O Herói do Qatar

Artigo traduzido da 5ª edição do periódico Blizzard (junho de 2012)

Por Philippe Auclair

“Deixe-me te contar uma história”, disse meu amigo, “uma história ao estilo oriental”.

Este amigo continuará anônimo por duas razões: apesar dele não ligar que eu divulgue a tal história ele provavelmente preferiria não ver seu nome ligado a ela; além disso, o nome do meu amigo seria desconhecido para quase todos os leitores. Este amigo poderia adotar o larvatus prodeo (mascarado, prossigo) de Descartes como seu lema, já que seu trajeto no futebol, que o levou a cargos muito altos, continua desconhecido. Ele não o faria de nenhuma outra maneira.

Essa conversa aconteceu no escritório do meu amigo em Londres, seis semanas antes que a FIFA escolhesse Russia e Qatar como sedes das Copas do Mundo de 2018 e 2022, respectivamente. A decisão não foi nenhuma surpresa para o meu interlocutor, já que, naquela tarde, após telefonemas de Sepp Blatter e Mohammed Bin Hammam, ele me assegurou que os russos levariam a disputa, que a Inglaterra [rival russa para o Mundial de 2018] teria sorte se conseguisse mais de um voto e que o Qatar perigava garantir a nomeação já na 1ª rodada. Eu passei a informação para meus contatos no comitê inglês, que acharam que meu amigo tinha colocado algo no café que tomamos. Todos sabemos o que aconteceu, mas vamos voltar ao conto do meu amigo.

“Era uma vez um presidente francês, a quem chamaremos de Nicolas. Ele não tinha muito dinheiro. Na verdade, ele estava desesperado por dinheiro, mas, felizmente, seu amigo emir tinha altas quantias. O emir lhe disse que compraria todo tipo de coisa da França, mesmo coisas caras como aviões e estações nucleares, o que deixou Nicolas muito feliz. Mas, então, o emir disse: ‘tenho apenas uma condição, uma coisa muito simples’.

‘O que é?’, respondeu Nicolas.

‘Apenas que você diga a Michel que nos entregue a Copa do Mundo’, replicou o emir.

Nicolas não tinha muita escolha, ele precisava do dinheiro. Então ele pediu a Michel que cumprisse o pedido e este aceitou”

***********************

Isso é apenas um conto, é claro. Talvez seja verdade, talvez não. Eu apenas contei o que ouvi, ocultando alguns detalhes de como os qataris usaram o imenso orçamento de sua campanha para promover a candidatura. Eu fiquei incomodado. É verdade que o sheikh Hamad bin Khalifa Al Thani, governante do Qatar, havia viajado disfarçadamente para Paris alguns dias antes da conversa (“disfarçadamente”, nesse caso, significa não ficando no Hotel Lambert, seu palácio na Île Saint-Louis [ilha no meio do Sena, no centro de Paris – provavelmente o metro-quadrado mais caro da cidade], mas sim reservando todo um andar do Hotel Royal-Monceau, de propriedade dele, ou de seu país, ou do fundo soberano de seu país, o que não faz muita diferença).

O objetivo da visita não era assegurar um voto na assembléia da FIFA que estava prestes a acontecer, pelo menos não inicialmente. O governo francês considerava vender para o Qatar uma participação significante na Areva, uma empresa estatal que controla a indústria nuclear francesa, das minas de urânio às estações energéticas. No final das contas o negócio não se concretizou, parcialmente graças ao imenso alvoroço que se fez na mídia francesa. Mas estava demonstrada a conexão entre a França e o minúsculo estado do Golfo, dos quais três quartos de seus 1,7 milhões de residentes são “trabalhadores convidados”, a maioria vindo do subcontinente indiano, que não tem direitos cíveis e são tratados de maneira tão chocante por seus empregadores que, em novembro de 2011, a Confederação Sindical Internacional (ITUC) pediu à FIFA que reconsiderasse a escolha do Qatar como sede da Copa do Mundo. Boa sorte a eles.

