Sabiam que corriam perigo, mas era por necessidade. Os seis integrantes do projeto The Hidden Flag tinham a necessidade de se expressar, de protestar, de gritarem “Presentes!” na Copa do Mundo. A Rússia, LGBTfóbica da raiz às folhas, foi desafiada e enganada. Seis cabeças erguidas acima de camisas de seleções desfilaram por Moscou com a bandeira do arco-íris oculta e exposta em seus corpos. Chama-se coragem.
Cada um com coragem de afrontar, mesmo que com artimanha. Coragem para se prontificar a ir, mesmo consciente de todos os riscos. Coragem desde que viu o convite da Federacion Estatal LGBT, de Madri, pensou que queria ir, repensou se queria ir, decidiu que queria ir. Foi. Pensou se realmente era firmeza ir às ruas, repensou, vestiu a camisa, se encontrou com as parcerias. Foram.
“Você tá maluco? É muito perigoso”, avisou o namorado de Eloi Júnior, o brasileiro no protesto. Era a preocupação, aquela cola que não deixa o que já de ruim te ocorreu sair do pensamento. Ele garantiu: “O risco não me importa. É um projeto que quero muito participar”.
Eloi tem uma história não muito diferente de tantos homossexuais. Família conservadora, cidade conservadora, meio ambiente conservador a enfrentar e o condenar. Cresceu, como eu, em um Brasil onde a homossexualidade, a bissexualidade, a transexualidade e a interssexualidade nos são apresentadas como as maiores vergonhas para a família, para os amigos, para a própria pessoa. E você se encolhia, se escondia, se culpava, se sentia o erro, a desonra, a pior das condições, a que a sociedade tinha razão em odiar. Era contra a natureza, os desígnios divinos, a família tradicional.
“Já tá errado por ser viado.” Ouviámos direto, deslegitimando qualquer reivindicação, tivesse ou não a ver com homossexualidade. Onde o desencaixado sexual tinha, no máximo, o direito de se calar, se retirar, para não apanhar. Aprendemos a nos encolher para sobreviver.
O clima mudou e meio mundo se conectou, se reconheceu, se deu as mãos, ganhou incentivo, ganhou disposição e coragem para ir às ruas determinado a não se negar mais. A retirar véus. Meio mundo se deu às mãos para o confronto. O Bandeira Escondida (The Hidden Flag) é um exemplo.
Na Rússia, o meio mundo ainda é menos que metade. Dá cadeia exibir afetos e símbolos LGBTs. Os seis ativistas eram a vulnerabilidade caminhante. Foram um misto de Espanha, Holanda, Brasil, México, Argentina e Colômbia com medo e com perseverança, com decisão de lutar, com reafimação da decisão, com respirar fundo, com seguir em frente, com a lucidez emparelhando com a loucura, o que deu em coragem. Deu em desataque de prudência, que ativista tem ao emprestar o próprio corpo a uma causa.
Fizeram fotos, postaram na web, passaram na cara. Causa se defende não apenas com amor e informação. Desaforo dá ânimo e satisfação.
Bastava que alguém desconfiasse e denunciasse. Bastava algum policial reconhecer a ordem das cores. O cassetete descia. Consideram afronta, desrespeito ao país. Odeiam. Agridem.
A violência, na vera, não é por causa dos beijos em público, nem pelas bandeiras levantadas, pelos atos políticos. São só atitudes que causam mais raiva. A violência vem por nossa existência. Antes das paradas, dos carinhos ao ar livre, da autoestima e da não autocriminalização já havia espancamentos e mortes. Odeiam a nós por sermos quem somos, mesmo a quem insiste em um armário que pouco dá segurança.
Os seis sabiam que era arriscado. Poderiam ganhar ou perder. Perder feio. Ganharam. Caminharam torando aço, mas chegaram a um campeonato que lhes será eterno a cada jogo: o de ter coragem de entrar em campo.
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O time mais forte da história… Essa frase por si só já desperta curiosidade, não é mesmo? Pois bem, esse é só dos tópicos abordados na Parte 8 do ESPECIAL COPA DO MUNDO. Leia e confira uma série de curiosidades que só a Central3 traz para você:
59 – 1974: UMA COPA BELA, BOA, MAS AMEDRONTADA
Sede dos Jogos Olímpicos de 1972, a cidade de Munique construiu, em um terreno que era, na Segunda Guerra, uma espécie de almoxarifado de aviões e itens bélicos, um parque olímpico espetacular, com ginásios, piscinas, quadras e o grande estádio, cujo teto, transparente e em forma de gotas, dava implacável marca arquitetônica não só aos Jogos, mas ao país que se pretendia novo e livre das quinas sóbrias e tristes que marcaram as construções do período nazista. Era tudo tão belo que Munique ganhou o direito de sediar ali a final da Copa do Mundo de dois anos depois, em 1974. Berlim teria pouca moral, até porque era uma outra Alemanha, ainda com fraturas sociais severas e um muro no meio.
Acontece que nas Olimpíadas de 1972, um ataque terrorista matou dois atletas de Israel, nove reféns ao todo, e manchou, de sangue inclusive, o que era para ser uma Olimpíada que mostraria ao planeta uma nova Alemanha. Foi chocante, mas os jogos seguiram após paralisação de um dia e meio. Tendo uma Copa para sediar em 74, os organizadores tiveram dois anos para arquitetar algo menos lírico que tetos translúcidos em forma de gotas: o plano era montar um Mundial absolutamente blindado do risco de novos ataques e novas mortes de atletas ou quaisquer inocentes. O resultado disso: o povo não viu ninguém, ninguém viu direito o país, foi a Copa onde os jogadores menos saíram de suas superprotegidas concentrações.
Mesmo os simpáticos ônibus das delegações, pintados nas cores e com os nomes dos países, feitos pensando na boa relação com o público, só se deslocavam no meio de potentes caravanas de segurança. O mundo ainda sofria para bancar a paz, e o futebol, em plena Alemanha, não conseguiu dar esta sensação temporária aos seus visitantes. Foi uma Copa do Mundo, entre os apitos inicial e final de cada jogo, notável, das melhores. Foi, também, no que tange televisionamento e estrutura de promoção, ótima para os negócios de uma FIFA que acabara de eleger João havelange presidente. É a Copa que mostra ao mundo a beleza da nova taça, posto que a Jules Rimet ficou (ficou?) em definitivo no Brasil. Mas é, também, uma Copa amedrontada – que Cruyff tentou, e conseguiu, deixar um pouco menos durona.
58 – O AR MINEIRO, O PSICÓLOGO COMPREENSIVO E O TIME MAIS FORTE DA HISTÓRIA
1950, Maracanazzo; 1954, Batalha de Berna; de 1955 em diante, mais derrotas, outras batalhas campais, inúmeros treinadores em revezamento até que, em 7 de abril de 1958, em Poços de Caldas, as coisas mudaram um pouco de figura. O Brasil das seleções bairristas dos anos 30 continuava um mistão Rio-S. Paulo, mas o ar mineiro fez bem. A seleção conheceria uma rotina sofisticada para a época: o diálogo de atletas com psicólogos, e a consulta com dentistas, além de um diferenciado trabalho de supervisão e trabalho físico. Era um notável esforço para deixar para trás os dois traumas tão recentes nos mundiais pregressos. Pois bem.
Por que Zagallo, e não Pepe? O comprometimento tático do esforçado Zagallo cativava Vicente Feola e fez a diferença nos amistosos. Cadê Julinho Botelho? Este, no auge, atuando pela Fiorentina, se recusou a jogar, por não achar justo um atleta trabalhando fora do país representar a bandeira num mundial. Jogou Joel. E o Zizinho? 35 anos, fio desencapado, melhor não. Tá, mas e o Pelé? Com menos da metade da idade de Zizinho, talvez não estivesse pronto, né. Mas era Pelé. Como era Garrincha, a quem, em um apelo ao psicólogo, Djalma Santos teria dito que “ele é burro para os seus testes, talvez erre tudo que o senhor perguntar, mas não o reprove, na verdade ele é um gênio”.
