Nem tudo que reluz é tática

Sou um torcedor tradicional. Gosto quando meu time ganha, não gosto quando perde. Nas derrotas eu evito lembrar que meu time perdeu, por isso me mantenho alheio às notícias e comentários sobre a partida. Nas vitórias faço o contrário. Estendo no tempo o prazer do resultado positivo, consumindo uma dose a mais da programação esportiva que a imprensa nos oferece.

Foi o que fiz na manhã de 20 de abril do ano corrente. Na véspera, o Internacional havia eliminado o Corinthians nos pênaltis pela Copa do Brasil em um jogo sufocante e carregado de importância para uma torcida que andava de cabeça baixa, recém rebaixada para a Série B.

Sofremos um gol logo no começo, mas surpreendentemente não nos abalamos. Fomos ao ataque, meio de qualquer jeito, é verdade, mas com uma paciência inédita para estes tempos de agonia. Quase no final do jogo o uruguaio Nico Lopez nos arrumou o empate, para Marcelo Lomba ser o herói da classificação nos pênaltis. O grito ainda está preso na garganta: quem tem criança pequena em casa sabe do que falo.

Naquela manhã, procurei esticar o deleite da classificação sobre um time que havia se tornado um rival colorado nos últimos tempos, por razões que não vêm ao caso. Liguei então no Redação Sportv, a melhor mesa redonda da televisão e eventual companhia das manhãs de trabalho. Programa feito desde o centro do país, é claro que falava mais sobre o time eliminado do que sobre o time classificado, mas quanto a isso já estamos acostumados, ainda que seja estranho veículos que se pretendem nacionais tratarem praças como Rio Grande do Sul, Bahia ou Pernambuco como se fossem longínquos departamentos da Venezuela.

Mas o estranhamento maior não vinha daí. Os comentários davam a impressão de que eu havia visto um jogo diferente. Os comentaristas estavam muito preocupados com a baixa qualidade técnica da partida, principalmente do lado corintiano, que teria abdicado de jogar após fazer o gol. De fato, não havia sido o jogo de muito brilho técnico, mas parecia que só aquilo não contava toda a história sobre a noite no Itaquerão.

Segui em frente. Talvez ao meio-dia, na Rádio Guaíba de Porto Alegre, eu ouvisse comentários mais próximos ao jogo que eu, pelo menos, havia visto. Mas qual não foi minha decepção quando percebi que os comentaristas davam muita importância ao número de vezes que o Inter levantara bolas na área e o quanto isso era preocupante em termos de mecânica de jogo e não sei mais o quê. Para eles, o jogo também havia sido ruim.

Errados eles não estavam. O Corinthians de fato recuara de mais e, do lado do Inter, a demissão de Antônio Carlos Zago um mês depois confirmaria que o time não vinha bem. Os dados do Footstats mostram que o Internacional levantou 43 bolas na área naquela noite de abril, um número realmente alto e indicativo de um problema que se arrastou ao longo da temporada. Porém, para efeitos de comparação, a final da mesma Copa do Brasil entre Flamengo e Cruzeiro teve mais bolas na área e menos finalizações a gol. De qualquer forma, ninguém discorda que o jogo do Itaquerão esteve longe de ser um dos melhores da temporada. A questão é outra: o jogo havia sido apenas isso?

Não pense que eu esperasse exaltações à classificação colorada que agradassem meu coração torcedor. Nada disso. O que me impressionou naqueles dias foi a redução da partida, carregada de significados e simbologias, ao que diziam os scouts.

Um time recém caído à segunda divisão havia eliminado aquele que se tornara um grande rival nos últimos anos, com provocações inclusive institucionais de parte a parte. O jogo pode não ter sido belo, mas foi uma partida empolgante para os envolvidos e consideravelmente interessante para quem assistia de sangue doce. Eis uma beleza do futebol: um jogo tecnicamente ruim pode ser um grande acontecimento. Nos programas esportivos, porém, tudo isso foi reduzido a um pebolim com número excessivo de bolas alçadas à área.

O movimento de oxigenação da análise esportiva é inegavelmente positivo. Não há mais como acompanhar um jogo sem uma boa análise que nos ajude a enxergar os movimentos e as estratégias de cada time. O comentário fanfarrão e desinformado é cada vez mais coisa do passado. Como ninguém está livre de crítica, faço uma modesta a esta ótima geração de comentaristas: na ânsia de se afastarem da geração anterior, estão fazendo uma análise tão limitada quanto a que desejam combater.

