Campo de Jogo (2014)

*Por Paulo Júnior

Eu queria fazer um filme-ritual, onde cinema e futebol se amalgamassem.

A definição de Erik Rocha, sobre seu espetacular filme Campo de Jogo, dá o tom de seu maior acerto: enquanto falamos e ouvimos e repetimos que o cinema tem dificuldade em retratar o futebol, a presença da câmera na final de um torneio entre comunidades num campo de terra próximo ao Maracanã não conta nem retrata ou narra o jogo – ela encontra o jogo para formar outro lugar de invenção. Amálgama.

Se a grande diferença entre ficção e documentário é a relação ética entre o realizador e seus personagens, Rocha se permite apenas um parágrafo de didatismo. O longa começa situando o espectador sobre o que virá pela frente, a decisão de um jogo entre Geração e Juventude. O campo de jogo, aqui em minúsculas, surge como protagonista, os times sobem à terra batida e a partir daí tudo é vertigem.

Porque se Campo de Jogo já começa com a premissa de investigar as origens do futebol brasileiro em tempos de padrão Fifa e superexposição do esporte pasteurizado e global, outra fuga, essa da imagem, se dá diante da imposição de uma estética pela televisão. Se é possível assistir a segunda divisão do Campeonato Chinês com tomadas aéreas em HD, por onde se conta a história em Campo de Jogo, entre times que a gente não torce e não temos ideia de como chegaram ali? Pelo chão. Tal como renega a arena cinza construída sobre o Maior do Mundo ofuscado ali ao lado, o filme nos lembra do que vale o cinema se não permitir a inauguração de um novo olhar, que quando bem executado gruda na memória para sempre.

E o gol? Rocha resvalou, em sua entrevista a esta Central 3 em julho de 2015, que em Campo de Jogo o gol não é o mais importante, mas sim o movimento, a dança, o campo de batalha. O diretor é muito bem resolvido com sua proposta, e ele também usou o termo ‘epidérmico’, aquilo que se refere a pele, o suor, o corpo. Lindo. Viaja numa brisa metafísica e metafórica e leva 22 caras correndo atrás de uma bola para um lugar quase inalcançável aos olhos, feito um exercício de Nelson Rodrigues ou outros contadores de histórias do nosso futebol; mas volta, ao chão, à terra, ao vento de areia que corta os olhos do goleiro, elegantemente combinando a vertigem com a realidade. Como Graciliano Ramos, em Vidas Secas: a caatinga estendia-se sobre um vermelho indeciso, salpicado de manchas brancas, que eram ossadas… e quando você pensa que a narrativa vai flutuar num vazio, como se fosse possível uma folha escapar da árvore e parar num vácuo, voltam aquelas pessoas, Fabiano, Sinha Vitória, os meninos, a cachorra Baleia, volta aquela família caminhando no chão de terra batida. Isso é Campo de Jogo.

E o gol?, retomo. O gol não é um mero detalhe, parafraseando Carlos Alberto Parreira ao contrário. Fosse, o chute decisivo da partida retratada no filme não seria repetido quatro vezes, por quatro ângulos, feito os melhores momentos de jogos na internet (aliás, por que melhores momentos na internet têm replay se você mesmo pode voltar o lance?). E aí está a grande peça pregada por Rocha. É futebol ou não é, oras? É dança, mas dança não dá frio na barriga na hora do pênalti. É performance, mas na performance ninguém chora quando perde. É futebol e muito. E o gol é importante demais. Cada vez que alguém fala que futebol é mais que um jogo, lembremos o oposto. É assim, tanto, exatamente por ser SÓ um jogo. Não é experimento social, apaixona porque ganham e perdem.

No fim das contas, Campo de Jogo é uma saudação a um estar no mundo brasileiríssimo. Aquele retângulo – torto, irregular, comprido demais ou de menos, com gramas rebeldes nos cantos – enquanto melhor lugar para se estar em toda a comunidade, bairro, cidade. E enquanto protagonista de uma formação da identidade brasileira irreversível, por mais que os analistas das repetidas mesas redondas da TV – como estão distantes da várzea, nossa – insistam em problematizar a iminente reverberação de Garrincha, Pelé e tantos outros.

Campo de Jogo nos devolve aos primeiros sonhos, que parecem sair de antes do nada, ancestrais tal como crianças chutando bolas, resistência num tempo contemporâneo em que, mais do que nunca, o campo de jogo, de novo em minúscula, anda claustrofóbico, disciplinando até as convicções mais profundas.

(Reflexos do debate mediado por Lu Castro e na companhia do jornalista Diego Viñas em 4 de maio de 2017, no Teatro Anchieta, em São Paulo, após a exibição de Campo de Jogo pela mostra De Encher os Olhos, com programação gratuita, às terças e quintas do mês de maio, e um filme começando sempre às 19h.)

 

*Paulo Júnior é jornalista, cineasta e comanda alguns podcasts dentro da Central3.