Pelé, que estava meio baleado, ganhou a titularidade ao longo da Copa. Nada mais o deteria. A camisa 10 ele ganhou em um acaso, número dado sem critério por um membro organizador da Copa, quando notou que o Brasil se esqueceu de providenciar. “Acaso”. Joel saiu e a gente alinhou, na final, com Garrincha, Pelé, Vavá e Zagallo, mas podia ser, sei lá, Julinho, Almir Pernambuquinho, Zizinho e Pepe (ou Canhoteiro!), e atrás do ataque tinha Zito e Didi, pelos lados tinha Djalma Santos (ou De Sordi) e Nilton Santos, putaqueopariu, era muita gente, era muito time.
Foram, provavelmente, os melhores dias para se assistir futebol no Brasil.
57 – TANTO JOGO, TANTA ESPERA, E É NA MARCA DA CAL QUE TUDO ACABA
A primeira disputa em pênaltis de uma Copa do Mundo foi na semifinal de 82, jogo entre Alemanha x França, indispensável em qualquer lista de maiores jogos de todos os tempos. Schumacher, goleiro alemão, foi o herói, com duas defesas, mas nem deveria estar lá: um lance de karatê no tempo normal quase partiu a cabeça de um adversário em dois, mas o juiz não se importou. Schumacher era uma lenda no Colônia, seu clube por 15 anos, de onde saiu para dar lugar a Illgner, que também ocuparia sua vaga na seleção, sem, no entanto, jamais enfrentar uma disputa de cal mundialista.
Em 86, no México, três disputas aconteceram. A mais icônica vitimou o Brasil e consagrou a França, que teve até Platini perdendo cobrança, bola batendo na trave e nas costas do goleiro Carlos antes de entrar, Zico perdendo um penal, mas no tempo normal, um inferno, mas uma redenção aos franceses ressentidos por 82. Schumacher – olha ele aí – defendeu mais duas cobranças para sua seleção, que tirou o México, enquanto o belga Pfaff defendeu chute de Eloy e eliminou a Espanha.
Cresceu o número de jogos levados aos penais: quatro em 1990. Illgner, o substituto de Schumacher, pega o seu e elimina a Inglaterra em Mundial que marcou a figura de Goycoechea, argentino nascido para as penalidades máximas que eliminou a anfitriã Itália. Nesta Copa, Maradona perdeu pênalti contra a Iugoslávia, mas Goycoechea o salvou de ser vilão. No outro jogo decidido assim aquela feia e linda Irlanda bateu a Romênia, atingindo patamar inédito na sua história. Daí em diante, 1994, primeira final decidida assim, Baggio na mira do mundo, Ravelli saltitando com a vitória da Suécia, Jorge Campos coloridão e inútil contra a Bulgária, e 98, com o argentino Roa, a redenção em vão de Baggio, o imenso Taffarel padroeiro de Marselha, a decisão de 2006 de novo nos pênaltis, tantos quase heróis na fábrica de vilões, e uma certeza: vai acontecer de novo na Rússia.
56 –
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
56 – A HOLANDA PROMISSORA QUE FALTOU À FESTA
Era bárbara aquela Holandacampeã européia de 1988. Chegaria na Copa de 1990 como favorita da bola, pela qualidade do time, e da galera, graças ao carisma de alguns de seus jogadores – Gullit e seu cabelo de medusa à frente da companhia, claro. O imaginário ao redor deles passava também pelo Milan supercampeão que reunia, além de Gullit, o matador van Basten e o meia Rijkaard. Esse imaginário passa longe da realidade do escrete holandês.
Entre a Euro 88 e a Copa de 90, muita lambança azedou a laranja. Os problemas entre o elenco e o treinador que assumiu (um cretino que fez decalarção racista sobre Gullit anos antes) se tornaram inconciliáveis faltando três meses para o Mundial. O grupo, então, numa votação com três nomes, elegeu Cruyff como técnico. Mas a federação vetou. Se vetou, por que colocou o nome na votação? Leo Beenhakker, segundo colocado na tal eleição interna, assumiu sem moral, e o elenco não tinha a menor unidade. Estava desfeita aquela comunhão linda e campeã de dois anos antes, e, com três empates e uma derrota, a Holanda foi a decepção mais melancólica do Mundial.
Acontece que o trio milanista continuou arrebentando no Milan. Gullit voava baixo em esplendor físico, e van Basten foi eleito o melhor jogador do mundo pela Fifa em 1992. Mas a estrada para van Basten acabou em 1993, aos 28 anos, derrotado pelas lesões e insuportáveis dores. Já Gullit, confirmado na Copa, abandonou a concentração e se mandou, por problemas com o técnico. Aquela Copa seria de Bergkamp, em campo, imaginando como seria a companhia dos dois. Ficou na imaginação. Gullit fez um gol, na terceira rodada da Copa de 90, na qual van Basten passou em branco. Rijkaard, expulso no jogo da eliminação de 90 com direito a cusparadas, assim no plural, no alemão Rudi Voller, jogou, e bem, em 1994,
A Holanda, que em 1996 passou por um escândalo de racha no elenco por questões raciais, se revigorou e foi brilhante no mundial de 1998, que serviu, pelo menos, para rebater a ressaca de uma década que começou tão promissora mas não deu em nada. A Copa olha para a foto de Gullit e van Basten e não sabe porque deu tão errado.
55 – O URUGUAI SEM GRAÇA, A QUASE VIRADA E OS TEMPOS DE RECOBA QUE NÃO DEIXARAM SAUDADE
Não dá para cravar que foi tudo ruim na campanha uruguaia na Copa de 2002. O empate buscado na última rodada, contra Senegal, por exemplo, foi impressionante, embora mero reflexo do 3×0 que sofreu no primeiro tempo. O grupo em si se mostrava severo, com a França perdendo para o próprio Senegal logo na abertura do mundial e invertendo a lógica das coisas. Sob pressão, nas cordas, os uruguaios foram firmes no duelo contra os então campeões do mundo, um 0x0 digno que só deixava uma missão para a Celeste de Recoba: vencer Senegal para passar de fase.
Mas não passou. Ficou no 3×3, com dramalhão tipicamente uruguaio, gol absurdo perdido no último lance e lágrimas após o apito final. Coube a Recoba o gol do empate, aos 43, de pênalti, o que tem lá o seu simbolismo.
Recoba foi o autor do “gol do quase” que simbolizou toda a sua passagem como líder técnico da celeste naqueles anos: qualidade técnica indiscutível, insuficiência física, fraqueza mental e pouca contribuição no fim das contas. Na repescagem para a Copa seguinte, o Uruguai conseguiu ser eliminado pela Austrália, e Recoba, substituído no segundo tempo, teve atuação abaixo da crítica. A Copa do Mundo não daria nova chance para ele, como também encerrava a história mundialista de outros nomes como do zagueiro Paolo Montero e do atacante Richard Morales – aquele que perdeu o gol feito do 4×3 contra Senegal.
O Uruguai de 2010, que mostrou caráter acima do normal além de um futebol solidário e dedicado, tinha por perto as memórias recentes de quando o Uruguai foi só mais um time frio e sem alma no meio dos outros, com um quase craque que, olhando hoje, não era o que a Celeste precisava. Alvaro Recoba provavelmente era mais técnico do que Diego Forlán, Loco Abreu ou até mesmo Luisito Suárez, mas sua passagem pelo futebol, inclusive em clubes, ficou marcada pela pouca personalidade para grandes momentos. Desconta-se muito por causa de suas lesões ao longo da carreira, mas, mesmo assim, não faltaram oportunidades dele se tornar aquilo que, anos depois, os caras do Uruguai de 2010 se tornaram. A Copa às vezes não dá segunda chance.
53 – SANCHO, QUASE, SANCHO!
