Nada custa um replay: não se escolhe ser gay. Não se é vítima de uma tarde tediosa de sábado, onde, desmotivado e esparramado na poltrona por uma vida hétero repetitiva e sem emoções, se lixa as unhas e se conclui que a homossexualidade é a abolição de da chatice. Não se coloca um jeans apertado, não se decora correndo o último hit de Demi Lovato ou Beyoncé, e não se aperta o passo para alguma boate pegar um boy magia.
Mas e se fosse escolha? Digamos que acordei, assisti a um filme, vi um beijo entre dois caras e bati o martelo: “Vou ser gay. Olha que legal!” Nem liguei se desde criança presenciei insultos contra a comunidade LGBT. Pouco me importa se tive uma vida escolar onde a homossexualidade era o principal alvo de zombarias e humilhações. E daí se xingam, agridem e matam gays por aí apenas por serem gays? “É o que quero para minha vida”, concluí.
Pegar homem é modinha e eu precisava me atualizar. Qual seria o problema? Não seria uma decisão pessoal dentro do livre-arbítrio? Que ameaça eu seria? Seria?
Na vida real, gays, lésbicas, bis, trans e outros grupos têm o tempo inteiro que repetir que existem desde tempos imemoriais, que estão relatados na história da civilização tal e mais tal, que há casos confirmados em outras espécies animais. Que são normais, naturais. Que simplesmente suas sexualidades e identidades afloraram, mesmo emparedadas pelo medo, quando lutaram contra, quando tentaram se sufocar.
Se existe alguém da comunidade LGBT que despertou de boa, sem problemas, que fluíram sem represas como os héteros, sem se explicar como naturais, sem ter que convencer a si de ser normal, eu gostaria de ler ou ouvir tal depoimento. Seria a uma boa prova de que nosso entorno muda mais rápido que noto.
No entanto, o que conheço é gente cansada de dizer, mesmo que nas entrelinhas: “Não é minha culpa”. A busca por direitos, respeito e compreensão ainda é pautada pelo laudo: “Não tenho como não ser assim”.
Tenho que fazer um mundaréu de gente crer que sou uma criatura natural assim como um sabiá. Caso contrário, as pessoas se dão o direito de me excluir, me espancar ou de me destruir. Como a um robô no filme Inteligência Artificial. “Mata que não foi deus que fez.”
Há um medo bem profundo e denunciante nesse contexto. Se qualquer um fora do frasco hétero cis o fosse realmente por escolha seria a prova de que heterossexualidade cisgênera é uma escolha também. Que se pode mudar. Que há desejos ocultos, pulsantes e inconfessáveis lá por dentro do macho padrãozinho.
Seria a heterossexualidade uma bagunça? Fosse tão natural e divina, seria imutável. O que leva a pensar que a abandonamos?
Seria a heterossexualidade cis frágil como uma película de cristal? Não suporta a concorrência? É tão tentador assim transar com o mesmo gênero? É tão apetitoso assim assistir a um beijo gay?
Às vezes, desconfio que a heterossexualidade seja um blefe. De tanto cuidado que a cercam. Até uma caipirosca de morango tem o enviadamento na fórmula, segundo os fiscais de pinta.
Se homossexualidade é escolha, que se pode abraçar, heterossexualidade também é, pois se pode desistir.
Sempre percebi que a heterossexualidade não se limita a uma orientação sexual. É também uma honra enganchada em uma imposição social para que tal honra seja mantida e ostentada. Inadmissível colocá-la em risco.
Desde criança, menino tem que brincar e se vestir como menino e menina, como menina. Como se azul e rosa, carrinhos e panelinhas, Max Steel e Barbie, fossem escudos de virbranium que blindam contra possíveis invasões demoníacas, contra desejos e impulsos latentes. Procede?
Pais e mães, ainda que neguem, se orgulham de seus filhos que se mostram pegadores e se vangloriam das filhas que demonstram apego pela maternidade ao tratarem suas bonecas com o maior carinho.
Defender a heterossexualidade é defender a própria reputação. É protegida como um patrimônio. Se violada uma regra na criação, está perdida. Resta saber onde encaixam a perfeição, a força da natureza e a toda-poderosa proteção divina que a preservam se temem vê-la derreter até quando o filhinho pede uma action figure da Mulher-Maravilha.
Guto disse:
Muito bom o texto! Ótima reflexão sobre a fragilidade da heterossexualidade e a questão da “honra”…