Você que tantas vezes se vê levado a confundir a reação do oprimido com a violência do opressor. Que acredita que toda multidão ao marchar contra a polícia é de vândalos e baderneiros, que incompreende, nem percebe que quando se maltrata, se humilha, se acua, em algum momento a presa revida, parte para cima. A você, uma breve história do que ocorreu em Nova Iorque, em 28 de junho de 1969.
Era um bar chamado Stonewall. Gueto de gays e lésbicas, transexuais e travestis, que precisavam se esconder para se expressar, amar quem queriam, paquerar sem olhares escandalizados, dançar como ensaiavam no quarto. Uma fissura na rigidez, por onde se puxava oxigênio.
Não tinha luxo, falta de água uma constante, cabia menos gente do que acolhia, mas naquele aperto, de roça-roça até agradável em certos momentos, se podia ser quem se era sem a máscara tolerável do lado de fora.
Nem tudo era paraíso e abrigo, paz, sexo e amor. Visado, o bar vivia constantes investidas da polícia, que chegava prepotente, menosprezando. Estigmatizados, os frequentadores eram tripudiados, agredidos, emparelhados, baculejados, alguns escolhidos, quase em sorteio, para a chacota da noite.
Nada havia contra eles. Apenas a sentença prévia: abjetos.
Ano a ano, gota a gota, desde a abertura do bar, em 1963, a represa suportou. Certa noite, conta-se, alguém (homem ou mulher, não se precisa) foi arrastado para a rua pelos guardas. Presa, começou a ser surrado porque reclamou que as algemas a apertavam demais. Olhou para os que assistiam. Gritou: “Me ajudem!”
Estourou.
O que era submissão virou reação. O que era cabeça baixa virou voz alta: “Gay Power”. A polícia ficou perplexa. “Como assim resistência? Como assim deixaram de ser pacíficos? Cadê aqueles subalternos?”
É. Fedeu. É. Ligaram o PHoda-se. Havia sido deflagrado um dos mais históricos motins nova-iorquinos. Garrafas voaram. Pedras, moedas, sapatos, o que havia a mão.
Travestis desceram do salto, veados mostraram que descer a porrada não é privilégio único de machões. Gente de outros bares começou a se agregar, tomaram para si. O volume cresceu em igual proporção à indignação, aos insultos guardados. A batalha foi quase até o amanhecer.
É. A multidão foi dispersa. É. A polícia ganhou naquela noite. Muitos foram presos, espancados, hospitalizados. Stonewall, o bar, foi arrasado.
Mas se enganou quem pensou que as bichas, as sapatões e as travestis enfurecidas estavam apenas de piti e que morria ali. Ganharam a simpatia de diversos cidadãos. Por cinco dias, eles se reuniram e cobraram, se manifestaram. Marsha Johnson e Silvia Rivera, travestis, eram algumas líderes, que viraram ícones. Deram origem a Frente de Libertação Gay. Vieram muitas outras associações, outras passeatas, mais gente, mais LGBTs.
O preconceito não evaporou, nem o medo, nem os esconderijos. Nem todos os gays viraram leões, nem os oficiais passaram a respeitar. Mas a intolerância levou a primeira pedrada e tonteou. Veio se aguentando em pé, mostrando os dentes afiados quase sempre, por bicho perigoso que é. A subserviência idem. Entretanto, no cambaleio.
Dali a 44 anos depois, a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou a lei que impedia que o casamento igualitário ocorresse. E Edith Windsor, de 84 anos, autora da ação contra o trecho da Doma que define o matrimônio como “união entre um homem e uma mulher”, pôde ligar a seus amigos e dizer: “Casem-se” e “Quero ir imediatamente a Stonewall”.
Lá, conheceu Thea Spyer. Lá, elas dançaram a noite toda “a ponto de furar minhas meias”. Viveram por 42 anos, até 2009, quando a companheira morreu. Casaram-se no Canadá, mas não nos EUA. “Me sentia angustiada pelo fato de que, aos olhos de meu governo, a mulher que eu amei, de quem cuidei, com quem dividi minha vida, não era minha esposa legal, mas considerada uma estranha sem nenhuma relação comigo.”
Valeu a revolta. Valeu chamar para briga. Cada avanço na ira nada planejada e desorganizada da autodefesa.
Stonewall é a constatação do escritor francês Roman Rolland: “Quando a ordem é injusta, a desordem é um pouco de justiça”. E a espora inevitável e silenciadora do jornalista brasileiro Luís Gama: “Todo crime cometido pelo escravo contra seu senhor deve ser considerado como legítima defesa”.
Stonewall virou o símbolo de orgulho de gente que desde cedo, desde sempre, é ensinada a se envergonhar de si mesma e que precisa lutar muito, inclusive contra a própria auto-opressão injetada por fora, para sair das sombras.
Stonewall foi uma marreta para abrir rachaduras e deixar escapar o sem mais condições de comprimir.