E quando acabar o papel higiênico?

 

O movimento iniciado pelos caminhoneiros tem muitos elementos que estão de fora de grande parte dos debates que vem sendo travados pela esquerda e pela direita. Não pretendo destacar os posicionamentos visivelmente bolsonaristas e militarescos de setores mais radicalizados dos caminhoneiros, muito embora desde ontem estou observando por dentro de páginas e grupos ligados ao movimento que a coisa toda é bastante tenebrosa (até a cabeça do Leonardo Sakamoto estão pedindo em um dos grupos, alegando que ele não apoia o movimento). Ainda assim, entendo que a greve começou mesmo como um movimento autônomo, e não acho que seja um movimento ilegítimo por conta de seus aspectos autoritários.

Boa parte do que chamamos Política se produz a partir da força. É dela que vem a possibilidade do diálogo. Sem força um movimento não será nem escutado, porque será incapaz de colocar um governo nas cordas para negociação. Sem isso, um movimento vai fracassar, invariavelmente. Depois da força é que vem a capacidade de diálogo e o fluxo Político pode avançar – ou recuar, a depender dos seus resultados. Então, existe este elemento do autoritarismo bastante forte, mas prefiro o colocar em um segundo plano aqui.

O que acontece é que de ontem pra hoje algumas grandes empresas entraram pesadamente no movimento e passaram a liberar funcionários e frotas de caminhões para ingerir na greve depois de ver uma oportunidade de redução de seus custos e ampliar o poder de barganha com o Congresso e o Planalto. A intenção é capitalizar um outro perfil ao movimento, praticamente um lockout travestido de movimento social espontâneo, já que empresário é proibido por Lei a cometer esse tipo de prática. Mas o inferno mora nos detalhes e é preciso analisar com cuidado o fluxo de interesses nessa crise.

Parte significativa da esquerda parece não ter se atentado para as questões da correlação interna de forças e interesses patronais. E não vai ser a classe média quem vai fazer isso, já que ela é refém do movimento por conta de seu entusiasmo (e ilusão) pela queda do preço da gasolina. Nessa toada, e por vias diferentes, é que do MBL à CUT, de Bolsonaro a Magno Malta, chegando até setores da esquerda, a predisposição à simpatia em torno do movimento é resultado da conversão pela chantagem a quem se posicionar contra o movimento: Será jogado na vala do esculacho por ser “contra o Brasil” quem não apoiar esta greve convertida em lockout.

É aí que a porquinha torce o rabo e a habilidade caminhoneira aparece: preservar a imagem de greve e não de Lockout é a estratégia de sobrevivência do movimento. Essa estratégia atua de duas formas: uma sobre a esquerda e outra sobre a direita. Sobre a esquerda, ela aparece na construção de uma imagem de um movimento independente de trabalhadores autônomos. Daí sua legitimidade e a defesa pela esquerda. Sobre a direita, ela surge pela imagem do guerreiro que sai de seu conforto para lutar por um bem comum à classe média pela via da redução do preço dos combustíveis.

Curiosamente, quando os movimentos de Professores pedem mais educação, logo os educadores são chamados de vagabundos que estão atrapalhando o trânsito. Talvez agora os Professores passem a adotar como ponto 1 de suas pautas de reivindicação a redução do preço da gasolina. Vai que assim ganham apoio massivo da sociedade…

Se pela esquerda o movimento pode se enfraquecer ao se revelar seu caráter de lockout com a ingerência de grandes empresas, como a Sadia, pela direita ele pode se enfraquecer se a crise de desabastecimento se tornar real e começar a faltar papel higiênico nos supermercados. Aí, segura a classe média, Pelé! A crise vai subir pelo elevador dos condomínios através da tubulação de gás e esfriar os chuveiros no inverno que se avizinha.

Travar o debate político nacional sobre os combustíveis pelo viés da corrupção ou dos altos impostos é jogar uma cortina de fumaça sobre a política econômica que foi adotada pelo atual governo, e que tornou a Petrobrás refém dos interesses dos seus acionistas. A gestão de Pedro Parente e da nova diretoria da estatal vem desastrosamente reajustando preços dia sim, dia não. E esse fluxo frenético é criado diretamente por uma decisão política.

Colocar isso no centro do debate é importante, mas não o único caminho. É preciso também repensar nossa própria política energética e a alta dependência de combustíveis fósseis e de uma cultura fortemente centrada nos transportes individuais.

Sem esse debate mais amplo todo o movimento dos caminhoneiros corre o risco de acabar com um saldo de alguns centavos a menos no litro da gasolina e do diesel. E zero saldo político para o avanço de novas formas de organização da política econômica e da matriz energética do país.

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