A linguagem hermética é apenas um aspecto dessa ânsia pela diferenciação. Parece que é obrigatório falar em time alternativo no lugar de time reserva, um time que troca passes virou um time associativo e todo e qualquer drible é transformado numa quebra da linha defensiva. O uso de palavras-chave, que em muitos casos mais confunde do que explica, parece ser um meio de reforçar a identidade e mostrar a que turma o comentarista pertence. Outro aspecto que mostra como é perigoso esse desejo por parecer diferente é o apego exagerado a conceitos mesmo quando a realidade acaba desmentindo as teses. Renato Portaluppi fez o Grêmio jogar o melhor futebol da América do Sul, mas ainda há quem tenha vergonha de admitir. Conceitos são importantes, mas é importante não ignorar os fatos.

Essas questões foram debatidas ao longo do ano por jornalistas esportivos e é sempre saudável uma autocrítica, mas me parece que a discussão ficou muito centrada na linguagem mais adequada para se comunicar a análise tática. Além de soar um pouco arrogante, na medida em que o problema seria apenas o de fazer a plebe entender os conceitos, reduzir a discussão à linguagem não chega àquele que, na minha modesta opinião de espectador de futebol, é o ponto central do problema.

Voltando à manhã seguinte à classificação do Inter , o ponto central da discussão é que talvez os analistas táticos estejam produzindo uma visão parcial do jogo, ou vendo menos quando acham que estão vendo mais. É claro que futebol é um jogo tático e para analisar o que acontece num jogo é preciso saber de tática. Só que no futebol também jogam a pressão da torcida, os gramados ruins, o estado de espírito dos jogadores, os vestiários, os gabinetes e mais fatores do que supõe nossa vã prancheta tática. Mais importante que isso: futebol não é só o que acontece em campo, mas os significados do que acontece em campo. Há histórias em jogo, tradições à prova, simbologias a serem preservadas ou recuperadas, rivalidades que dão peso muito maior ao resultado de campo.

Se um alquebrado Internacional consegue eliminar o Corinthians fora de casa, eu não quero exaltações à superação colorada. Mas não queiram que uma fria análise de números e movimentos de jogadores explique tudo o que aconteceu em campo.

 

*Daniel Cassol é jornalista fundador do Impedimento e do Puntero Izquierdo, e torcedor da parte vermelha de Porto Alegre 

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Fronteiras Invisíveis do Futebol #45 Rússia Pt.1

Всероссийский футбольный союз!

Depois de um longo inverno, o podcast que desvenda os mistérios do Planeta Bola volta com um episódio bastante esperado pela nossa audiência, no caso o centenário das revoluções ocorridas na Rússia de fevereiro a outubro de 1917.

Nesta primeira parte, contextualizamos a formação da Rússia – sobretudo da região a oeste dos Montes Urais – e a chegada dos eslavos, que disputaram o território com mongóis e túrquicos, até a consolidação de Moscou como capital e a dinastia dos Romanov, a partir de 1613.

Também abordamos como o futebol chegou às cidades portuárias de Odessa e São Petersburgo, através dos marinheiros britânicos, e se espalhou pelas estepes. Destacamos os resultados das seleções do Império Russo e da União Soviética, bem como os principais clubes e jogadores surgidos no século passado.

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O Brasil é muito grande, suas desgraças

Sabe quando a manchete indica que o outro time perdeu, e não que o seu time ganhou? Então, é sobre isso

*Por Irlan Simões

Não se trata de vitimismo ou corrida desesperada por algum protagonismo. A verdade é que isso tudo cansa o torcedor da banda de cima do mapa.

A ignorância da qual vamos falar passa pouco de mera questão de preguiça – logo esse problema que tanto nos imputaram, principalmente quando precisavam explicar as discrepâncias econômicas causadas pela concentração política que marca esse país muito antes do futebol chegar aqui – nessas bandas subdesenvolvidas do globo terrestre.