Brent Sancho é o Gamarra de Trinidad & Tobago. Sua participação no Mundial de 2006, na Alemanha, causou choque: foi o melhor em campo, ao lado do goleiro Hislop, na estreia diante da Suécia, que metralhou em vão a área trinitária. O estádio de Dortmund pintado de amarelo sueco, Ibrahimovic todo pimpão em campo, mas nada feito com Sancho. O cara ganhou tudo por cima, por baixo, pelos lados, e sacudiu seu cabelo rastafari rumo á seleção da primeira rodada da Copa.
Na segunda rodada, lá estava de novo Sancho, segurando desta vez a Inglaterra. Sancho atuava pelo minúsculo Gillingham, inglês, e levava vida de anônimo no futebol daquele país. Mas foi, minuto a minuto, ganhando contornos de nova lenda ao passo que segurava a seleção inglesa e levava os caribenhos ao segundo ponto na competição.
Quem assistia ao jogo tinha um belo embate para acompanhar: Sancho de um lado Peter Crouch do outro.
Não que seja um embate dos mais belos. Sancho não era uma sumidade técnica, e Crouch, com mais de dois metros de altura, foi um dos atacantes mais estranhos a chegar numa Copa. Suas pernas muito finas, seu jeito desengonçado e a aptidão para apenas um tipo de jogada – a bola aérea – condicionava o jeito de jogar do bom meio-campo inglês. e Sancho, ao lado de seus companheiros, seguraram a bronca até os 38 do segundo tempo.
Mas o gol de Crouch foi puxando o rastafári de Sancho. Uma falta que o juiz não viu, e quase não dava para ver, mesmo. Uma das disputas de cabeça mais insólitas de todas, que salvou Crouch temporariamente do banco de reservas e acabou com o doce encanto dos tobaguenses.
52 – NÃO COUBE A ABERTURA DA COPA NAQUELE DIA
O Filme da Copa de 1994, “Todos os Corações do Mundo”, teve a presença de espírito de iniciar o documentário entrevistando americanos comuns, que se enrolavam para responder o que era “Soccer”. Eles mal entendiam do que se tratava aquele esporte que teria seu maior evento dentro de tal país. Futebol, para eles, era o da bola oval, o do gol que vale seis pontos e se chama touchdown. O futebol deles, americano, cedeu alguns estádios para o evento da Fifa, mas fez jogo duro no campo da narrativa midiática: o dia de abertura da Copa do Mundo de 1994 foi um dos mais insanos da história do jornalismo televisivo dos Estados Unidos.
Tudo porque O.J. Simpson, o mais famoso jogador de futebol americano de sua geração e um revolucionário na arte de vender sua imagem, uma figura presente em propagandas, filmes, discos, saiu em fuga da polícia em Los Angeles, acusado de assassinar sua esposa e um rapaz. Simpson, negro, oferecia um paradoxo pesado para o contexto americano, pois era aceito, quase visto, como um homem branco em uma sociedade racista e uma estrela de fácil consumo para todas as faixas de idades e nichos. E sua perseguição policial foi um divisor de águas na compreensão das possibilidades tecnológicas em coberturas ao vivo. Tantos helicópteros filmaram aquela perseguição longa, em baixa velocidade (os inúmeros carros da polícia não queriam confronto, só a entrega do astro), que os sinais de satélite entraram em colapso e uma tevê acabou pegando o sinal da outra. Uma loucura.
Naquele mesmo dia, em Nova Iorque, o time dos Rangers, campeão nacional de hóquei depois de 54 anos de jejum, entupia as ruas da cidade com seu passeio pelas ruas, em carro especial, exibindo a taça para o povo eufórico. O que vem de Nova Iorque acaba rebatendo no noticiário nacional, e a conquista dos Rangers pedia espaço nos respiros daquela transmissão insana da possível fuga de O.J. Simpson. Ah! Você não conhece Arnold Palmer, golfista, mas naquela manhã, no início do US Open, ele anunciou aposentadoria com muita emoção. Tratava-se de um Pelé do golf, figura lendária, e mais uma bomba para noticiar. Acaba por aí? Não: Às 18h começaria New York Knicks x Houston Rockets, o quinto jogo da final da NBA, cujo time de Nova Iorque há muitos anos perseguia, e jogava ainda sob a emoção do que viu na cidade pela manhã, na festa dos Rangers.
No ginásio de basquete, no campo de golf, nas ruas que festejavam a final do hóquei, todos falavam de O.J. Simpson. E, às 14h, Bolívia e Alemanha entravam em campo para a abertura da Copa do Mundo de futebol. Mais tarde, lá pelas sete, Espanha e Coreia do Sul fechariam o grupo. Como designar tantos profissionais para tanto assunto? 17 de junho de 1994 foi um dia inesquecível nos Estados Unidos. A Alemanha ganhou da Bolívia, 1×0, os espanhoes empataram com os coreanos, 2×2, os Rockets foram campeões da NBA e até hoje os Knicks perseguem a taça. O.J. Simpson conseguiu liberdade recentemente, após o julgamento mais midiático da história da nossa estranha civilização.
51 – AS DUAS INGLATERRAS POSSÍVEIS NO MEIO DO CAOS E A PERSEGUIÇÃO QUE CONTINUA
Em 29 de maio de 1985, a tragédia de Heysel matou 39 pessoas e tirou a importância de Juventus x Liverpool, final do campeonato europeu. No ano seguinte, a seleção inglesa sofreria sua mais icônica derrota, aquela para a Argentina do genial (gol do século) e malandro (a mão de deus) Maradona. E dalí em diante viveria situação inusitada: a punição encontrada pela Uefa tiraria da praça os clubes ingleses por cinco anos, relegados apenas às competições nacionais – a torcida do Liverpool foi considerada culpada pelo massacre. O país discutia internamente o que fazer neste período para não sofrer uma queda bruta econômica, técnica, midiática. Uma das saídas era no campo político, e nisso os ingleses são bons, inventores do esporte que são.
Faltou combinar com os hooligans, fenômeno fora de controle naqueles anos, resultado de uma complexa textura social britânica. Quando a punição já estava quase abandonada, já que a opinião pública estava olhando para outras coisas, os torcedores ingleses que foram à Alemanha para a Eurocopa de 1988 barbarizaram. Quase 400 deles foram presos, e o rastro da visita destes torcedores por onde o English Team passou era visível e pegajoso. No ano seguinte, para piorar, aconteceu o desastre de Hillsborough, naquele país, quando um erro policial resultou em 96 mortes, todos torcedores, que, numa trama absurda, se tornaram, por muitos anos, culpados pela própria morte segundo a justiça daquele país. É neste cenário que a Inglaterra chega à Copa do Mundo de 1990.
Quem acredita em sorteio, acredita. Eu, não: a Inglaterra foi colocada para atuar na Sardenha, no estádio do Cagliari, extremo sul da Itália, onde, digamos assim, a organização de poder paralelo não era das mais suaves. Trocando em miúdos, enfiaram os hooligans ingleses numa região difícil de chegar promovendo quebra-quebra – os ingleses apanhariam feio por ali. Andaram miúdo, falaram baixo e viram em campo duas personificações possíveis do que era o momento do futebol inglês: Gary Lineker, que nunca tomou um cartão na vida, representava uma Inglaterra de estereótipo, cavalheiro como um lorde, de origem humilde e queixo erguido; e Paul Gascoigne, um desajustado que representava a rebeldia social daqueles tempos, beberrão, falastrão, valente.
Não é de se estranhar, portanto, que, na semifinal, quando Gascoigne se descontrolou em campo e teve um acesso de choro por tomar cartão amarelo, Lineker tenha assumido o papel de tranquilizador, olhando para o banco de reservas e dando instruções, um gesto de “ele está tremendo”. Eram duas Inglaterras possíveis se encontrando em um fragmento de uma partida que, no fim, não venceram – e como imaginar esta Inglaterra campeã do mundo, com um cenário tão dilacerado por dentro? Não que tenha sido muito diferente depois disso, quando, a partir dos anos 90, uma linha de crédito do governo obrigou os clubes a construírem estádios modernos e contraírem as dívidas necessárias para que lavadores de dinheiro de todas as partes do mundo se apropriassem dos clubes do país. A Inglaterra continua perseguindo uma campanha realmente encantadora. A Inglaterra de 1990 não teve tempo para pensar em seu lugar na história.
