Por Eduardo Pereira
Como deixar de viver no passado, quando ele foi seu maior momento? Como encarar tudo que ficou para trás, sem acabar personificando uma eterna RUMINAÇÃO do que já aconteceu?
Essas são questões assombrosas não só para os personagens de T2 Trainspotting – a sequência para a obra prima de Danny Boyle e companhia que é, até hoje, tida como sua mais influente realização – como para o filme em si, tido para muitos como “desnecessário” e encarregado, para outros tantos, da impossível tarefa de superar o clássico original.
Por sorte, Boyle sabe que a resposta reza no equilíbrio. T2 Trainspotting é um poço de energia, emoção e criatividade, ao mesmo tempo que é um mergulho de corpo todo no pior banheiro da Escócia no filme original. É conscientemente uma obra estruturada sobre o sentimento de nostalgia, mas que coloca o desenvolvimento dos personagens e daquele universo sempre em primeiro lugar.
É um filme que usa o passado para construir seu presente e futuro. Que rumina o que ficou para trás, sim, mas só o bastante para que o que está acontecendo e o que está por vir faça mais sentido.
T2 Trainspotting lança mão de vários flashbacks para cenas do original, contém diversos diálogos REMINESCENTES de 20 anos atrás e preserva toda uma aura que trabalham em prol desse sentimento, mas nunca de forma gratuita. Nunca dum jeito sorrateiro. A nostalgia forja um elo entre público e personagens, para que as sensações deles sejam transmitidas com mais credibilidade e intensidade a quem assiste. E isso funciona. Maravilhosamente.
Vinte anos depois de passar a perna em Sick Boy e Begbie, fugindo da Escócia com 12 mil libras ganhas numa venda de drogas e deixando apenas os 4 mil pertencentes a Spud, Mark Renton vive uma vida tranquila em Amsterdan, na Holanda. Livre das drogas, casado, com um bom emprego, ele concentra suas forças – seu vício – em corridas na academia. Um dia, porém, um problema de saúde faz com que a memória dos velhos tempos retornem bem frescas, e ele decida voltar ao seu país natal.
Na terra de Sean Connery (infelizmente, muito menos mencionado aqui do que no primeiro filme), um mais velho e lesado Spud divide seu tempo entre o uso de heroína, grupos de apoio com outros viciados e lamentações em relação a um casamento, uma carreira e uma vida de sobriedade arruinados por conta do horário de verão inglês. Enquanto isso, Sick Boy (agora, só Simon) toma conta do bar que era de sua família e aplica pequenos golpes junto a uma prostituta romena por quem tem um forte #CRUSH.
Com a chegada de Renton, repleto de nostalgia, culpa e motivado por uma possível crise de meia-idade, o trio, agora quarentão, mergulha novamente na época em que regulava 18, 19 anos, reabrindo velhas feridas, revivendo antigas alegrias, retomando amizades do passado e até enfrentando velhos vícios enquanto é forçado a encarar que, apesar de menos cabelos e mais rugas, eles não mudaram tanto assim. Mas quando Begbie foge da cadeia e coloca a vida de Mark – e quem entrar em seu caminho – em risco, talvez seja a hora de mudar.
Divertidíssimo, T2 Trainspotting é uma conquista para quem, como eu, gosta de ver seus heróis (ou anti-heróis) envelhecerem. McGregor, Jonny Lee Miler, Ewen Bremner e Robert Carlyle vestem a pele de seus personagens, mesmo duas décadas depois, como quem nunca as tirou. Atrás das câmeras, Boyle nunca esteve mais seguro na direção: suas metáforas visuais podem não ser tão revolucionárias aqui – já estamos acostumados com elas a essa altura, né? – mas são tão criativas e frescas quanto quando o cara começou a carreira.
A novata Angela Nedyalkova, que vive a prostituta “amiga” de Simon, coloca um tempero interessante no grupo, funcionando como um comentário do próprio diretor na sua obra. “Vocês vivem no passado”, ela diz a ele e Renton. E é verdade. Mas quando Mark declama a ela uma nova versão do monólogo “Choose Life”, ela entende que o passado deles é também o presente. Eles nunca mudaram e, provavelmente, nunca mudarão.
O mesmo não pode se dizer de Spud. Se ele e os outros coadjuvantes eram acessórios à jornada de Mark no primeiro filme, aqui são, em muitos casos, mais centrais à história que o próprio protagonista. Com um dos arcos mais emocionantes do filme, ele é muito mais do que o alívio cômico do grupo. Uma justiça que veio tarde pra Bremner, que vivia Renton nos teatros e foi descartado por McGregor na hora de levar a adaptação do livro de Irvine Welsh para as telonas.
Falando em arcos emocionantes, Begbie assume de vez o papel de vilão nesta sequência, mas não sem receber nuances emocionais que tornam o insuportável psicopata mais simpático ao público. Ainda assim, é inacreditável o quão assustador o baixinho Carlyle pode ser sob a ótica de Boyle, que o enquadra de baixo para cima em cenários de pouca luz só para acentuar o medo que sua figura inspira nos outros personagens.
Minha única queixa fica por conta da minúscula participação de Kelly MacDonald. Sua participação tem um sabor agridoce, além duma referência divertida pros fãs mais atentos, mas poderia ser melhor trabalhada. Ou pelo menos trabalhada de alguma forma. ¯\_(ツ)_/¯
Ao longo do filme, rolou mais de um momento em que minha garganta deu nó e meus olhos marejaram. T2 Trainspotting é um filme mais engraçado, mais otimista e muito menos sombrio que seu antecessor, mas é também muito mais universal – não só pela nostalgia, mas por tocar mais diretamente em tópicos como amizade e relações familiares e, por isso, deve trazer respostas emocionais mais intensas de quem o curtir.
Porque, claro, pode ser que uma galera não goste. Quem espera um filme sobre jovens drogados, procura o de 1996 no Netflix. Quem quer uma comédia sobre crime, também. T2 Trainspotting é muito mais um filme sobre pessoas, relações e frustrações. Sobre passado, presente e futuro, e como tudo caminha junto AND separado na jornada da vida. Sobre como a gente precisa estar constantemente dando passos para trás para irmos à frente. Mas, claro, com UM POUCO de drogas e crime. 😀
Se T2 Trainspotting supera o original? Ele nem tenta. Não é para isso, mas sim para evoluir uma história, personagens, divertir e provocar uma nova reflexão. Se é desnecessário? Tanto quanto qualquer outra grande sequência de um filme “fechado”. Se é um puta filme? Com certeza. Daqueles que ficam com você horas depois de acabar. Que te arrepiam na última cena. Que te seguram na cadeira depois que os créditos começaram a rolar, num ato de agradecimento pelos deuses do cinema terem permitido sua existência.
E se tudo isso for porque eu tenho um fraco para nostalgia, que seja. Taí um filme que já ficou no meu passado, mas que vou adorar revisitar.
*Eduardo Pereira é um dos colaboradores do Judão.com