Essas discrepâncias econômicas, se não tudo, explicam parte considerável das desigualdades geográficas e financeiras que atingem nosso futebol. Porque há de ser muito raso o sujeito que realmente acredita que “grande” e “pequeno” são valorações formadas por alguma vibração sobrenatural emanada pela torcida ou construída pelas forças místicas dos estádios-santuários do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Tudo não passa de uma questão básica: cidade é lugar de empilhamento de carne de gente, ferro de máquina e pedra de prédio. Quanto maior a cidade, mais dinheiro circulando em atividades centrais e respingando para atividades secundárias, como o futebol.

O “grande” clube apenas nasceu no lugar certo, no período histórico certo e contou com a ajuda política necessária para que enfrentasse os concorrentes locais. E na pirâmide das metrópoles nacionais, a relevância do poder local fez-se presente para garantir o apoio estatal crucial para a sobrevivência dessas relevantes instituições. Sim, seu time foi ajudado pela Ditadura Militar em algum momento. Caso não fosse, estaria de portas fechadas.

É apenas isso que explica quem é grande e quem é pequeno. Se você não acredita, boa sorte, volte a ler crônicas esportivas como retratos da realidade. Mesmo sabendo que um amigo pessoal de Nelson Rodrigues já tenha revelado ao mundo que sua miopia não permitia enxergar o que acontecia no meio do campo do imenso Maracanã. Era tudo inventado.

Mas sigamos. Essa valoração fictícia tem efeitos reais no funcionamento das coisas. Concentra maior público e mais dinheiro, atrai mais anunciantes, justifica cotas televisivas sete vezes maiores entre um clube e outro, justifica patrocínios estatais seis vezes maiores entre um clube e outro, mobiliza mais meios de imprensa, agita discussões e, principalmente, interfere na organização do próprio futebol em si.

É isso que mais preocupa o torcedor “do Norte”. Porque mesmo quando superadas todas as questões externas ao campo do jogo, ainda vamos encontrar outros tantos tipos de problemas. A começar pela exposição do erro de um arbitro, e a pressão que isso acarreta nos seus trabalhos futuros.

Por que? Experimente observar a repercussão de um erro da arbitragem num jogo entre clubes ditos médios do futebol nacional, como Sport, Coritiba ou Goiás (para deixar de tratar apenas do Nordeste). Pergunte aos torcedores desses clubes se alguma vez, desde que absolutamente todos os jogos do certame nacional passaram a ser transmitidos ao vivo, algum juiz ou bandeirinha levou o famigerado “gancho” por ter cometido algum erro num jogo dos seus times.

Se você torce para algum dos grandes clubes do Rio e SP, você já viu isso acontecer com erros cometidos contra o seu time. Já viu, sim. Nós todos sabemos, porque observamos. E isso igualmente não ganha repercussão porque é assim que as coisas costumam funcionar no futebol brasileiro. É a pauta.

 

*Irlan Simões é jornalista e pesquisador do futebol. Comenta no Baião de Dois, aqui na Central 3. É autor do livro “Clientes versus Rebeldes – Novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno” (www.facebook.com/clientesversusrebeldes).

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“Viado aqui não”, reforça o futebol aos gritos

*Por Miguel Rios

O futebol é um universo onde se pode tirar muita onda. A permissividade para grear é quase 100%. Só não tire onda sendo gay. Não tire onde praticando homossexualidade ou algo que lembre, mesmo que de longe. Caso contrário, vira caso sério. Um crime.

“Viado aqui não.”

O mais recente exemplo é dos jogadores do Sport Clube Gaúcho. Três demitidos por uma masturbação coletiva entre eles no vestiário. Um vídeo vazou e nada de misericórdia. Gilmar Rosso, presidente do clube, alega que não por homofobia. Ok. Mas ele alega que não defende moral e bons costumes. “Não sou guardião da moral e dos bons costumes. Não me interessa o que eles fazem ou deixam de fazer. A única coisa com a qual fiquei bravo, a única coisa que eu proíbo aqui dentro é foto e filmagem, nada sem nossa autorização.”

Mas ele também diz que sentiu nojo e nem conseguiu ver o vídeo inteiro. Pergunta: se fosse uma filmagem de um momento familiar, com jogadores passeando com os filhos pelo clube, sem autorização prévia da direção, haveria demissão?

