Quando Sandro Meira Ricci apontou a marca penal e expulsou (injustamente) Palacios me questionei se valia a pena continuar vendo aquele jogo. Não que a estréia francesa na Copa estivesse desagradável, mas em épocas com 3 (ou 4) jogos diários na TV as vezes precisamos escolher o que assistir em nome de outros afazeres (escrever esse texto, por exemplo). Por sorte continuei na frente do televisor e pude presenciar o 1o “gol eletrônico” para torcedores não-ingleses
Além da confusão em campo, pude perceber uma indecisão do narrador e comentarista quando os replays não esclareceram em nada se a bola havia cruzado completamente a linha ou não. Não sabiam se deveriam assumir que o GoalControl (esse é o nome do sistema) estava correto e os replays que não eram bons o suficientes em mostrar a realidade para o telespectador, se o lance colocava em xeque a eficiência da nova tecnologia ou se não tínhamos como saber de fato se foi gol ou não. A hesitação era esperada por se tratar de algo completamente novo para nós, mas também mostra como perdemos tempo com discussões binárias e deixamos de abordar questões muito mais interessantes e necessárias.
Se as pessoas de um lado conseguirem abrir mão do dogma de que o uso da tecnologia é ruim per se e as do outro lado do dogma de que se o sistema falou então é, levaremos o debate a um novo patamar e poderemos tomar decisões importantes. Mais ou menos como alguém que aprende como o Waze calcula o trânsito e passa a saber quando ele pode estar errado, precisamos entender com o que estamos lidando.
O primeiro passo é quebrar o paradigma de que com a tecnologia teremos certezas absolutas sempre: isso não existe. Todo sistema tem um nível de (im)precisão e certas limitações, além de potenciais falhas desconhecidas. Mesmo na NFL, que tem ampla experiência no uso de auxílio eletrônico para a arbitragem, há lances inconclusivos: o mais famoso, Music City Miracle, aconteceu no último lance de uma semi-final (é, o futebol americano também tem seus deuses) e gerou discussões por anos com argumentos cheios de vídeos e cálculos para ambos os lados. Por isso, quando o sistema avisa o árbitro de que a bola cruzou a linha não devemos assumir que foi gol, mas que em seus cálculos este foi o resultado (o que implica que na realidade pode ser que não tenha sido).
Surge, então, a questão do que fazer com esta informação. O árbitro deve usá-la como uma ferramenta, como um médico usa um exame para avaliar seu paciente, e reservar para si a palavra final ou deve deixar que o sistema decida e assim usar a mesma métrica para todos os casos (mesmo sabendo que esta tem falhas), como um juiz usa um exame de sangue para determinar se um motorista dirigia alcoolizado ou não? Quebrada a crença na infabilidade do recurso tecnológico também começamos a nos questionar sobre como avaliar suas falhas, como agir caso estas sejam mais frequentes do que imaginávamos (existem bugs? há fraude?) e como melhorar o sistema.
No caso em questão diz-se que cada gol é monitorado por 7 câmeras, que juntas determinam a posição da bola com uma precisão de 0,5cm a cada 0,2 milisegundos e que passaram num teste com mais de 10.000 chutes. Não encontrei informações sobre como o sistema lida caso a “visão” de algumas câmeras esteja bloqueada por jogadores, como ele calcula a posição da bola quando esta está no ar, se existe a possibilidade da câmera não identificar a bola por algum motivo, qual é a taxa de erro, se em alguma situação o sistema pode ser incapaz de definir a posição da bola (e como ele age, então), se conhece-se algum tipo de lance que cause mais erros do que o normal, etc. Apesar da empresa alemã alegar que o sistema é inhackeável por ser offline eu não acredito que isso exista e gostaria de saber se há câmeras e servidores em paralelo para casos de pane. Esclarecidas essas dúvidas eu estabeleceria limites máximos esperados para erros e acompanharia cada decisão do sistema, indo a fundo no motivo (bug? fraude?) de cada “engano”, além de oferecer prêmios a hackers que conseguissem alterar uma decisão do GoalControl. Tudo isso da maneira mais transparente e aberta possível.
Também daria mais autonomia para o GoalControl conforme sua confiabilidade fosse crescendo, mas seria mais rigoroso no acompanhamento, já que o sistema só teria ganho poderes graças a sua menor taxa de erros. Por fim, pensaria em desenvolver o ImpedimentoControl como ferramenta de juízes e bandeiras.
Com isso, lances como o de ontem não seriam faíscas para confrontos inacabáveis entre os contra e os a favor o uso da tecnologia – estes negando qualquer falha do sistema e aqueles usando qualquer problema para deslegitimar o uso da nova ferramenta – mas sim um momento de sentar e questionar se o sistema acertou mesmo e o que fazer em caso negativo. Teríamos de abandonar uma confortável posição de certeza do que (não) deve ser feito, mas ganharíamos em honestidade intelectual.
Resumindo: nunca devemos deixar de desconfiar, mas não podemos deixar de evoluir por causa disso!
Sobre o lance, não consigo me convencer de que sim nem de que não. Em cada ângulo parece uma coisa. Deixo abaixo uma série das imagens que fiz no momento em que se vê a bola mais dentro do gol, já que a FIFA tira todos os vídeos do ar (e alguns ângulos só vimos na TV). De qualquer maneira me incomoda que na grande maioria dos veículos de imprensa vejo a notícia de que foi gol e só pudemos saber disso graças à nova tecnologia, quando na verdade a melhor abordagem seria disponibilizar todas as imagens geradas para que se discutisse se a decisão foi acertada (e por que não foi, se este for o caso). Mesmo para os que são ferrenhos defensores da ajuda eletrônica esta é a melhor maneira de lidar com o caso, pois permite conhecer as limitações do programa e lidar com elas ou superá-las. Simplesmente negar a hipótese que existam falhas apenas cria um tabu que termina legitimando desconfianças sobre o sistema e a idoneidade de seus operadores, o que pode ser potencialmente perigoso para a arbitragem eletrônica como um todo.