A epidemia da falta de interpretação de texto

Estamos na semana entre as provas do Enem, aquele teste que todo ano mobiliza a nação por motivos nem sempre tão válidos. Eu não tenho nada a ver com isso. Fiz a minha avaliação do ensino médio 17 anos atrás, exatamente quando tinha 17 anos. Começarei essas malfadadas linhas lembrando aquela modorrenta tarde de domingo na abafada na Zona Sul da capital pernambucana.

Em 2001, o teste não servia como porta de entrada para alguma faculdade. Houve um boato (sim, naquele passado não tão distante conversa fiada era chamada de boato mesmo e não de fake news. Em Candeias chamávamos de pala de butico) que uma parte da nota valeria certa porcentagem nos vestibular da Universidade Federal de Pernambuco. Não lembro ao certo se isso se concretizou, a prova só valia mesmo para avaliar como era que estava o aprendizado dos alunos do antigo 2º grau.

Lembro quase nada das questões que caíram naquele calhamaço de papel que nos entregaram com um monte de perguntas. Tema da redação também não faço a mais vaga ideia. Recordo que a escolha do prédio onde se faria o exame era definido por ordem alfabética e não pela proximidade da residência. Por isso minha maior lembrança do meu Enem atende pelo nome de Gisele.

A menina de cabelos curtos e um sorriso capaz de me engolir teve que sair de Rio Doce, em Olinda, para responder a um sem fim de perguntas em Boa Viagem. Para quem não conhece Recife, afirmo: é longe. Minha timidez era maior naquela época, e minha memória também. Por isso não tenho muita certeza, mas acho que foi ela que puxou papo comigo. Mas a minha capacidade de decorar as coisas no fim da minha da adolescência fez com que eu conseguisse o telefone dela sem ela me falar.

Explico: No começo do século 21, pasmem, não eram todos os adolescentes que tinham acesso a um telefone celular. Gisele precisou falar com a mãe. Fomos até o orelhão (um telefone público, jovens) e ela ligou para sua residência. Decorei a sequência numérica e na segunda-feira mandei a timidez para as cucuias e repeti os oito números. Ela ficou surpresa com a minha cara de pau. Eu também.

Abismado, abobalhado, atabacado ou abestalhado como na época desse meu affair, esquema, rolo, romance ou ôia que tive com Gisele, fiquei também ao ver os comentários sobre a avaliação do ensino médio deste ano. Tinha de tanta abobrinha e outros quitutes falados sobre a prova que dou meu diagnóstico empunhado o meu diploma de doutor de nada: a maior epidemia brasileira da atualidade é a falta de interpretação de texto.

Ave, Nossa Senhora da Conceição! Quanto choro e ranger de dentes por aparecer questões que traziam textos de Galeano, expressões do iorubá das monas. Aquenda, racha! Direitos humanos, golpe de 64. Tudo isso foi demais para os gremlins da direita se arderem e multiplicarem como quem levou um banho de água fria. Tudo por falta de interpretação de texto.

Vocifero outra verdade do alto do meu conhecimento sobre nada. O danado do Enem não é um prova de português, matemática, biologia, química, ciências da natureza, ciências ocultas ou o escambau que o valha. O coitado é apenas uma prova de interpretação de texto. Por isso deve ser difícil para uma maioria que apoia um saco de cocô na cadeira da presidência a república entender isso. E não está nas entrelinhas. Está na fuça.

Sobre Gisele, se vocês sabem interpretar um texto devem imaginar como se desenrolou essa aventura juvenil. Saudade dos orelhões.

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Coitados

 

Não queria falar de política aqui nesse espaço concedido a mim pelos sempre queridos da Central3. Nem tenho expertise para isso. Estudei um pouco do assunto nas minhas graduações, já escrevi sobre o tema em algumas matérias freelancer ou quando ainda era repórter de rádio, mas estou longe de ser um especialista. Também evitarei falar de futebol por aqui, boa parte da minha vida profissional está em cima da paixão nacional, e assim como em política, me considero apenas um pitaqueiro.

Pensei em usar esse espaço pra falar sobre amenidades e coisas não tão interessantes, sempre com uma dose de humor e sarcasmo, tipo os astros do zodíaco ou as estrelas do reggae (esperam que tenham entendido as referências). Mas o período que Pindorama passa pede para nos posicionarmos. O muro está estreito e nem o melhor equilibrista, do maior circo russo, consegue ficar em cima dele. É preciso escolher de que lado vai querer ficar.