Rosso também deixou escapar: “Imagina quando eles entrassem em campo, o que iam ouvir. Até onde eu sei esses três não são gays, só fizeram tirando onda. Mas agora eles vão ter que provar que não são”.

“Viado aqui não.”

Mais perguntas: o medo de vincular o à homossexualidade fica ou não nítido? O problema é o ato dos jogadores ou a reação dos torcedores?

Pergunta síntese: a homofobia foi ou não componente nessa decisão? Conte até dez antes de responder. E responda para si. Responda de acordo com suas vivências futebolísticas. Responda sem a necessidade de invalidar toda a denúncia de homofobia só para garantir com os clichês que “o mundo tá ficando chato”, “que tudo hoje é homofobia”, “não sou homofóbico, mas…”

Lgbtfobia, racismo, machismo, etc. não são medidos apenas por violência física. Existe a simbólica e a psicológica. As que pingam todo dia e quem sente na pele é que sabe. Imperceptíveis para privilegiados. Inimagináveis até.

O vazamento do vídeo da masturbação dos jogadores já é homofobia. Qual o objetivo dessa divulgação? Foi um ato íntimo entre quatro paredes, que poderia ter sido ignorado. Não o foi por quê?

“Viado aqui não.”

Não há como negar que o universo futebol é dos mais preconceituosos. Onde machismo, lgbtfobia, racismo e qualquer outra discriminação correm livremente. Tudo para humilhar o adversário e se autoeleger superior.

Quando se quer menosprezar e agredir, “viado” e “bicha” são primeiras palavras lembradas e usadas de maneira pejorativa em todo jogo. Saem no automático. Quando se quer elogiar, se diz que o time ou o jogador teve atitude de macho.

Ser gay no futebol é se esconder. Entrar no armário nem que seja por 90 minutos no gramado ou na arquibancada. Para evitar agressões ou por olhares, por piadinhas, por constrangimentos.

Os héteros protegem o futebol com uma cerca elétrica. Torcidas organizadas, como do Palmeiras e do Remo, já fazem campanhas para minimizar a lgbtfobia nos estádios. Tentativas pontuais e corajosas. Resultado: ojeriza feroz por torcedores do próprio clube. Tidas como inimigas. Como que abrindo a guarda para uma infecção, dando munição aos adversários.

“Viado aqui não” foi a faixa que corintianos abriram diante da sede após Emerson Sheik ter dado um selinho em um amigo e a foto viralizado. Viado, no futebol, onde machos reinam e são exaltados como o suprassumo da humanidade, só serve para ser referência do que é ridículo, do que é errado, do que é insulto.

Nada mais habitual para validar a própria macheza do que questionar a macheza do outro. As disputas de poder dos ditos alfas. Tanto ofendem homossexuais, mulheres, negros, quanto chamam outros alfas para a briga, quebram cabeças, matam, porque alfas são assim. Selvagens. Machos.

Ser gay no futebol é sofrer o desprezo que Richarlysson sofre sem ter cometido crime algum. Ser gay no futebol é saber que um feminicida como Bruno é muito mais bem aceito e até idolatrado. “Viado aqui não”.

 

*Miguel Rios é jornalista, recifense, militante LGBT e filho de Oxalá.

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Dos chinelos ao vídeo

*Por Gil Luiz Mendes

 

– A bola passou por cima do chinelo.

– Não passou.

– A bola foi alta.

– Mas passo no meio das sandálias.

– Mas foi por cima.

– Não foi.

– Me dá minha bola. Vou pra casa.

***

– A bola saiu.

– Saiu uma porra.

– Olha a linha aqui.

– Que linha? Tá tudo apagado.

– Mas a linha ficava aqui.

– Mas não tá.

– A bola saiu.

– Saiu um caralho.

***

– Foi no peito, professor.

– Se afaste.

– Olhe a marca da bola na minha camisa.

– Solte a bola ou te dou cartão.

– Não pegou na mão e você sabe.

– Solte a bola e não fale mais comigo.

– Vai tomar no cu.

– Tá expulso! Tá expulso!

***

– E aí, entrou ou não?

– Espera que estamos voltando o vídeo aqui.

– Vai logo, porra. Que demora.

– Esconde a boca com as mãos que estão com a camêra fechada em você.

– E aí, fala logo.