Quem foi o primeiro chefe de estado a fazer uma visita oficial ao Palácio do Eliseu depois da reeleição de Nicolas Sarkozy em 2007? Sheikh Hamad bin Khalifa Al Thani. Isso era bom negócio para a République: a França vendeu ao Qatar 208 milhões de libras esterlinas em equipamento de defesa e uma frota de 60 Airbus 350 na ocasião. E se Nicolas e Hamad gostam um do outro o mesmo pode ser dito de Carla e Moza: Carla Bruni, a cantora pop e mulher de Nicolas é uma convidada regular em Doha e sheikha Moza al-Misned, a mulher do sheikh Hamad, é representante do comitê Qatar 2022 e presidente da Qatar Foundation, a fundação de “caridade” que desembolsa 25 milhões de libras esterlinas todo ano para garantir que o Barcelona não tenha que se rebaixar e exibir um patrocínio comercial em sua camisa*

No contexto da geopolítica, Michel Platini, que acumula os cargos de presidente da UEFA e vice presidente da FIFA, quer ele seja amigo de Nicolas Sarkozy ou não (eles são, há muito tempo), é uma peça com prestígio mas não tão importante na engrenagem das relações franco-qataris, o que não quer dizer que ele não tenha relevância na perspectiva futebolística. Um de seus principais trunfos é o de que, graças a seu reconhecimento na história do esporte, suas visões tem um peso muito maior do que às do ex goleiro amador suíço, Sepp Blatter. Questionar Platini é, de alguma forma, questionar o semi-deus da Juventus e da seleção francesa – algo como ir às convenções do Greenpeace com uma camiseta escrito “GOLFINHOS SÃO IMBECIS” ou descobrir que aquela pura donzela pela qual você estava apaixonado tem uma ficha kilométrica na clínica de DSTs.

Isso pode explicar porque eu me deparei com uma reação bastante leve quando sugeri para algumas pessoas na França que a história do meu amigo era uma pista que valia a pena seguir. Nós, franceses, tendemos a ser bastante protetores dos poderesos, especialmente quando eles ocupam um cargo de prestígio em alguma organização internacional e contribuem para a grandeza de nossa nação. Até Dominique Strayss-Kahn. Uma pena, nesse caso, que Michel Platini tenha confirmado em março de 2012 que Sarkozy tenha dito a ele durante um almoço que “seria muito bom se o fizesse” – no caso, votar no Qatar. Mas, claro, isso não significa que o presidente tenha pedido especificamente que ele obedecesse e que ele sabia “ser livre e independente”. Honestidade ou imprudência? Ou ambos? O homem que consegue manter-se sério ao se descrever como “um jogador de coração, não um político” desenvolveu um invejável dom de defender o indefensável como sendo algo auto-evidente e parte do senso comum.

Como é possível que ele tenha se safado disso? Observem a proposta dele para que o Mundial de 2022 fosse no inverno, uma opção que nem a FIFA nem os organizadores qataris estudaram ou defenderam, e que ele sugeriu sem consultar qualquer de seus especialistas sobre os impactos que teria na vida dos clubes. “Eu pensei, depois da Copa realizada na África do Sul em 2010”, ele disse, “quando fazia 0°c às 17h e não havia nada para os fans, como podemos pedir aos torcedores e jogadores a irem nesse país quando fizer 50°c ou 60°c em julho? (…) A melhor época para se jogar é no inverno. (…) Qual o problema da Premier League terminar no final de Maio ao invés do começo e recuperar esse tempo em Dezembro? Temos que colocar a Copa do Mundo em primeiro lugar.”

Muito impressionante, ainda mais porque Platini mudou seu tom imediatamente após o Qatar ter sido o escolhido para sediar o evento, mantendo a sugestão da mudança para um época com clima mais ameno no Oriente Médio, é verdade, mas também nos lembrando que “a temperatura em Dallas [na edição de 1994] era de 40°c, e se eu não me engano ninguém criticou os EUA na época”. Aparentemente, na época ele não ligou para a idéia de estádios e fanzones refrigeradas. Platini também achou que seria uma boa ideia fazer a Copa de 2022 além das fronteiras do Qatar, transformando-a em uma competição de toda a região do Golfo – algo até interessante se você pensar bem, mas que cuja sugestão seria apropriada antes da votação e se discutida antes com os qataris. Não passou pela cabeça de Platini que os outros países candidatos – Austrália, Coreia do Sul, EUA e Japão – se sentissem ofendidos. As cláusulas e especificações a partir das quais eles montaram suas propostas, gastando fortunas no processo, aparentemente podiam ser descartadas por um capricho do vice presidente da FIFA, mas o apóstolo do Fair Play Financeiro [foi Platini quem propôs e defendeu suas regras na Europa] não se incomodava nenhum pouco por isso. O fato é que apenas 1 dos 22 membros restantes do comitê-executivo da FIFA (depois da expulsão de Amos Adamu e Reynald Temarii) requisitou uma cópia do relatório técnico produzido pelos inspetores da FIFA, relatório este no qual a candidatura do Qatar era a única classificada como de “Alto Risco”. É verdade que esses senhores são conhecidos pela sua atitude relaxada quanto a “detalhes” e que, nesse aspecto – se não em todos, Michel Platini não é diferente de seus companheiros de comitê. Afinal, esse é o homem que disse “na Espanha os donos são os torcedores, os sócios”, quando apenas 4 clubes da Liga são administrados desta maneira e que teve que ser lembrado por terceiros que para que as regras do Fair Play Financeiro fossem válidas elas teriam que ser aprovadas pela Comissão Européia. Platini não é um detalhista.