50 – O BRASIL DE JULINHO E O BRASIL DE FIRMINO: NEM TANTO À EUROPA, NEM TANTO AO RIO
Julinho Botelho foi um dos grandes nomes do pós-Maracaazzo. Chegou à seleção em 1952, enquanto juntávamos os cacos daquela derrota tão dura, e nela ficou por um bom tempo, soterrado no imaginário popular, no entanto, pelo surgimento de Pelé, Pelé com Garrincha, campeões de 58 – e quem não conhece aquela história, com cheiro de pequena lenda, de que Julinho, ao entrar no lugar de Garrincha em jogo no Maracanã, foi vaiado por toda a arquibancada, que, após testemunhar um show de bola do ponta paulista, trocou os apupos por aplausos entusiasmados?
Contribui imensamente para esta sensação a atitude surpreendente de Julinho em 1958: escreveu uma carta à CBD, abrindo mão de jogar a Copa do Mundo, por entender que, morando fora do país (era atacante da Fiorentina), não era justo que ocupasse uma vaga na seleção do Brasil. “Meu contrato com a Fiorentina termina na dependência do último encontro do certame italiano. Dessa forma, não poderei participar dos treinos. Deve, portanto, a entidade meditar sobre a situação, porque é imensa a responsabilidade das duas partes”, escreveu. O mais curioso é que ele voltou ao Brasil, para defender o Palmeiras, tão logo a Copa do Mundo acabou. Bastava afrouxar um pouco os laços morais, ou vir para o Brasil dois meses antes, ara Julinho ser um campeão do mundo.
Em 2002, a seleção que deu ao Brasil seu quinto e último troféu tinha 12 atletas atuando em solo brasileiro. Todos eles, exceto Rogerio Ceni e Marcos, estiveram no futebol europeu em algum momento da carreira, ainda que pouco e timidamente, como Edílson no Benfica. Estamos à espera de uma convocação que terá, se muito, dois, talvez três, atletas “nacionais”. Arthur, do Grêmio, pode até ser chamado, mas já está vendido (assim como Paulinho, do Vasco, nome para as futuras Copas, se mandando aos 17). Gabriel Jesus não completou nem 90 jogos pelo seu clube formador. Roberto Firmino partiu pro velho continente sem o menor alarde, antes do país saber quem era. Willian pouco deu a chance do corinthiano o curtir, e outros exemplos estão aí, à mão.
Entre Julinho Botelho e Roberto Firmino existem décadas de explicações culturais, sociais, geopolíticas, tecnológicas, enfim: o Brasil, que entrou nessa brincadeira chamada Copa do Mundo de um jeito torto, na verdade usando uma seleção carioca e não brasileira, corre aflito em busca de uma identidade perdida e um motivo para se sentir parte próxima do time em campo. Muita coisa dá para inferir, sem ser possível chegar a uma tese definitiva.
Mas que o Brasil nunca ganhou com maioria de “europeus”, nunca ganhou.
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6 de março de 2022
As melhores músicas (internacionais) de (meu) 2021
Se em algum momento da sua vida você já cogitou assistir pessoalmente uma final de Copa do Mundo, provavelmente você ao menos tem alguma noção do quão emocionante isso deve ser. Isso é paixão pelo futebol – e pelo futebol de verdade, não aquele que a mídia tradicional tenta nos empurrar, com arenas supermodernas e arquibancadas divididas. E se você pensa assim, o nosso ESPECIAL COPA DO MUNDO é pra você.
Com a assinatura de Leandro Iamin, a Central3 preparou parte quatro desse especial, com mais cinco histórias, curiosas e memoráveis. Confere aí:
85 – A COPA E O CANTO DA ÁFRICA
A Fifa socorreu o Comitê Organizador da Copa do Mundo de 2010, colocando um dinheiro extra às contas já estouradas para a construção de cinco estádios e a reforma de outros cinco. Vinte mil pessoas, em nome de uma destas obras, foram “deslocadas” de suas favelas, pois estavam, vejam vocês, no “perímetro Fifa”, novo delimitador social de um país tão traumatizado com separações, apartheid – 80% da população é negra, e sua renda é menos da metade da média do país, o que dá uma dimensão do quanto de dinheiro está nas mãos dos 20% de brancos daquele país.
Desde 1994 o regime que naturalizava a segregação racial no território sul-africano estava extinto, graças ao político negro e socialista Nelson Mandela. Tal recuperação (no mínimo) moral do país não se transformou em igualdade econômica, tampouco quebrou de verdade as cercas invisíveis do racismo do país, que teve, com a Copa do Mundo de rugby de 96, um marco bem conhecido e descrito até em filme. Um dos países mais indefiníveis e complexos do mundo sentia ainda o perfume da união entre os ambientes social, político e esportivo.
A pena é que a seleção da África do Sul apostou em Joel Santana, e depois, quando não deu certo, trouxe para o lugar alguém ainda pior: o inacreditável Carlos Alberto Parreira. A seleção nem passou de fase no mundial vencido pela Espanha, depois de, na final, o holandês Robben – ironicamente o mesmo nome da icônica ilha do país onde Mandela passou 27 anos preso, e ironicamente loiro – jogou fora um gol feito. Nada indicava que fazia sentido uma Copa do Mundo tão cara ser disputada no inverno de um país com tantas outras necessidades. Os ingressos, aliás, foram pouco procurados, e o número de visitantes ao país decepcionou.
Fica a lembrança das vuvuzelas, barulheeeeentas, e a entrada em campo para o aquecimento dos anfitriões no jogo de abertura. Um canto melodioso que vem da alma, com orgulho, em um idioma que ninguém soube traduzir, sobre uma história que ninguém sabe mesmo contar. Por poucos instantes, até pareceu que fazia sentido a Copa do Mundo estar ali. As imagens são da Sportv.
84 – LOCO HOUSEMAN, O DESAJUSTADO FUNDAMENTAL E A IMPORT NCIA DOS ÍDOLOS VELHOS
O futebol argentino, na verdade o povo argentino, é bom nesse negócio de idolatrar alguém. Tanto, mas tanto, que às vezes a gente cede à narrativa do culto à personalidade a ponto de, voltando ao futebol, só enxergar uma pessoa entre 11. “Maradona ganhou a Copa sozinho”. “A Argentina de 78 era só o Kempes”. Quem olha a idolatria de longe costuma reduzir seus significantes ao redor e tropeçar no exagero. No mundo da bola, reduzimos atletas fundamentais, como Valdano em 86 ou Ardiles em 78, a postos de coadjuvantes que não lhes cabem.
Mas René Houseman abraçou este papel, se não no campo, fora dele. Viveu à margem da sanidade e dos costumes. Seu apelido, “Louco”, era mais rótulo do que carinho. Sua história não foi contada com a camisa de Boca ou de River, mas com uma tão menos badalada, a do Huracán. Sua Copa foi efetivamente a de 1974, aquela que não deu em nada, mas Loco Houseman, saindo e entrando do time, estava na campanha, em casa, que deu aos argentinos a taça de 1978 – fez 6 jogos, marcou 1 gol – mas não deu a ele a moral que merecia.
Houseman veio à Copa de 2014, no Brasil, como colunista de uma revista chamada Garganta Poderosa, projeto argentino voltado à voz das favelas que tinha a cara dele: não estava no radar da cobertura oficial e festejada do Mundial. Se hospedou na favela de Santa Marta, ficou entre ela e a Cidade de Deus, e de lá fez a cobertura da Copa do jeito que mais lhe conectou com seu passado e sua história. No domingo da final da Copa, naquele Maracanã lindo e luxuoso, Houseman estava longe, acomodado – e feliz por isso – no Rio de Janeiro sem perfume, de verdade.