Pego agora meu diploma de cientista político de mesa de bar e vou encher vocês com mais um textão. Pelo menos esse não está no Facebook. Este é um dos meus privilégios. Para quem ainda não sabe sou negro e nordestino, duas categorias que segundo o capitão peidão precisam acabar com o coitadismo. Também estão dentro dessa esfera, segundo o fujão dos debates, mulheres e gays. A junção da geração millenium com os neo-nazifacistas chamam a luta por direito e igualdade de mimimi e votam em peso na besta-quadrada militar.

Vejamos: a chance de um jovem negro morrer violentamente no Braza é duas vezes e meia maior do que um jovem branco. Coitados dos brancos. Em toda eleição nacional a região Nordeste sofre com ataques xenófobos e críticas caricatas. Coitados dos sulistas e sudestinos. Pindora é o país que mais mata LGBTs no mundo, um morre violentamente a cada 19 horas apenas por ser quem é. Coitado do homem branco hétero cis. Esse safari travestido de país é o 5º no mundo em número de feminicídios. Olha o homem branco hétero cis sendo coitado mais uma vez.

Onde se enxerga vitimismo e coitadismo realmente há vítimas, e os números do parágrafo acima mostram bem isso. Como um jovem branco classe média vai justificar aos pais que investiram milhares de reais na educação particular do filho, que uma menina vinda da periferia de lá de São João de Longe e entrou na universidade pública graças ao sistema de cotas tem um desempenho acadêmico melhor que o dele? O Fabinho e a Jéssica, do filme Que Horas Ela Volta se tornaram ao mesmo tempo uma realidade para quem sempre foi coadjuvante numa centralizada do Sul/Sudeste e um pesadelo para classe média quatrocentona dessas mesmas regiões. Para eles é hora de acabar com esses privilégios de igualdade, e há um candidato truculento prometendo fazer tudo isso. Como essa gente não vai amá-lo?

Mas quem promoveu tudo isso, acho que já tinha feito o necessário e se acomodou. Tinha e tem muito mais a ser feito por esse povo que é desfavorecido desde que o primeiro canalha português pisou nessas terras em 1500. É incompreensível que esquerda-classe-média-branca-vamos-abraçar-as-árvores ainda queira dar as cartas do jogo das minorias sem ouví-las. Ou se ouve e se faz de acordo com que as periferias e o rincões, que são a maioria, querem ou teremos que conviver com o retrocesso conservador por muito tempo ainda. 2022 ou será uma eternidade ou nunca chegará. Quem tiver fé que acredite na virada. Daqui, continuo sendo esse cético que acredita em milagre e com o mesmo pensamento de Mano Brown, uma das cabeças mais lúcidas da nossa sociedade, dá pra apoiar e criticar ao mesmo tempo. Há um interesse muito maior em jogo.

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O diabo mora no Whatsapp

 

Não tem fogo, nem calor. Nem pequenos capetinhas correndo de um lado para o outro com tridentes na mão. O cramunhão não está lá fervendo seu grande caldeirão em labaredas esperando para cozinhar todos os pecadores decaídos desta terra, ou aqueles que não passaram no julgo do purgatório e tiveram seu acesso ao Paraíso negado por Pedro e suas chaves.

Você não caiu no inferno atual por males pregressos. Caiu nessa arapuca de Lúcifer por vontade própria ou influenciado por alguém que na melhor das intenções te convenceu a entrar nesse caminho quase sem volta. E sabemos qual o lugar onde não faltam boas intenções, segundo o ditado popular. Foi prometido como algo lindo que facilitaria muito a interação e seria um ótimo espaço de convivência, mas era mentira.

O diabo, pai da mentira, como dizem os cristãos, em sua versão high tech 4G, prefere chamar essas inverdades de fake news. Lá em Candeias, a minha amada terra, a gente costuma chamar isso de pala de butico ou de ocado chilenol. Dizem que em outras partes de Pindorama isso também é denominado como caô. Independentemente de como se chama, a verdade é que a verdade está cada vez mais rara.

O habitat preferido desse tipo de embuste é o inferno do Whatsapp. Lá as mentiras nascem, crescem, se reproduzem e não morrem. Estamos no auge da ladainha furada por conta das eleições. Tem de tudo. De Jesus Cristo enrabando Miley Cyrus a Ferrari amarela. Quem cria é maldoso. Quem compartilha é inocente ou cretino (difícil distinguir, ao certo, tamanha ausência de raciocínio crítico) e quem acredita, no bom latim, é burro mesmo.

Já falei por aqui há algumas semanas que é difícil acreditar que pessoas que tiveram a mesma formação que eu acreditem em alguns absurdos ditos no aplicativo do balãozinho verde. E nem sempre é política. Muitas vezes é com boa intenção, aquele sentimento que está cheio no inferno e no Whatsapp.