Rasgar as regras que guiaram a todos – incluindo o Quatar – era impensável. Os perdedores não teriam todo o direito de apelar às cortes? Quando questionado a respeito disso, Platini respondeu com a indiferença de um roué do século XVIII: “Quem vai se lembrar de palavras em 12 anos?”. “Em 12 anos todos vão estar felizes de terem uma Copa bem organizada e não se lembrarão do que aconteceu antes. Quando eu organizei a Copa do Mundo na França, nós fizemos coisas diferentes das que propusemos”. É nisso que Platini é tão bom: proferir enormidades que são tão, hum, enormes, que quem quer que as ouça se perde momentaneamente nas palavras, de modo que quando se percebe ele já está saltitando em outro campo e cantando suas glórias.

“Quando eu organizei a Copa do Mundo…”. Verdade, Platini foi um dos coordenadores chefes do comitê organizador do Mundial sediado na França. Mas coitado do Fernand Sastre, administrador da Federação Francesa de Futebol para quem trazer o torneio para o país foi uma ambição de toda a vida e que terminou morrendo no dia 13 de Junho de 1998, três dias depois da cerimônia de abertura. Esse é o Platini.

O apoio irrestrito de Platini à “magnífica” candidatura do Qatar o colocou em posições embaraçosas desde a votação em dezembro de 2010, no entanto. Quando a família que governa o emirado comprou o Paris Saint-Germain, em junho de 2011, através da Qatar Sports Investments (QSI) e imediatamente começou a injetar milhões no periclitante clube (42 milhões de euros só para trazer Pastore do Palermo), seria esperado que o bastião do Fair Play Financeiro se prontificasse a emitir um severo aviso aos novos donos. E ele o fez – de certo modo. “Nós não conhecemos o orçamento deles ainda”, ele disse em março desse ano. “Eles vão apresentá-lo à UEFA. Nós temos que observar, adaptar, não é fácil. Temos que nos manter fiéis à filosofia endossada pela UEFA – e nós vamos, assim como os donos do PSG. Caso contrário eles não jogarão nossas competições, ou terão outros problemas, mas eu não sei de nada sobre isso”. A família Al Thani deve ter tremido ao ouvir isso. Falando com um dos assessores mais próximos de Platini, o secretário geral da UEFA Gianni Infantino, num recente fórum sobre futebol, ficou muito claro para mim que “eu não sei de nada” é uma resposta para a maioria – se não para todas – as perguntas a respeito da implementação das regras que supostamente representariam o legado de Platini para o mundo do futebol. O projeto do Real Madrid de construir uma ilha da fantasia no Golfo Árabe para levantar buzilhões de dólares: justo ou não? “Veremos”. A venda dos naming rights do Manchester City para o Etihad: justo ou não? “Veremos”. A decisão da UEFA de centralizar a negociação dos direitos de TV em nome de todos, tem alguma coisa a ver com o sabido e declarado projeto da Al Jazeera (com sede e de propriedade qataris) de ser o transmissor exclusivo dos maiores eventos de futebol? “…”

Superficialidade (e vagueza), claro, auxiliam o disfarce das (e a convivência com) contradições das quais o discurso e “filosofia”, palavra tão usada, de Platini são repletos. “Eu sei que estou defendendo algo que já não é mais defensável”, ele suspira, retratando-se brevemente como aquele tio antiquado, mas carismático, cujas visões a família só tolera graças a sua idade. “Eu não sou fã de donos estrangeiros, mas as leis são as leis e eu não posso fazer nada a respeito”. O gasto de Sulejman Karimov no Anzhi? “Pelo menos o homem que coloca todo esse dinheiro no Anzhi é de lá, ele tem uma conexão local e isso é bom. É um mundo novo”. É? E os Glazers [família estadunidense] no Manchester United então? Esperaríamos que ele caísse matando os ianques, mas não: “A dívida deles não me incomoda, desde que eles consigam repagá-la”. Você deve ter escutado que a UEFA e a Associação de Clubes Europeus (ECA) concordaram em remover um amistoso do calendário; foi muito menos divulgado que a ECA, que vinha fazendo ameaças veladas de se desvincular e criar o próprio torneio europeu, também ganhou algo a mais da organização chefiada por Platini: os clubes dividirão 100 milhões de libras esterlinas dos lucros da Euro 2012 e “um valor estimado em 150 milhões de libras da Euro 2016”. Desde então a ECA adotou uma postura bem quieta. Onde começa a propina? E a corrupção?

