Por Luiz Felipe de Carvalho
Há muito tempo, em uma então pequena cidade do interior paulista, surgia a Cervejaria Rio Claro. Fundado pelo Major Carlos Pinho, a cervejaria foi responsável por criar a primeira cerveja do estilo Stout da América Latina: a famosa Caracu, cujo nome vem de uma raça bovina, desenvolvida no Brasil durante o período colonial.
Se o que define o merecimento da alcunha de “clássico” é a duração de algo através dos tempos, certamente a Caracu é um clássico brasileiro. Na ativa desde 1899, o famoso touro estilizado do rótulo da cerveja já viu três séculos passarem diante de seus olhos: surgido no fim do século 19, passou por diversas fases durante o século 20, e continua encarando os consumidores de frente no século 21.
A empresa passou por diversas mãos nas primeiras décadas do século 20. Em 1929, com o crash da Bolsa de Valores americana, se viu desvalorizada, e acabou sendo comprada pelo empresário Nicolau Scarpa, em 1930 (avô de Chiquinho Scarpa, figura conhecida da alta sociedade brasileira nos anos 1980), responsável por um processo de modernização da fábrica. Na década de 1970 a família Scarpa já possuía menos da metade do capital acionário da empresa. Hoje a marca pertence ao grupo Ambev.
Desde o princípio, o marketing da Caracu esteve ligado às supostas propriedades revigorantes da bebida. Vejamos, por exemplo, um trecho de um anúncio do jornal Correio Paulistano, de março de 1922, sobre a cerveja:
“Alimento líquido altamente concentrado para revigoramento dos nervos e cérebro”
Além desse, existem outros exemplos de bordões que exploram esta característica da cerveja, como “A cerveja dos campeões” ou “Beber Caracu é beber saúde”. Essa ideia não surgiu aqui no Brasil. Na Inglaterra, desde o fim do século 19, as cervejas stout eram vendidas como se tivessem propriedades medicinais. Detalhe: não foram as cervejarias que iniciaram este movimento, e sim os próprios médicos, que entendiam que a cerveja era boa para a digestão. Claro que as cervejarias se aproveitaram deste “merchan” involuntário, e se esbaldaram.
Donde chegamos, enfim, ao ovo. Para quem não sabe, existe uma receita famosa de Caracu com ovo, que teria propriedades afrodisíacas, mais ou menos como um Viagra natural. Neste caso, tudo indica que aí temos um fenômeno totalmente nacional. É possível encontrar, no YouTube, um comercial de TV, de 1959, em que a música trazia a receita. Dá um bizu:
Se um dia o link cair, fica aqui o registro da letra: “Vou lhe ensinar uma receita/ Muito gostosa e fácil de ser feita/ Pegue um ovo e uma Caracu/ E bata no liquidificador/ Tcha tcha tcha (nota do colunista: este seria o barulho do liquidificador)/ Caracu com ovo, nós vamos tomar/ Caracu com ovo, nós vamos tomar”
Temos aí, além de um pilar da medicina popular, praticamente uma jóia da MPB! Pilhérias à parte, a receita saiu das propagandas e faz parte da cultura popular. Mais uma prova de que a Caracu deixou de ser meramente um produto para se tornar parte da vida das pessoas. E isso é apenas mais uma das provas de que estamos diante de um verdadeiro clássico.
ANÁLISE SENSORIAL
Confesso que não tive coragem de tomar a famosa receita de Caracu com ovo. Provei a cerveja purinha, sem aditivos – além dos já utilizados pela Ambev. Antes de fazer a análise, cabe dizer que durante algum tempo tive um certo preconceito com a cerveja, achando que ela estaria mais próxima do universo das malzbiers (cervejas em geral bem enjoativas, adocidadas artificialmente) do que das stouts. Mas a verdade é que ela esta mais ou menos no meio do caminho entre as duas.
Em aparência, a cerveja é bem escura, com espuma marrom clara. A cor vem não apenas dos maltes torrados, mas também do corante caramelo, utilizado na receita.
Em aroma, traz uma leve torra, mas já é possível notar que o dulçor faz parte do perfil. Fica algo parecido com um café com leite, com um pouco de açúcar. Também aparece um levíssimo defumado, que faz um complemento interessante.
Na boca, sim, o gosto primordial da cerveja é o dulçor. Mas não chega a ser um dulçor enjoativo, como é o caso da maior parte das malzbiers brasileiras. Vem acompanhado de um leve amargor de torra. O final de boca mais uma vez traz a lembrança de um café com leite e açúcar.
A cerveja é leve, relativamente fácil de tomar. Claro que o dulçor em primeiro plano faz com que não seja a cerveja ideal para tomar em grande quantidade, prejudicando um pouco sua bebebilidade. Os 5,4% de álcool dão suporte, mas não aparecem na degustação. O milho, também presente na receita, certamente contribui para a leveza.