele momento a Libertadores da América era um campeonato que não tinha grande importância. O Santos havia vencido duas vezes, o Cruzeiro outra. Era o que sabíamos sobre a competição. Quanto ao jogo do Flamengo no Chile, parecia uma conveniência.
O rubro-negro daria umas trombadas até que a bola parasse no chão e então, com Andrade Adílio e Zico na meia cancha, tocaria a criança até que finalmente metessem uns gols e trouxessem o caneco. Mas não. Um duelo copeiro nessa época, era disputado em varias outras esferas além das quatro linhas.
A ditadura sanguinária comandada por Augusto Pinochet completava oito anos e vivia seu esplendor. Todo mundo quieto, quem atrapalhava era preso e torturado e caso não bastasse assassinava-se o sujeito e pronto. A banalidade da violência dos regimes ditatoriais na América do Sul raiava o absurdo pleno.
Hoje se sabe que ao todo foram mais de 40 mil vítimas entre 1973 e 1990. Um verdadeiro massacre deixado como herança dos anos de chumbo, que começavam a ser questionados mundialmente no começo dos anos 80. A ditadura chilena precisava mudar essa imagem e como é comum nesses casos abraçaram o menino futebol.
A propaganda foi maciça. O jogo seria em Santiago, no Estádio Nacional – o mesmo palco que servira de masmorra para torturas e assassinatos naquele famigerado setembro de 1973. Ao todo, 1534 quilômetros separam Calama da capital do país. Uma mobilização populista criou um clima absurdamente bélico para o jogo. A Conmebol, incumbida de fazer sua parte, escalou um emérito árbitro caseiro pra coisa; Ramón Barreto, apitador uruguaio, de “bons” serviços prestados, foi o escolhido. E todo o Chile entendeu que o Flamengo era um inimigo de uma pátria boa, ordeira e humilde. O resultado foi clamoroso…
Logo na chegada da delegação rubro-negra, testemunharam-se coisas estranhas.
“Chegamos e vimos um corredor polonês formado por guardas de escudos e cassetetes. Ao entrarmos, eles estreitaram o corredor e ali mesmo já tomamos uns dois ou três pescoções cada um” Relatou Adílio, muito tempo depois em entrevista para o Globo Esporte. A coisa já começou fervendo.
Dentro de campo, a marcação também foi cerrada. O Cobreloa era um bom time. Tinha bons meias, marcadores implacáveis como Eduardo Jiménez e Enzo Escobar, e ambos chegavam junto à vera mesmo. Mas o absurdo aconteceu aos 24 minutos do 1º Tempo; rebote de um chute de Nunes, Adílio vai atrás da jogada e recebe uma pancada no rosto. Imediatamente sai do lance e reclama com o árbitro.
“Desde o começo do jogo a gente viu que ele estava com uma pedra na mão. Não entendia porque daquilo. Dali então, na primeira bola que dividimos eu descobri o porquê” Disse o camisa 8.
Com uma braçada, Mario Soto acerta a pedra no rosto de Adílio e abre o seu supercílio. Nada fora marcado e a pancadaria seguiu comendo solta.
“O Flamengo precisa se impor. Tudo que é um grande time e veio aqui pra jogar futebol, mas se a coisa ta desse jeito, precisa se defender” Dizia na transmissão da Globo, o comentarista Gerson, o “Canhotinha de Ouro”. Mas o Mengão não se defendeu.
O jogo seguiu com o Cobreloa sentando a bota e nenhuma atitude por parte de Ramón Barreto. Héctor Puebla, atacante do quadro laranja, pisou em Junior no chão; Armando Alarcon, em um carrinho por cima, abriu a canela de Mozer; Zico, não passava uma disputa de bola sem tomar um tapa na cara ou uma pegada no tornozelo. Na beira do gramado, o clima seguia igualmente tenso.
Em uma tentativa do técnico Carpegiani de passar uma instrução, foi imediatamente coibida por um policial que avançou com seu cachorro, um pastor alemão, para cima do comandante rubro-negro.
“Sentá, weón!”
O Flamengo “sentou”. Sem poder de reação à pancadaria, ainda viu Lico sair de campo com uma orelha cortada e dois dentes a menos. A reclamação também era contra Mario Soto. Com Baroninho em campo o clube carioca conseguiu segurar o Cobreloa até os 34′ da etapa complementar, quando Ramon Barreto inventou uma falta alegando toque de mão da zaga visitante. Na cobrança de Victor Merello, a bola desvia em Mozer e entra. Festa em Santiago.
Jogadores, torcedores, repórteres, fotógrafos, policiais, gandulas, uma massa entra no campo para comemorar o gol derradeiro. Daí pra frente ficou fácil para os zorros.
Contando com a boa vontade do juizão, o Cobreola consegue adiar a decisão para o terceiro jogo uma semana depois. A partida seria realizada em campo neutro, no Estádio Centenário em Montevidéu, onde o Flamengo, além de vencer o jogo por 2 a 0, contou com o “Murro Cívico” de Anselmo em Mario Soto.