– Espera não dá para ver direito. Tem um zagueiro tapando a imagem.

– Bandeirinha nojento. Eu achei que não entrou, mas esse infeliz levantou a bandeira.

– Segura aí que o coronel tá ligando no meu telefone. Alô…

– …

– Seguinte. Falta seis minutos para acabar o jogo. Valida o gol, dá mais cinco de acréscimo, amarra o jogo com faltas no meio de campo e depois acaba. Pode ser?

– Beleza.

– Boa sorte.

– Obrigado.

 

*Gil Luiz Mendes é escritor e jornalista e comando o Baião de Dois na Central3

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Campo de Jogo (2014)

*Por Paulo Júnior

Eu queria fazer um filme-ritual, onde cinema e futebol se amalgamassem.

A definição de Erik Rocha, sobre seu espetacular filme Campo de Jogo, dá o tom de seu maior acerto: enquanto falamos e ouvimos e repetimos que o cinema tem dificuldade em retratar o futebol, a presença da câmera na final de um torneio entre comunidades num campo de terra próximo ao Maracanã não conta nem retrata ou narra o jogo – ela encontra o jogo para formar outro lugar de invenção. Amálgama.

Se a grande diferença entre ficção e documentário é a relação ética entre o realizador e seus personagens, Rocha se permite apenas um parágrafo de didatismo. O longa começa situando o espectador sobre o que virá pela frente, a decisão de um jogo entre Geração e Juventude. O campo de jogo, aqui em minúsculas, surge como protagonista, os times sobem à terra batida e a partir daí tudo é vertigem.

Porque se Campo de Jogo já começa com a premissa de investigar as origens do futebol brasileiro em tempos de padrão Fifa e superexposição do esporte pasteurizado e global, outra fuga, essa da imagem, se dá diante da imposição de uma estética pela televisão. Se é possível assistir a segunda divisão do Campeonato Chinês com tomadas aéreas em HD, por onde se conta a história em Campo de Jogo, entre times que a gente não torce e não temos ideia de como chegaram ali? Pelo chão. Tal como renega a arena cinza construída sobre o Maior do Mundo ofuscado ali ao lado, o filme nos lembra do que vale o cinema se não permitir a inauguração de um novo olhar, que quando bem executado gruda na memória para sempre.

E o gol? Rocha resvalou, em sua entrevista a esta Central 3 em julho de 2015, que em Campo de Jogo o gol não é o mais importante, mas sim o movimento, a dança, o campo de batalha. O diretor é muito bem resolvido com sua proposta, e ele também usou o termo ‘epidérmico’, aquilo que se refere a pele, o suor, o corpo. Lindo. Viaja numa brisa metafísica e metafórica e leva 22 caras correndo atrás de uma bola para um lugar quase inalcançável aos olhos, feito um exercício de Nelson Rodrigues ou outros contadores de histórias do nosso futebol; mas volta, ao chão, à terra, ao vento de areia que corta os olhos do goleiro, elegantemente combinando a vertigem com a realidade. Como Graciliano Ramos, em Vidas Secas: a caatinga estendia-se sobre um vermelho indeciso, salpicado de manchas brancas, que eram ossadas… e quando você pensa que a narrativa vai flutuar num vazio, como se fosse possível uma folha escapar da árvore e parar num vácuo, voltam aquelas pessoas, Fabiano, Sinha Vitória, os meninos, a cachorra Baleia, volta aquela família caminhando no chão de terra batida. Isso é Campo de Jogo.

E o gol?, retomo. O gol não é um mero detalhe, parafraseando Carlos Alberto Parreira ao contrário. Fosse, o chute decisivo da partida retratada no filme não seria repetido quatro vezes, por quatro ângulos, feito os melhores momentos de jogos na internet (aliás, por que melhores momentos na internet têm replay se você mesmo pode voltar o lance?). E aí está a grande peça pregada por Rocha. É futebol ou não é, oras? É dança, mas dança não dá frio na barriga na hora do pênalti. É performance, mas na performance ninguém chora quando perde. É futebol e muito. E o gol é importante demais. Cada vez que alguém fala que futebol é mais que um jogo, lembremos o oposto. É assim, tanto, exatamente por ser SÓ um jogo. Não é experimento social, apaixona porque ganham e perdem.