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Os tambores da greve voltam a preocupar Hollywood

*Por Renan Martins Frade

Agora você pode, por uma pequena quantia por mês, ter diversos filmes e séries para assistir quando quiser, na hora que quiser, tudo via internet. Esse tal de futuro é legal pra caralho, né?

Mas, saiba você, o seu serviço de streaming por assinatura favorito é uma das questões no meio de um cabo de guerra que pode levar a uma nova greve dos roteiristas nos EUA, bem parecida com aquela de 2007 que, por exemplo, encurtou temporadas de séries como Lost, Breaking Bad, Heroes e Prison Break.

É que o Sindicato dos Roteiristas do Oeste dos EUA (Writer’s Guild of America, West – o WGAW) está, neste exato momento, notificando os seus associados para duas reuniões, uma no próximo dia 18 de Abril, às 19h do horário local (23h no horário daqui) no Sheraton Universal, em Universal City, e outra no Beverly Hilton, em Beverly Hills, no dia seguinte, 19, mesmo horário. Já o Sindicato do Leste (Writer’s Guild of America, East – o WGWE) anunciou que o encontro deles, único, acontece em 19 de Abril, em Nova York, às 19h locais – ou 20h de Brasília.

A partir daí, até o meio-dia no horário do Pacífico do dia 24 de Abril (16h por aqui), todos os membros vão poder votar online e decidir se autorizam ou não uma greve. Isso não significa uma parada instantânea — o sindicato ainda pode usar essa autorização de seus afiliados para barganhar um acordo final. Se a negociação não andar, aí sim, a greve acontece.

Se confirmada, esta será a sexta paralisação dos roteiristas na história – todas ocorrendo em governos de um presidente do Partido Republicano, com as anteriores em 1960, 1981, 1985, 1988 e, claro, a de 2007-2008.

Entre as exigências do WGA, que é a união entre os sindicatos dos dois lados dos EUA, para o Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP), que representa a galera da grana, está uma renda maior das produções que vão para o SVOD, ou seja, o streaming por assinatura – justamente o caso de Netflix, Amazon Instant Video e Hulu. Não, não é que essas empresas estejam pagando menos para alguém. — na realidade, elas é que se tornaram grandes fontes de receita para estúdios, distribuidoras e produtoras, principalmente após a queda do DVD e do Blu-Ray. Com uma maior importância do video on demand nesse mercado, o sindicato quer uma maior fatia no bolo para os seus associados. Simples assim.

De acordo com o sindicato, essa mudança no equilíbrio de forças fez com que as empresas de entretenimento lucrassem US$ 51 bilhões no último ano, um recorde, enquanto a renda dos roteiristas caiu 23%. É, de certa forma, parecido com o que rolou na greve de dez anos atrás: os roteiristas queriam receber uma fatia dos lucros com DVD e o que se chamava na época de “novas mídias”, uma vitória que se dissipou com a mudança no mercado de entretenimento que vimos nos últimos anos.

Sim, a internet estava dentro de “novas mídias”, mas agora as temporadas estão sendo muito menores – entre 10 e 13 episódios, contra 20 e tantas que eram, antes, a norma. Como os roteiristas ganham por episódio, as coisas ficaram mais difíceis.

Há outras exigências, como políticas racionais para dispensas por conta de doenças na família, aumento de renda para roteiristas de comédias e por aí vai. Mas a pedra no sapato mesmo, de acordo com o deadline.com, é o plano de saúde – que estaria quebrado.

Atualmente, o déficit desse plano é de US$ 50 milhões. Os empregadores já toparam ajudar a pagar 80% dessa dívida até 2020, mas querem que o sindicato bote a mão no bolso também. Só que o WGA simplesmente não tem esse dinheiro: seria algo por volta de 10 milhões de Trumps, da grana deles, a mais nessa conta. Não é pouco.

Uma solução seria pegar para o próprio sindicato uma fatia dos aumentos que a indústria oferece aos roteiristas, ajudando a quitar esse déficit, mas o WGA não está interessado nessa alternativa.

Em carta distribuída aos associados no final de março – e divulgada pelo Hollywood Reporter – o Writer’s Guild bateu o pé, afirmando que estúdios, distribuidoras e produtoras negaram os aumentos, as férias e ofereceram um pouco mais de ganhos no SVOD. “Eles demandam a adoção de uma medida draconiana na qual futuras deficiências do plano seria compensada por reduções automáticas dos benefícios – e nunca pelo aumento das contribuições patronais”, afirmaram.

Isso tudo deve atrapalhar bastante um acordo – que, aliás, aconteceu, recentemente, com o sindicato dos diretores, que conseguiu aumentar seus ganhos no streaming. O WGA chegou a interromper as negociações na semana passada, retomando o papo nesta segunda (3).

Lá nos EUA, essas coisas de sindicatos e greves, pelo menos na indústria do entretenimento, são sérias. Praticamente todos os roteiristas são filiados ao WGA, que é responsável não só pela relação entre empregados e empregadores, mas também por arbitrar questões como os créditos aos roteiristas, verificar copyright, registrar roteiros e dar benefícios aos associados, como o plano de saúde – que é muito importante num país sem saúde pública e com um atual presidente que quer acabar com a alternativa criada pelo anterior.