Ninguém veio de fora e viveu a Copa de forma mais sincera que ele.
A última aparição de Houseman, debilitado, aconteceu recentemente, sentado na calçada do estádio do clube no qual foi ídolo, esperando a peleja começar. É Passarella quem ergue a taça em 78, Maradona faz o mesmo em 86, e não faltam craques nesta história em que só 43 podem se dizer campeões do mundo. Poucos, muito menos de 43, foram como Houseman. Quase nunca um profissional exemplar, por vezes vítima dos vícios mundanos, certamente um vivente demasiado intenso para este jogo que mexe tanto com a gente. Houseman morreu hoje, e merece a devida lembrança.
Os desajustados das arquibancadas te agradecem por tudo. O padrão Fifa não te pegou, Loco.
83 – SCOLARI, A BATALHA DE NUREMBERG E O QUE FICA DOS JOGOS BRUTOS
Luiz Felipe Scolari deixa sequelas. Gremistas e palmeirenses nunca mais foram os mesmos, e a seleção, campeã do mundo em 2002, era o resultado dos remendos de sua teimosia com seu senso estranho de lealdade e gratidão, além de sua simpatia por tipos incapazes de lhe dar um dia de tédio. Cordeiros nunca foram sua preferência, e isso não é exatamente uma crítica. A proposta de jogo nunca prometeu arte, e não é um problema, desde que uma carreira vitoriosa seja construída através dela – no Scolarismo, legado nenhum fica se não resultar em título. O Brasil ganhou a pior Copa do Mundo da história com alguma tranquilidade.
Aí ele pirou Portugal. Com uma Euro em casa para jogar, conseguiu um vice à sua maneira: épicos e vitórias contra times de mais tradição, vacilos nos jogos nos quais é preciso apenas um pouco de bola. Chegou a Copa na Alemanha em 2006, e Portugal foi parar em Nuremberg para as oitavas-de-final contra uma Holanda forte, bem forte. E aquilo foi Felipão em estado puro. Aquilo foi feio de dar dó. 16 cartões amarelos, quatro expulsões, provocações de todo tipo, lances grotescos como a recusa (e a consequente bordoada) de Deco em devolver uma bola por “fair play”…
Foi 1×0. Felipão não perde jogos neste nível de animosidade. Há quem ache que Cristiano Ronaldo virou adulto neste jogo, graças às travas da chuteira de Bouhlarouz. Cronômetros pós-jogo mostravam o quanto Ricardo, goleiro português, retardou reposições. Os homens nos bancos de reservas, mais de uma vez, quase trocaram sopapos. Insuportável. Ficou para a história como jogo em que o novo futebol proposto pela Fifa , regido pelo tal “fair play”, foi engolido por um filho da Libertadores acolhido por um povo de sangue quente. Portugal chegaria à semifinal, após tirar, com emoção e pênaltis, a Inglaterra. A Batalha de Nuremberg (cidade na qual o tribunal militar internacional julgou os figurões do nazismo alemão) foi a obra-prima daquele pintor de garranchos.
Alguma coisa aconteceu para que o arquiteto das maiores batalhas dos anos 90, que colheu os frutos das vitórias e da paixão pelo jogo sem perder a essência nos anos 00, escalasse Oscar, Bernard e Hulk no 7×1, que na verdade é 10×1, considerando o 3×0 que a Holanda enfiou no Brasil valendo o terceiro lugar. Aquela Holanda que apanhou de Felipão em Nuremberg não podia reconhecer o mesmo comandante em Brasília, só oito anos depois. Mas a Dona Lúcia reconhecia.
82 – O VOO DA MUAMBA, A NIKE E O PASSAPORTE APOSENTADO
Tem uma piada entre os lá de fora que só entende quem transita pelos aeroportos: se o sujeito carrega muito mais malas do que consegue, pode crer que é brasileiro. É impressionante como carregamos tralhas para onde vamos, e não são apenas os potes de feijão. Considerando que a taça da Copa do Mundo pesa entre quatro e cinco quilos, o que será que poderia fazer o voo de volta dos tetracampeões de 1994, dos Estados Unidos direto para os braços do povo no Brasil, ter 14 toneladas de bagagem, sendo que na ida eram apenas três?
O brasileiríssimo “Voo da Muamba” chegou de Varig (saudosa! Saudosa?) primeiro em Recife, por gratidão à cidade que abraçou a seleção quando tudo era crise em 1993 e o resto do país queria Romário dentro e Parreira fora – estava certo, o povo! Depois, um gesto político em Brasília, coisa rápida. Alfândega, mesmo, a delegação brasileira encontraria no Galeão, no Rio. Coisa simples, só prestar contas à Receita Federal, dez toneladas de mercadoria, tranquilo, numa boa – claro, esta prestação de contas nunca aconteceu. Ricardo Teixeira e sua protetora à época, a Traffic (do hoje preso J. Hawilla), deram a carteirada. Passaram batido.
Na lei dos que não foram tetra, quinhentos dólares em produtos era o limite sem taxa neste tipo de viagem. Branco, por exemplo, gastou 18 mil, portanto 36 vezes o limite, com uma cozinha completa trazida dos States. Fazendo as contas dos quilos, dá mesmo para colocar muamba na mala de todo mundo, mas não trabalho na alfândega: o Rio estava na rua esperando o desfile dos jogadores, os paulistas estavam na fila para o mesmo ato, vamos festejar, e a receita que processe a CBF depois. Na verdade, teve CPI.
Isso porque a Copa dos Estados Unidos foi um marco não só pra gente. A Nike gostou do que viu, entrou no futebol a partir dali, e se tornou mais um dos tentáculos deste polvo maligno chamado Ricardo Teixeira, forte demais em todas as frentes, mas atento: para a Copa de 1998, chamou Antonio Carlos Amorim, presidente do Tribunal de Justiça do Rio, para ser convidado VIP da seleção. Paris não é New York, mas o voo da volta estava protegido pelos tapas nas costas.
Nike, Traffic, CBF, voos, muitos voos, e que ironia foram os fins dos tempos de Ricardo Teixeira, denunciado pela polícia dos Estados Unidos, sem poder retornar à sua casa em Boca Ratón, na bela Miami, e, desde 2015, não por falta de vontade, com pés fincados no Brasil e sem mais carimbos da embaixada americana no passaporte. Jura que é inimigo do antigo anjo da guarda J. Hawilla, este preso nos Estados Unidos. E jura que pagou ICMS em 1994. Sei. Voo da muamba, nunca mais. Nunca mais?
NA FOTO: PARREIRA, SEMPRE PRECAVIDO, ESCREVE SEU NOME EM UMA IMPRESSORA (FOLHA)
81 – DOIS DÓLARES E VINTE CENTAVOS
Final da Copa do Mundo de 1962. Dois dólares e vinte centavos para ver Garrincha em uma Final de Copa. Que não era para ter Garrincha, que devia estar suspenso, na verdade até estava, mas jogou, puta história estranha. Com 33 Reais de 2014 dava para assistir a Final da Copa de 1950, no mesmo Maracanã que recebeu os dois jogos. Que não é o mesmo Maracanã e de certa forma nem o mesmo jogo. Mas era. Enfim. Final da Copa do Mundo de 1962. Dois dólares e vinte centavos.
80 – MATERAZZI, O VILÃO QUE NÃO É VILÃO, O MOCINHO QUE NÃO É MOCINHO
Marco Materazzi pode não ser o mais leal dos homens. Mas também não era o que de mais grosseiro havia no mundo. Numa outra encarnação em tempos medievais, seria aquele que mata, sem dó, mas com alguma liturgia. Que cumpre ordens, mas tenta emplacar uma filosofia. Nunca um Baresi, mas também não um Gattuso. Materazzi se tornou o zagueiro titular da seleção italiana em 2006, após a lesão do excelente Nesta, exemplo de zagueiro correto, técnico, limpo.