No fim das contas, Campo de Jogo é uma saudação a um estar no mundo brasileiríssimo. Aquele retângulo – torto, irregular, comprido demais ou de menos, com gramas rebeldes nos cantos – enquanto melhor lugar para se estar em toda a comunidade, bairro, cidade. E enquanto protagonista de uma formação da identidade brasileira irreversível, por mais que os analistas das repetidas mesas redondas da TV – como estão distantes da várzea, nossa – insistam em problematizar a iminente reverberação de Garrincha, Pelé e tantos outros.

Campo de Jogo nos devolve aos primeiros sonhos, que parecem sair de antes do nada, ancestrais tal como crianças chutando bolas, resistência num tempo contemporâneo em que, mais do que nunca, o campo de jogo, de novo em minúscula, anda claustrofóbico, disciplinando até as convicções mais profundas.

(Reflexos do debate mediado por Lu Castro e na companhia do jornalista Diego Viñas em 4 de maio de 2017, no Teatro Anchieta, em São Paulo, após a exibição de Campo de Jogo pela mostra De Encher os Olhos, com programação gratuita, às terças e quintas do mês de maio, e um filme começando sempre às 19h.)

 

*Paulo Júnior é jornalista, cineasta e comanda alguns podcasts dentro da Central3.

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Os atletas mortos em acidentes aéreos

O esporte francês está em luto.

Dez pessoas morreram em um acidente aéreo envolvendo dois helicópteros, nesta segunda-feira, 9 de março, na Argentina, sendo três importantes atletas franceses.

Florence Arthaud (vela) , Camille Muffat (natação) e Alexis Vastine (boxe).

Os três campeões estavam gravando um reality show no país vizinho, chamado Dropped. A produção é do maior canal privado da TV francesa, a TF1.

Este não foi o primeiro caso de atletas mortos em catástrofes aéreas. O jornal Le Monde listou as principais tragédias na edição desta semana. Lembramos os principais dramas do esporte.

Torino (1949)

superga

A famosa catástrofe de Superga do dia 04 de maio de 1949 mudou o futebol italiano. Naquele dia, o FIAT G212 (sim havia avião da marca FIAT) da companhia Aeritalia eclodiu-se na colina de Superga, localizada nos arredores de Turim. No avião estava todo o time de futebol do Torino, o clube da classe operária da capital do Piemonte. Era a época do “Gran Torino”. Desde a segunda guerra mundial, o futebol ofensivo do time treinado pelo húngaro Ernest Edstein era imbatível. O time grená venceu cinco scudetti em 1943, 1946, 1947, 1948 e 1949. Dezoito jogadores morreram no acidente. O Torino voltava de uma amistoso realizado em Lisboa. O artilheiro húngaro László Kubala, que deveria estar no avião, não foi ao jogo por causa da doença de sua filho.

Marcel Cerdan (1949)

cerdan

Cerdan contra LaMotta em 1949

O boxeur estrela dos anos 40 era um dos passageiros do voo Paris – Nova Iorque da Air France. O avião bateu numa montanha nos Açores, no dia 28 de outubro 1949. 48 pessoas morreram. Ele estava indo encontrar a sua namorada, a famosa cantora francesa Edith Piaf nos Estados Unidos. Cerdan estava na espera da revanche contra o grande Jake LaMotta, prevista no Madison Square Garden em dezembro, seis meses após a derrota contra o americano em Detroit. O “bombardeiro marroquino” tinha se consagrado um ano antes tornando-se campeão mundial dos pesos médios ao vencer Tony Zale.

Os “Busby Babes” (1958)

Sport. Football. England. 1957. Manchester United FC (League Champions and FA Cup Finalists). Back Row: Matt Busby (Manager), Eddie Colman, Ray Wood, Mark Jones, Bill Foulkes, David Pegg, Duncan Edwards, Jimmy Murphy (Assistant Manager). Front Row: Johnny

Como o Torino nove anos antes, o time do Manchester United morreu em um acidente aéreo em 1958. Os Busby Babes, a geração treinada pelo treinador Matt Busby, desapareceu. Ela voltava de um jogo pela Copa da Europa em Belgrado e fazia escala na Bavária. Na decolagem, o avião caiu no final da pista matando vinte pessoas, oito eram jogadores. Os Busby Babes eram chamados assim por causa da baixa média de idade. Duncan Edwards, o menino prodígio da época, foi uma das vitimas fatais do acidente. Bobby Charlton, que conduziu a Inglaterra à conquista do seu primeiro título de Copa do Mundo, escapou do acidente.