A coisa fica elouquecedora depois de um tempo. Outro exemplo: o que constitui a “identidade” de um time para Platini confundiria qualquer um acostumado com o futebol inglês e, ouso dizer, muitos dos torcedores da Juventus que o adotaram como um dos seus depois que ele se transferiu para a Vecchia Signora e fez com que o Saint Étienne recebesse apenas um valor simbólico. Para ele, identidade tem a ver com os donos, jogadores, técnicos – que agora vem e vão – e, por último, os torcedores. Sua opinião tornou-se clara na maneira como se adressou a um grupo de associações de torcedores em abril de 2012, quando ele admitiu que os torcedores eram a “única identidade” que ainda sobrava, mas então deixou escapar que o “futebol pertencia a eles também” e que suas visões seriam levadas em consideração “quando possível”. Ora, muito obrigado! Sua estranha obsessão com as falhas do futebol inglês, à qual ele humoradamente atribui à “famosa rivalidade França – Inglaterra”, o leva a declarações que caso fossem apontadas a outro alvo não seriam tão bem aceitas vindas do chefe de uma organização pan-Européia. “Eles não estão jogando mal, dado que são ingleses”, brincou em janeiro. Ainda estamos esperando esse tipo de observação a respeito da Serie A, que tem 3 dos 5 times que menos usam jogadores vindos de suas bases, de acordo com um recente estudo do International Centre for Sports Studies (CIES)**

Eu entendo que começo a cair na armadilha que Platini monta para quem segue seu raciocínio sinuoso com um olhar crítico: sou eu que estou perdido. Seu sucesso já estava dado quando ele se aposentou como jogador, há 25 anos, e provavelmente antes mesmo disso. Em 2015, independente de suas negações, ele será apontado como sucessor de Sepp Blatter pela FIFA. Blatter, de quem ele diz “não é um anjo… é um político típico” mas “não corrupto, 200% honesto”; Blatter a quem ele vai “tentar ajudar a terminar bem seu mandato, pelo bem do esporte”. Ele diz não saber “o que fazer em 4 anos”. Posso adivinhar, Michel?

Uma coisa com a qual ele não precisa se preocupar é com seu filho Laurent, que, em janeiro desse ano se tornou assessor legal para operações européias de uma grande e rica corporação: Qatar Sports Investment

 

** Pep Guardiola embolsou 350 mil libras esterlinas para endorsar a candidatura do Quatar; uma quantia insignificante, na verdade, quando comparada a que Zinedine Zidane ganhou. Zidane, que inicialmente recusou associar seu nome à campanha, finalmente cedeu quando lhe foram oferecidos 4 milhões de libras.

** Inter de Milão e Roma – os dois primeiros – e Udinese

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Arbitragem eletrônica deve ser usada e questionada

Quando Sandro Meira Ricci apontou a marca penal e expulsou (injustamente) Palacios me questionei se valia a pena continuar vendo aquele jogo. Não que a estréia francesa na Copa estivesse desagradável, mas em épocas com 3 (ou 4) jogos diários na TV as vezes precisamos escolher o que assistir em nome de outros afazeres (escrever esse texto, por exemplo). Por sorte continuei na frente do televisor e pude presenciar o 1o “gol eletrônico” para torcedores não-ingleses

Além da confusão em campo, pude perceber uma indecisão do narrador e comentarista quando os replays não esclareceram em nada se a bola havia cruzado completamente a linha ou não. Não sabiam se deveriam assumir que o GoalControl (esse é o nome do sistema) estava correto e os replays que não eram bons o suficientes em mostrar a realidade para o telespectador, se o lance colocava em xeque a eficiência da nova tecnologia ou se não tínhamos como saber de fato se foi gol ou não. A hesitação era esperada por se tratar de algo completamente novo para nós, mas também mostra como perdemos tempo com discussões binárias e deixamos de abordar questões muito mais interessantes e necessárias.

Se as pessoas de um lado conseguirem abrir mão do dogma de que o uso da tecnologia é ruim per se e as do outro lado do dogma de que se o sistema falou então é, levaremos o debate a um novo patamar e poderemos tomar decisões importantes. Mais ou menos como alguém que aprende como o Waze calcula o trânsito e passa a saber quando ele pode estar errado, precisamos entender com o que estamos lidando.