Materazzi, canhoto, também sabia jogar como lateral. Zagueiros completamente grossos, como alguns o classificam, não conseguiriam atuar por ali. Com 1,93m, era um dos mais dominantes defensores pelo alto em sua geração. E sua participação no mundial da Alemanha foi muito boa. Seu parceiro de zaga, Cannavaro, foi eleito naquele ano o melhor jogador do mundo, e não teria conseguido isso ao lado de um zagueiro vacilante.
Sua participação na final da Copa foi notável. Cometeu o pênalti para a França. Depois, marcou o gol de empate, de cabeça. Voltaria a marcar na disputa em pênaltis e seria o homem capaz de tirar do sério e de campo Zidane, na mais esquisita cena daquela Copa e talvez de uma final mundialista. Ele já era estereotipado. Virou o vilão dos vilões – um vilão que ganhou a Copa como destaque da decisão, um vilão que foi agredido de uma forma que, se fosse ao contrário, não teria atenuantes, um vilão porque sim.
Antes da final, havia feito um outro gol, e recebido um cartão vermelho. Depois da Copa, fez a imprensa mundial de gato e sapato jogando migalhas de pistas sobre o que afinal ele disse para causar tanta ira em Zidane. Prazer mórbido, orgulho do que fez. É o botinudo litúrgico. Técnico mas violento, que uma coisa não anula a outra. Difícil de enquadrar na narrativa fácil de mocinhos e vilões. Duas Copas antes, Gamarra fez zero faltas e, por isso, virou um discutível exemplo de zagueiro – sempre foi bom jogador, mas não por este motivo. Materazzi não ofereceu contraste fácil.
Zidane bateu o pênalti de cavadinha, o que, considerando a ocasião, mostrava mesmo que o craque francês estava em um dia meio maluco. Materazzi não era o único ali com um parafuso a menos, mas talvez tenha sido, dos 22 daquela decisão, aquele que melhor explorou o que tinha para explorar como jogador.
79 – BAIXINHO PRA MAMÃE NÃO OUVIR
O editor desta série, Leandro Iamin, escreveu, dois dias após o 7×1, o texto abaixo, originalmente publicado no saudoso site Impedimento. Tá aqui a releitura, que reler é bom também. Muita coisa mudou em como ele pensa. E muita coisa não mudou.
Dona Lúcia é minha mãe. Por uma coincidência, ela se parece muito com a Rita Lee e ao mesmo tempo é fã incondicional da dita cuja. Eu pareço com o Lobão e a última coisa que sou no mundo é fã do cidadão. Levei Dona Lúcia domingo ao musical da Rita Lee, um baita espetáculo teatral, e, se não aconteceu o encontro das duas tal qual torcia, aconteceu da noite ser quente, bonita, emocionante. Minha linda disse, olhando o pequeno cartaz que emulava um dos discos da homenageada: “quando eu vivi isso, eu não sabia que estava vivendo a história”. E é verdade, não é comum a gente imaginar o que a geração futura vai pensar quando encontrar numa exposição este notebook que eu acho espetacular mas que não continuará sendo por muito tempo, e é mais ou menos a mesma coisa com as pessoas, os prefeitos, os craques.
Mandei uma mensagem para Dona Lúcia após os hinos nacionais de Brasil e Alemanha. “Vamo”, escrevi enquanto mentalizava o pão de queijo que ela fazia na Copa de 2002, o pão de queijo que era o quarto homem daquele ataque pentacampeão, que aquecia as madrugadas de meus 17 anos, que em 94 eram 9 e no banco tinha o Ronaldo, então com 17, e eu podia estar, pensava numa aritmética simples, entre os reservas do time de 2002, eu queria jogar naquele time e teria idade, mas a vida sorriu pra mim e eu comia pão de queijo com Dona Lúcia, e, puxa vida, aquilo era bom. Eu adorava aquela seleção e aquele treinador que me fez virar português no ano seguinte e jogar, mais tarde, numa espécie de ponto máximo de idolatria, o Uzbequistão na Wikipedia.
Sou o cara que criou, certa vez, a Canários do Reino, uma torcida organizada para a seleção. Ela durou um só jogo. Eu não tinha dinheiro sequer para comprar um pedaço de pano. Eu não tinha ideia de como fazer aquilo ter alguma vida própria, eu tinha, sei lá, uns 20 anos, e a torcida morreu sobretudo de solidão, eu com a carteira 1, um amigo com a carteira 2, mas morremos com nobreza: ninguém da Rede Globo ou da CBF ficou sabendo e veio conferir o sonho louco de um jovem apaixonado, uma pauta e tanto para o Jornal Hoje, repórteres sorridentes, urgh. Sou também o cara que viajou pelo interior da Argentina em 2011 para acompanhar o time do Mano, o time dos quatro pênaltis perdidos, o time que já cheirava o fracasso mas que eu não me importei pois estava ao lado de meus tios, meus heróis que seguiram o time nas Copas de 90 e 94 e me deixaram desde sempre o recado: deixe que falem merdas, ignore, a verdade é que a seleção é importante pra cacete.
Brasil x Paraguai, Córdoba, segunda rodada da referida Copa América 2011. Dani Alves é massacrado por Estigarribia, toma 3 canetas em 30 minutos, Ramires joga bem e socorre o pobre e limitado lateralzinho, e no ataque temos Jádson, Ganso, Pato e Neymar. Que coisa. Na arquibancada, um exército paraguaio engole os amarelos, come com farinha. Por vezes creio ser o único brasileiro ali que não foi ao jogo por um acaso, por já estar na cidade de toda forma. Só o brasileiro não curtiu a Copa América. Até os mexicanos ricocheteavam em massa pelas ruas. Brasileiro, não, nada, quase zero. Todo mundo se guardando pra quando o Mundial chegar. Enfim, Fred fez 2×2, empatou no crepúsculo, salvou nossa pele, e a gente até acreditou que na fase final, em La Plata, quando estaria valendo mesmo, o Paraguai de Tata Martino não seria páreo. Mas foi. Nos tirou da bagaça do mesmo jeito que o Chile deveria ter nos tirado no Mineirão. Neymar foi substituído por Fred naquele jogo, olhem só como isso soa estranho hoje. Vejo só como agora tudo isso faz um sentido que não fazia antes, da torcida ao Martino, do Ganso ao Fred, do Dani ao Neymar.
Eu não comemorei nada. Contra o Chile, exausto após saborear o inferno, não deu. Contra a Colômbia, sem capitão e esperando o diagnóstico do moleque, não deu. Desliguei a TV pelo domingo todo e parte da segunda. Fui ao cinema, joguei vídeo-game, fiz estas coisas que não se faz durante a Copa. Cheguei ao dia do jogo numa moderada e necessária alienação. Apito inicial, eu de pé, mensagem pra Dona Lúcia, o coração em descompasso, e foram cinco pedradas, um macarrão sem molho e a moça do cassino puxando todas as minhas fichas para longe de minha base.
Eu apostei demais. Levei para o pessoal. Eu não aceitava perder antes, perder pro Chile, e não se pode levar o futebol nessa medida. Não aceitava pois alimentei a ideia de que esta Copa era a maior, a única que veria em casa, na tal da idade ideal, era a Copa definitiva e insubstituível, a minha Copa, e onde diabos estava o filósofo de minha mente para desconstruir essa baboseira óbvia?
Pois a filosofia me diria que se essa Copa era tão única assim, por que eu me enfiei, perplexo, no quarto ao invés de curtir a invasão argentina e holandesa na minha cidade? E que papo é esse de momento único, se nenhum dia é igual ao outro de qualquer maneira? Não desconstruí, acreditei num tudo ou nada dentro de mim que só poderia me levar de encontro ao muro. Hoje olho os 300 reais que separei pra viajar ao Rio de Janeiro e viver 48 horas na rua chapado e feliz, sentindo a final. Lembro de quantos amigos debocharam de tudo, minimizaram o afeto dos outros, torceram contra mas não fizeram nada a favor de si mesmos. Me vem à tona tudo que defendi, discuti, desejei, tudo que adiei pensar e tudo que não quis considerar, e me sinto, um dia após o 7×1, um completo imbecil enquanto Felipão e Parreira, duas das figuras mais cínicas da República Federativa, resumem a façanha de superar o Maracanazo a meros seis minutos de pane.