Equipe de patinação artística norte-americana (1961)

Toda a equipe norte-americana de patinação artística morreu no acidente do voo 548 que ia de Sabena a Berg, na Belgíca, no dia 15 de fevereiro de 1961. A delegação iria disputar o campeonato mundial na Eslovênia, o qual foi anulado pela federação internacional após o acidente do Boeing 707. A patinação artística norte-americana estava no auge e teve que esperar alguns anos para conquistar novamente títulos internacionais.

Equipe de Green Cross (1961)

O Douglas DC-3 da LAN Chile, transportava 24 pessoas, dentre eles, oito jogadores de futebol do time chileno Green Cross. O avião caiu na cordilheira dos Andes no dia 3 de abril de 1961. Uma equipe de alpinistas achou restos de fuselagens e roupas das vítimas, longe do local do acidente. Dentre os mortos estava o craque argentino Eliseo Mouriño.

Os Sobreviventes (1972)

Esta catástrofe aérea tornou-se célebre graças ao romance publicado em 1974 e depois sua adaptação, em 1993, para o cinema. No dia 13 de outubro de 1972, um Fairchild ligando Montevidéu à Santiago do Chile caiu nas cordilheiras dos Andes. Das 45 pessoas a bordo, 12 morreram de imediato e 17 de graves ferimentos logo em seguida. Porém 16 sobreviveram após se alimentarem dos cadáveres de seus colegas, preservados pelo frio. Esta história de canibalismo moderno ficou marcada para sempre.

Acidente do Paris-Dakar (1986)

O acidente de helicóptero no centro do Mali durante o Paris-Dakar de 1986 ficou marcado na memória dos franceses pelo nome de uma das vítimas: Daniel Balavoine. Naquele ano, o cantor não tinha participado da corrida ao contrário das edições 1983 e 1985, mas estava presente em uma ação humanitária. O helicóptero que o transportava caiu durante a noite nas dunas do deserto. A bordo também estava o fundador e organizador do rali, Thierry Sabine.

A Seleção da Zambia (1993)

Kalusha Bwalya at the graves of Zambian national team

Os “Chipolopolos” estavam no seu auge no início dos anos 90, quando toda seleção morreu em abril de 1990 num acidente do avião militar que os levava ao Senegal, para disputar um jogo das eliminatórias da Copa do Mundo de 1994. O avião caiu no oceano Atlântico. Nenhum dos trinta passageiros sobreviveram, sendo 18 jogadores.

Seleção de hóquei da Rússia (2011)

O Yak42 que transportava a seleção de hóquei russa caiu à 300 km ao noroeste de Moscou. 43 dos 45 passageiros morreram no acidente, sendo vários jogadores da Liga norte-americana (NHL). O sueco Stefan Liv, o eslovaco Pavol Demitra ou ainda o tcheco Josef Vasicek.

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Os tiros de Porta Nuova

A violência no futebol italiano e mundial é bem mais antiga do que se imagina. Os primeiros casos de brigas entre torcedores foram relatados na véspera da primeira guerra mundial. Foi no período da subida ao poder do fascismo que a velha bota conheceu sua primeira onda de violência, entre 1919 e 1925. Árbitros e jogadores agredidos, ônibus apedrejados, agressões físicas e verbais. Relatórios recentes dos arquivos do ministério do interior italiano, das delegacias de policia e da imprensa comprovam a existência precoce deste fenômeno principalmente na Itália central e setentrional. A final do campeonato da Itália do norte entre Bolonha e Genoa é um famoso exemplo disso.