O primeiro passo é quebrar o paradigma de que com a tecnologia teremos certezas absolutas sempre: isso não existe. Todo sistema tem um nível de (im)precisão e certas limitações, além de potenciais falhas desconhecidas. Mesmo na NFL, que tem ampla experiência no uso de auxílio eletrônico para a arbitragem, há lances inconclusivos: o mais famoso, Music City Miracle, aconteceu no último lance de uma semi-final (é, o futebol americano também tem seus deuses) e gerou discussões por anos com argumentos cheios de vídeos e cálculos para ambos os lados. Por isso, quando o sistema avisa o árbitro de que a bola cruzou a linha não devemos assumir que foi gol, mas que em seus cálculos este foi o resultado (o que implica que na realidade pode ser que não tenha sido).

Surge, então, a questão do que fazer com esta informação. O árbitro deve usá-la como uma ferramenta, como um médico usa um exame para avaliar seu paciente, e reservar para si a palavra final ou deve deixar que o sistema decida e assim usar a mesma métrica para todos os casos (mesmo sabendo que esta tem falhas), como um juiz usa um exame de sangue para determinar se um motorista dirigia alcoolizado ou não? Quebrada a crença na infabilidade do recurso tecnológico também começamos a nos questionar sobre como avaliar suas falhas, como agir caso estas sejam mais frequentes do que imaginávamos (existem bugs? há fraude?) e como melhorar o sistema.

No caso em questão diz-se que cada gol é monitorado por 7 câmeras, que juntas determinam a posição da bola com uma precisão de 0,5cm a cada 0,2 milisegundos e que passaram num teste com mais de 10.000 chutes. Não encontrei informações sobre como o sistema lida caso a “visão” de algumas câmeras esteja bloqueada por jogadores, como ele calcula a posição da bola quando esta está no ar, se existe a possibilidade da câmera não identificar a bola por algum motivo, qual é a taxa de erro, se em alguma situação o sistema pode ser incapaz de definir a posição da bola (e como ele age, então), se conhece-se algum tipo de lance que cause mais erros do que o normal, etc. Apesar da empresa alemã alegar que o sistema é inhackeável por ser offline eu não acredito que isso exista e gostaria de saber se há câmeras e servidores em paralelo para casos de pane. Esclarecidas essas dúvidas eu estabeleceria limites máximos esperados para erros e acompanharia cada decisão do sistema, indo a fundo no motivo (bug? fraude?) de cada “engano”, além de oferecer prêmios a hackers que conseguissem alterar uma decisão do GoalControl. Tudo isso da maneira mais transparente e aberta possível.

Também daria mais autonomia para o GoalControl conforme sua confiabilidade fosse crescendo, mas seria mais rigoroso no acompanhamento, já que o sistema só teria ganho poderes graças a sua menor taxa de erros. Por fim, pensaria em desenvolver o ImpedimentoControl como ferramenta de juízes e bandeiras.

Com isso, lances como o de ontem não seriam faíscas para confrontos inacabáveis entre os contra e os a favor o uso da tecnologia – estes negando qualquer falha do sistema e aqueles usando qualquer problema para deslegitimar o uso da nova ferramenta – mas sim um momento de sentar e questionar se o sistema acertou mesmo e o que fazer em caso negativo. Teríamos de abandonar uma confortável posição de certeza do que (não) deve ser feito, mas ganharíamos em honestidade intelectual.

Resumindo: nunca devemos deixar de desconfiar, mas não podemos deixar de evoluir por causa disso!

Sobre o lance, não consigo me convencer de que sim nem de que não. Em cada ângulo parece uma coisa. Deixo abaixo uma série das imagens que fiz no momento em que se vê a bola mais dentro do gol, já que a FIFA tira todos os vídeos do ar (e alguns ângulos só vimos na TV). De qualquer maneira me incomoda que na grande maioria dos veículos de imprensa vejo a notícia de que foi gol e só pudemos saber disso graças à nova tecnologia, quando na verdade a melhor abordagem seria disponibilizar todas as imagens geradas para que se discutisse se a decisão foi acertada (e por que não foi, se este for o caso). Mesmo para os que são ferrenhos defensores da ajuda eletrônica esta é a melhor maneira de lidar com o caso, pois permite conhecer as limitações do programa e lidar com elas ou superá-las. Simplesmente negar a hipótese que existam falhas apenas cria um tabu que termina legitimando desconfianças sobre o sistema e a idoneidade de seus operadores, o que pode ser potencialmente perigoso para a arbitragem eletrônica como um todo.

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