Parreira encerra a inacreditável entrevista coletiva com a consagrada e eterna carta da Dona Lúcia, a esposa do Pacheco, a farmacêutica do Fernando Vanucci, a identidade alternativa de Rodrigo Paiva. Por um momento lembro que Parreira plagiou partes de um livro de sua suposta autoria, e desconfio que a carta era para o Klinsmann e ele só adequou sutilmente. Logo em seguida, porém, admito que eles são mesmo capazes de todo o ridículo surreal que estou vendo. Lembro da minha linda e amada Lúcia, a mãe que eu motivei, acelerei, envolvi, fiz querer demais a vitória e que ali, naquela hora, parecia que eu tinha envenenado, feito um mal. Dona Lúcia, Donas Lúcias, vão aos teatros ver as Ritas Lees de suas vidas. Os ídolos de minha vida jogam um jogo que envolve auge e decadência, vitórias e derrotas, não é como cantar músicas para quem quer ouvi-las. Seja como for, eu vivi a história, e isso deve ser mais legal que fingir descaso ou sinceramente não sentir nada. Dor e delícia de quem ganha e perde. Eu sinto muito, e torço muito, pela camisa amarela, pelo time que é paixão de haitianos e malaios, africanos e caribenhos, pelo time que era pra ser tão mais legal do que é. O 7×1 não muda meu afeto (embora tire meu açúcar). Mas me fará pensar duas vezes na próxima vez que for enviar uma mensagem para Dona Lúcia.
78 – VIDA E MORTE DE SINDELAR, E A FIFA QUE NEGOU A GUERRA
Você está na cadeira de presidente da FIFA, e recebe uma carta do governo da Alemanha nazista comunicando que a Áustria está agora anexada ao seu país, e, por isso, não jogará a Copa, que começa em três meses. O que você faz? Pois a FIFA não fez nada. Preocupada com criar a melhor das três edições do Mundial, já que seria no país do criador Jules Rimet, havia um plano a ser seguido: finjam que o mundo não está entrando em uma Guerra Mundial.
Desta forma, a FIFA, em 5 de abril, quase um mês depois de receber o comunicado, fez o sorteio das chaves da Copa do Mundo, e incluiu a Áustria no dito cujo. Dezesseis equipes se alinhariam em um mata-mata desde o começo, e os austríacos caíram em um equilibrado confronto com os suecos. Seriam os favoritos, se ainda contassem com o “Wunderteam”, ou “time incrível” numa porca tradução, que, na Copa anterior, chegou à semifinal.
Os cobras deste time de 34 estavam agora vestindo a camisa da Alemanha, certamente a contragosto. A FIFA precisou sair de seu mundo de fantasia, e assumir que não havia, tecnicamente, uma Áustria para jogar. Convidou a Inglaterra, e tomou um “não”. A Letônia, que ficou logo atrás da Áustria nas eliminatórias, pediu, com toda justiça, a vaga, e recebeu um “não”. Era complicada, a FIFA. Preferiu dar à Suécia o W.O. e a vaga direta à segunda fase. E os alemães chegavam reforçados e enfrentariam a Suiça.
E deu Suiça, no jogo-desempate (havia jogo-desempate, não disputa em pênaltis, e a final, vejam só, previa divisão da taça em caso de dois empates seguidos). A Alemanha voltou cedo para casa, com seus austríacos a tiracolo, e particular ressentimento por um atleta: Sindelar, o “Homem de Papel”, atacante leve que foi um dos craques do Mundial de 34, se recusou a jogar pela seleção alemã em 1938. Judeu, foi o único a levantar a voz e negar a mudança de camiseta. Em 1939, sua esposa morreu, e ele morreu pouco depois.
Deixo para vocês concluírem se foi ou não suicídio.
77 – O 3-5-2, UM DIA EXCOMUNGADO, QUE SE TORNOU PENTACAMPEÃO
Os pontas se tornavam cada vez mais raros. Alguns técnicos deviam achar a posição pouco participativa, muito específica, ou não acreditavam muito no poder do drible e da velocidade rumo a linha de fundo. A figura do segundo atacante de área ganhava força, eram tempos de 4-4-2 e suas variáveis, um homem mais centralizado para defender, um outro atacante para fazer sombra. O jogo fica mais apertado, o lateral enxerga mais espaço para ocupar no ataque, o futebol fica mais dinâmico e a gente vai em frente, são os anos 80.
Todo mundo achava bonita a resposta da Dinamarca ao novo movimento tático do futebol. Pela primeira vez um sistema com três zagueiros servia como reação a um jogo com dois atacantes. Os laterais estavam liberados para explorar um espaço mais à frente, aquele ponta que virou volante agora era zagueiro, e na linha crucial do jogo, uma defesa com três estava em maioria teórica. Até de “Dinamáquina” aquele time que brilhou na Euro-84 e na Copa do Mundo de 86 foi chamado. A paulada nas oitavas, Espanha 5×1 Dinamarca, não abalou a crença no 3-5-2.
No futebol, novidade a gente só gosta na casa dos outros. Fomos muito resistentes ao 3-5-2 no Brasil. Sebastião Lazaroni usou o esquema para a Copa seguinte, em 1990, e os brasileiros nunca tiveram boa-vontade com ele desde então. Zagueiros ótimos não faltavam. Mauro Galvão, Ricardo Rocha, Ricardo Gomes, Aldair, Mozer. Não tá bom? Você não apostaria neles? O Brasil venceu os três jogos da primeira fase, e foi muito bem contra a Argentina, nas oitavas. Perdeu, porque o futebol é assim mesmo, porque Maradona é Maradona.
O 3-5-2 foi excomungado. Nunca tivemos muita paciência para debater o futebol por linhas táticas, mesmo, era mais fácil bancar o conservador e pedir, como já se pedia em 1982, para “botar pontas”, “tirar um beque”, negar o que fazia sentido de ser buscado. Vinha Parreira no caminho da seleção, a pessoa certa para quem não quer construir nada de novo, moderno ou original no futebol. Assim como a derrota tudo explicou em 1990, a vitória de 94 tratou de justificar tudo que foi feito entre 1991 e a Copa. A Dinamarca venceu a Euro de 92, mas fala baixinho com qual esquema tático foi usado…
O Brasil foi pentacampeão do mundo em 2002 usando três zagueiros, um trio que protegia as subidas de Cafu e Roberto Carlos, e que só encaixou pra valer quando um meia, Juninho, deu lugar a um jogador mais defensivo, Kleberson. Um nó na cabeça dos simplistas. Um acerto do bronco de bigode. A taça que deu ao 3-5-2 um lugar à sombra. Copa do Mundo já foi o encontro de escolas de futebol e seus diferentes modelos de jogo. O mundo de hoje já quase não nos reserva surpresas sobre isso.
76 – AS TRÊS ESCOLHAS DE ARGENTINA E UMA SEQUÊNCIA INÉDITA ENTRE CAMPEÕES
Alemanha x Argentina, 2006. Lá em Berlim, todo o ar decidido a entrar nos pulmões do time da casa, ambiente opressivo aos sul-americanos, mas jogo bão, bem bão, que o time do Jose Pekerman era osso duro de roer e tinha uma trinca poderosa, Riquelme, Tevez e Crespo, quatro do segundo tempo, gol, Argentina na frente, 1×0, vai dar, mas não: aos 27 do segundo tempo, sai Riquelme, entra Cambiasso, aos 33 sai Crespo e entra Julio Cruz, e aos 35 a Alemanha empata. Pekerman se via sem seus dois mais inteligentes jogadores e sem a vantagem. A eliminação veio só nos pênaltis, mas a imprensa local, que ainda via o menino Messi no banco, lamentou a precipitação do técnico.