Nos meses de junho e julho de 1925, a final do campeonato italiano do norte fora realizada por diversos jogos disputados entre Bolonha e Genoa. A tensão esteve no auge depois de uma longa e cansativa temporada. A primeira final disputada em Milão foi o palco de várias irregularidades. O Bolonha perdia por 2 a 1 e conseguiu o empate de maneira bem pitoresca, digamos assim. A bola saiu pela linha de fundo do ataque do time bolonhês quando de repente a torcida sentada na beira do campo pegou a bola e passou para Bellini que assim marcou o gol salvador. O árbitro Mauro invalidou o lance no primeiro momento, mas ao perceber a fúria dos tifosi na beira do gramado resolveu revalidar o gol. Segundo o jornal La Stampa do dia 9 de junho de 1925: “Mauro tentou sair de campo, mas decidiu ficar e depois de 13 minutos de discussão acabou validando o gol”. Revoltados com o lance, os dirigentes e jogadores do Genoa decidiram abandonar o campo.

Não precisaria nem ressaltar que os jogos seguintes foram disputados em um clima bem pesado. Deste modo, na véspera do jogo disputado em Turim, na cancha da Juventus localizada em Corso Marsiglia, o jornal Paese Sportivo anunciou que “por determinação das autoridades não seria permitida a entrada de pessoas munidas de bastões.” No dia seguinte da peleja, o mesmo jornal publicou que todas as precauções foram tomadas para que o jogo fosse realizado na mais perfeita calma. “Em volta do retângulo de jogo, um cordão de isolamento foi formado por Carabinieri, um militar a cada três metros”. Ao que tudo indica o resultado foi satisfatório já que o jogo terminou numa boa, ainda com um empate de 1 a 1.

No entanto, a tensão ficou para o lado de fora do estádio. Na estação de trem de Turim. O jornal Paese Sportivo, no dia 6 de julho de 1925, publicou: “Na estação de Porta Nuova, vários incidentes ocorreram durante a partida de dois trens. Torcedores do Genoa e Bolonha brigaram dentro da estação. Tiros foram disparados de dentro do trem que saia para Bolonha às 20h40. Há relatos que um torcedor genovês fora atingido”. O Gazzetta del Popolo publicou no dia 6 de julho de 1925 que os meliantes abriram fogo quando o trem saia da estação e que a maioria dos disparos foram para o alto, porém alguns tiros atingiram o trem da torcida adversária. Uma pessoa ficou ferida, foi um estivador do porto de Genova, Francesco Tentorio, alvejado na perna esquerda.

Os comentários de uma imprensa controlada pela censura desde o estabelecimento da ditadura fascista em 1925 mostram que longe de ser um fenômeno isolado, os tiros da estação de Porta Nuova eram a expressão máxima da paixão futebolística. Os comentaristas da época não se espantaram com o episódio já que era factível um incidente por causa das condições impostas aos torcedores. As discussões entre torcidas rivais pareciam aos olhos dos jornalistas um elemento natural do espetáculo esportivo. Quando o jogo terminava, as provocações continuavam na saída dando ensejo a algumas brigas. Segundo os jornalistas, os torcedores faziam de tudo para ajudar o time utilizando todos os meios possíveis e imaginários. Outros responsabilizaram os clubes por contratar trens privados para o transporte de 500 a 1000 torcedores a cada jogo. O objetivo era mostrar a força de sua torcida no campo adversário como assim relatou o Gazzetta del Popolo: “Só os times não parecem ser o suficiente, é preciso a presença dos torcedores com o objetivo de colocar os rivais anfitriões em posição de inferioridade e preparar um ambiente propicio à vitória” .

Pode-se comparar algumas repreensões como aquelas cometidas contra os inimigos do fascismo. A FICG puniu o clube bolonhês com uma multa pesada de 5 000 liras por não divulgar a lista dos torcedores culpados do incidente de Porta Nuova. Um agrupamento formado por torcedores reuniu mais de 1 000 pessoas na Piazza Nettuno, no coração de Bolonha. Organizada por um conselheiro municipal, o capitão Galliano, a manifestação tinha por objetivo apoiar o clube que havia negado a deliberação estatal. Apesar da ocupação da praça, o clube foi obrigado a ceder. O estado fascista estabeleceu uma legislação especifica para os encontros esportivos. O decreto-lei de 6 de agosto de 1926 instituiu a obrigação da dupla autorização, prefeitura e governo, para a realização de um jogo internacional (artigo 1) e os jogos nacionais deveriam ser realizados após a aprovação do prefeito ao menos um mês antes (artigo 5). Tais medidas não foram suficientes para sufocar o espírito do tifosi, mas a febre futebolística do pós-guerra estava sob controle.

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