Você pode até não ser sindicalizado, mas tá aí um pessoal que não vale a pena irritar.

Ou seja, se os membros do sindicato votam pela greve, todos os membros são obrigados a parar. Séries e filmes com script – basicamente tudo que não é reality show – ficam sem textos e pouca gente tem coragem de furar a greve. Além disso, algumas gravações acontecem com a presença de um ou mais roteiristas, responsáveis por ajustar textos e fazer correções de rota no local, caso algo dê errado (o que acontece muito com sitcoms, por exemplo, quando uma piada não funciona e a plateia no estúdio não ri).

Na última greve, entre 2007 e 2008, teve gente querendo continuar. Scripts foram adiantados no período pré-greve e há sempre a possibilidade de reutilizar textos antigos, entre outras alternativas. Por isso os profissionais filiados ao WGA fizeram piquetes na frente de diversos estúdios. O time de The Office, por exemplo, tentou continuar as gravações nos primeiros dias da greve, mas o astro Steve Carell se recusou a furar o bloqueio na frente do estúdio. Por isso, a série acabou tendo uma temporada com menos episódios naquela oportunidade: 19, contra 25 da temporada anterior.

Já a Disney, na época, contratou fura-greves com pseudônimos para continuar com a produção de scripts de Power Rangers: Fúria da Selva – algo bem alinhado com a postura de seu fundador, diga-se.

Se a nova greve for confirmada nas próximas semanas, esse cenário geral deve se repetir.

A mudança, desta vez, é que a greve tem tudo para ocorrer justamente no período de hiato de boa parte das produções na TV aberta – em 2007, a greve começou em novembro. É um momento no qual não rolam tantas gravações, mas é justamente o momento de definir planos e escrever os roteiros das próximas temporadas. Se a parada for rápida (em 1987, a greve dos diretores durou apenas 3 horas e 5 minutos), talvez alguma pressa depois compense o tempo perdido. Agora, se demorar, a temporada 2017-2018 da TV dos EUA tem tudo para começar bem atrasada.

É bom lembrar que as séries de TV paga e do streaming possuem muito mais importância no mundo de hoje – inclusive se transformando em uma das justificativas da nova greve. Como essas produções não seguem o ritmo normal da TV aberta, o impacto vai variar. Quem deve sofrer, mesmo, é o Netflix, que tem investido muito em séries originais com lançamentos quase que semanais, um planejamento que deve ir pelo ralo – ou que talvez resulte num aumento do investimento em séries internacionais, como já fazem aqui no Brasil e no México.

Outro detalhe é que mais produções atualmente são rodadas fora dos Estados Unidos, por conta de menores custos, inclusive com mão de obra mais barata, já que ficam livres dos acordos dos sindicatos americanos. Aí os resultados da greve vão variar de acordo com o emprego de profissionais dos EUA ou locais.

No cinema, os resultados de uma eventual greve devem demorar um pouco mais para aparecer, já que os roteiros de filmes que ainda estão em pré-produção devem atrasar – afinal, essa mão de obra é basicamente de americanos sindicalizados. Não se espante, por exemplo, se estúdios começarem a desenterrar roteiros anteriormente recusados, no caso de uma longa greve.

Alguns também podem procurar outras soluções, como David Letterman, que era dono da empresa independente que produzia o Late Show With David Letterman e não era representado pela AMPTP, fez em 2007, entrando em um acordo diretamente com a WGA, retornando com o programa logo no início de 2008. Jay Leno e Conan O’Brien voltaram com seus programas no mesmo dia, mas sem roteiristas – e viraram alvos do sindicato.

Algumas outras situações bizarras podem acontecer, principalmente no caso de produtores-roteiristas ou showrunners, que acumulam as duas funções e podem ser integrantes de mais de um sindicato. Como membros do WGA eles não podem furar a greve, mas como integrantes do PGA (Producers’ Guild of America) eles têm que continuar trabalhando e, se as gravações acontecem fora dos EUA, podem se ver obrigados a contratar roteiristas locais.

Independente do momento e das definições, a certeza é que muito dinheiro vai ser perdido se realmente rolar a greve. Da última vez a indústria do entretenimento perdeu ou deixou de ganhar US$ 500 milhões, enquanto Los Angeles viu US$ 1,5 bilhão evaporarem da economia local. É muita coisa. Mas os roteiristas, claro, estão pensando nos ganhos que terão no longo prazo – e na saúde deles e de suas próprias famílias.

O que é bem justo.

Ah, sim: o Screen Actors Guild, o sindicato dos atores, acompanha toda essa movimentação bem de perto. Eles devem ser os próximos a exigir algo dos produtores de cinema e TV – isso com uma “força de trabalho” dez vezes maior que a dos produtores…

Estamos de olho.

 

*Renan Martins Frade é colaborador do Judão

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