Alemanha x Argentina, 2010. Na Cidade do Cabo, os argentinos tinham uma realidade em campo, Messi, e um deus fanfarrão no banco de reservas, Maradona, que, entre outras coisas, negou a Riquelme, agora já quase um veterano, vaga na equipe. A chance de revanche virou poeira, e o técnico argentino foi o maior responsável pelo 4×0 acachapante. Tirou Otamendi, colocou Pastore, e resolveu jogar sem lateral direito. No deserto que virou o setor, a Alemanha marcou três gols nos 25 minutos finais. As escolhas erradas dos nomes agora também era acompanhada da pouca leitura como técnico daquele que foi, com chuteira no pé, um dos mais geniais de sempre. O planeta todo enxergava por onde saíam os gols, foi um massacre didático.
Alemanha x Argentina, 2014. Pela terceira Copa seguida, agora em uma final, os rivais, que se pegaram também nas finais de 1986 e 1990 – uma vitória para cada – tinham igualdade de chances, em parte porque a Argentina, que tinha o agora unânime e inesquecível Messi, contava com um mar de torcedores que transformaram o Rio de Janeiro na capital mundial da picardia. Festa sem precedentes por toda a sexta, todo o sábado e até o apito inicial. Dessa vez o comandante dos sudacas atende por Alejandro Sabella, e sua função é barrar Aguero, longe de sua melhor condição física, em troca de Lavezzi, seu substituto natural. Aguero entrou, baleado mesmo, logo no intervalo, e pouco fez. Claro que, depois da derrota, muitos questionaram Sabella, que apostou não apostando, e cedeu sem ceder (e nem vamos falar de Higuaín…).
Em 2018, Argentina e Alemanha, caso vençam seus grupos, se enfrentam apenas em uma semifinal. Caso um deles fique em segundo do grupo, só se encontrarão em uma final. Agora Messi é um trintão em sua melhor versão, mas a Argentina nunca pareceu tão distante da Alemanha em performance e material humano. No entanto, eu duvido que vá perder quatro vezes seguidas. Mentira, não duvido não.
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Quando Sandro Meira Ricci apontou a marca penal e expulsou (injustamente) Palacios me questionei se valia a pena continuar vendo aquele jogo. Não que a estréia francesa na Copa estivesse desagradável, mas em épocas com 3 (ou 4) jogos diários na TV as vezes precisamos escolher o que assistir em nome de outros afazeres (escrever esse texto, por exemplo). Por sorte continuei na frente do televisor e pude presenciar o 1o “gol eletrônico” para torcedores não-ingleses
Além da confusão em campo, pude perceber uma indecisão do narrador e comentarista quando os replays não esclareceram em nada se a bola havia cruzado completamente a linha ou não. Não sabiam se deveriam assumir que o GoalControl (esse é o nome do sistema) estava correto e os replays que não eram bons o suficientes em mostrar a realidade para o telespectador, se o lance colocava em xeque a eficiência da nova tecnologia ou se não tínhamos como saber de fato se foi gol ou não. A hesitação era esperada por se tratar de algo completamente novo para nós, mas também mostra como perdemos tempo com discussões binárias e deixamos de abordar questões muito mais interessantes e necessárias.
Se as pessoas de um lado conseguirem abrir mão do dogma de que o uso da tecnologia é ruim per se e as do outro lado do dogma de que se o sistema falou então é, levaremos o debate a um novo patamar e poderemos tomar decisões importantes. Mais ou menos como alguém que aprende como o Waze calcula o trânsito e passa a saber quando ele pode estar errado, precisamos entender com o que estamos lidando.
O primeiro passo é quebrar o paradigma de que com a tecnologia teremos certezas absolutas sempre: isso não existe. Todo sistema tem um nível de (im)precisão e certas limitações, além de potenciais falhas desconhecidas. Mesmo na NFL, que tem ampla experiência no uso de auxílio eletrônico para a arbitragem, há lances inconclusivos: o mais famoso, Music City Miracle, aconteceu no último lance de uma semi-final (é, o futebol americano também tem seus deuses) e gerou discussões por anos com argumentos cheios de vídeos e cálculos para ambos os lados. Por isso, quando o sistema avisa o árbitro de que a bola cruzou a linha não devemos assumir que foi gol, mas que em seus cálculos este foi o resultado (o que implica que na realidade pode ser que não tenha sido).
Surge, então, a questão do que fazer com esta informação. O árbitro deve usá-la como uma ferramenta, como um médico usa um exame para avaliar seu paciente, e reservar para si a palavra final ou deve deixar que o sistema decida e assim usar a mesma métrica para todos os casos (mesmo sabendo que esta tem falhas), como um juiz usa um exame de sangue para determinar se um motorista dirigia alcoolizado ou não? Quebrada a crença na infabilidade do recurso tecnológico também começamos a nos questionar sobre como avaliar suas falhas, como agir caso estas sejam mais frequentes do que imaginávamos (existem bugs? há fraude?) e como melhorar o sistema.
No caso em questão diz-se que cada gol é monitorado por 7 câmeras, que juntas determinam a posição da bola com uma precisão de 0,5cm a cada 0,2 milisegundos e que passaram num teste com mais de 10.000 chutes. Não encontrei informações sobre como o sistema lida caso a “visão” de algumas câmeras esteja bloqueada por jogadores, como ele calcula a posição da bola quando esta está no ar, se existe a possibilidade da câmera não identificar a bola por algum motivo, qual é a taxa de erro, se em alguma situação o sistema pode ser incapaz de definir a posição da bola (e como ele age, então), se conhece-se algum tipo de lance que cause mais erros do que o normal, etc. Apesar da empresa alemã alegar que o sistema é inhackeável por ser offline eu não acredito que isso exista e gostaria de saber se há câmeras e servidores em paralelo para casos de pane. Esclarecidas essas dúvidas eu estabeleceria limites máximos esperados para erros e acompanharia cada decisão do sistema, indo a fundo no motivo (bug? fraude?) de cada “engano”, além de oferecer prêmios a hackers que conseguissem alterar uma decisão do GoalControl. Tudo isso da maneira mais transparente e aberta possível.
Também daria mais autonomia para o GoalControl conforme sua confiabilidade fosse crescendo, mas seria mais rigoroso no acompanhamento, já que o sistema só teria ganho poderes graças a sua menor taxa de erros. Por fim, pensaria em desenvolver o ImpedimentoControl como ferramenta de juízes e bandeiras.
Com isso, lances como o de ontem não seriam faíscas para confrontos inacabáveis entre os contra e os a favor o uso da tecnologia – estes negando qualquer falha do sistema e aqueles usando qualquer problema para deslegitimar o uso da nova ferramenta – mas sim um momento de sentar e questionar se o sistema acertou mesmo e o que fazer em caso negativo. Teríamos de abandonar uma confortável posição de certeza do que (não) deve ser feito, mas ganharíamos em honestidade intelectual.
Resumindo: nunca devemos deixar de desconfiar, mas não podemos deixar de evoluir por causa disso!
Sobre o lance, não consigo me convencer de que sim nem de que não. Em cada ângulo parece uma coisa. Deixo abaixo uma série das imagens que fiz no momento em que se vê a bola mais dentro do gol, já que a FIFA tira todos os vídeos do ar (e alguns ângulos só vimos na TV). De qualquer maneira me incomoda que na grande maioria dos veículos de imprensa vejo a notícia de que foi gol e só pudemos saber disso graças à nova tecnologia, quando na verdade a melhor abordagem seria disponibilizar todas as imagens geradas para que se discutisse se a decisão foi acertada (e por que não foi, se este for o caso). Mesmo para os que são ferrenhos defensores da ajuda eletrônica esta é a melhor maneira de lidar com o caso, pois permite conhecer as limitações do programa e lidar com elas ou superá-las. Simplesmente negar a hipótese que existam falhas apenas cria um tabu que termina legitimando desconfianças sobre o sistema e a idoneidade de seus operadores, o que pode ser potencialmente perigoso para a arbitragem eletrônica como um todo.
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