Vejam vocês, enquanto escrevo esse texto soou o barulhinho de uma nova mensagem. Naquele mesmo grupo do colégio foi compartilhada a notícia de uma ação do Outubro Rosa com mamografias gratuitas sendo oferecidas na Praça da República. O detalhe é que essa mensagem foi passada em um grupo onde as pessoas majoritariamente moram em Recife e essa campanha está sendo realizada em São Paulo.

Em um tempo que todo mundo é produtor de conteúdo, por que não ter outra característica advinda do jornalismo e começar a apurar de onde vem as informações? Mete-se o dedo no Google pra quase tudo. Custa nada parar meio minuto e verificar de onde vem aquela notícia em forma de brisa antes de compartilhá-la como corrente marítima.

Hoje a Folha de S. Paulo trouxe na manchete a história da indústria da mentira. Mas não é aquela mentirinha besta que todo mundo, em algum momento, usa como artifício de defesa. Neste caso é para atacar de forma muito bem orquestrada e derramando um mundaréu de desinformações para manchar reputações. Sem dourar a pílula, o nome disso é covardia regada a bastante dinheiro para beneficiar a campanha do capitão peidão.

Nos meus fones de ouvidos, durante essa semana, alguém no rádio avisou que as discussões políticas estão acabando com os grupos de família, faculdade, escola e trabalho que existem no Whatsapp. A moça da voz doce talvez nem faça ideia, mas ela me deu a melhor notícia deste 2018 deslavado e mal resolvido.

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Amigos mudam

 

 

Há quem goste. Confesso que já fui até meio viciado nesse negócio chamado nostalgia, mas nãos essas de colecionar e acumular coisa velha, ou antiga – como preferem chamar os apegados. Meu museu era só de memórias mesmo. Ainda sofro um pouco disso. Minha Candeias que o diga. Não há um mero dia que não me lembre do odor de sargaço e das ruas sem asfalto. Chega dói.

Matava essa miserável chamada saudade, que só serve morta, com os velhos amigos de bairro e escola. Mas na minha memória toda a rapaziada ainda era a mesma. Magros, de roupas largas, tênis coloridos e nenhuma carta chegando em nossos nomes nas caixas de correios. Mas a realidade é mais inconveniente do que qualquer doce lembrança. Ao olhar no espelho, nem eu sou o mesmo, quem dirá aqueles com quem perdi o contato diário há mais de 20 anos.

A amada tecnologia apareceu por aí dia desses como quem não quer nada e resolveu diminuir distâncias. A falsa proximidade é um alento no começo, mas com o tempo, esse implacável, as coisas se mostram como realmente elas são. Não tem rede social no mundo que faça aproximar diferenças que foram formadas no meio dos hiatos. As pessoas mudam e nem sempre é para melhor.

O Whatsapp é o propagador de tudo que não presta nesses períodos que antecedem o pleito eleitoral deste ano. É por lá que a horda favorável ao capitão peidão propaga todos os tipos de mentira que atingem os cérebros menos questionadores. Eu, que me acredito cético, desacreditei ao ver proferido no grupo dos meus amigos de adolescência, no mesmo aplicativo de mensagens, os bordões tagarelados e sem visão crítica amplamente difundidos pela direita acéfala. Acreditem, até o famigerado “vai pra Cuba” foi propagado lá. Juro.

E ai que a dúvida bateu mais no peito mais do que na cabeça. Em que momento pessoas que tiveram a mesma formação que eu viraram essas criaturas que aplaudem atitudes facistas e adoram adoradores de torturadores? Viemos do mesmo lugar e tivemos ensinamentos na mesma sala de aula. Quantas fitas k7 do Racionais MC’s, do Devotos do Ódio, DFC, Chico Science & Nação Zumbi, Rage Against The Machine, Pink Floyd trocamos entre nós e mesmo assim nada do que era dito nas letras dessas bandas ficou para essas pessoas.

Detalhe que nenhuma delas virou um mega empresário pró-capitalismo ou um grande acadêmico liberal. Se fossem, talvez não repetissem tantos chavões. Não. São meras pessoas da classe média, de pensamento mediano e que creem que pensamento crítico é chamar a Rede Globo de comunista ou xingar qualquer de esquerda e blasfemar tudo que seja vermelho. Não me espantaria que cortassem o tomate de sua dieta simplesmente por conta da cor do vegetal.

Certas coisas e pessoas precisam ser deixadas para trás. Para nossa saúde mental. É necessário. Tempo suficiente já foi passado longe delas e até hoje a vida permaneceu a mesma. Termino esse texto com um trecho da música “Canção Para Amigos”, do Dead Fish, mais uma dessas bandas que ouvíamos juntos enquanto nos empurrávamos em alguma roda de pogo ao 14 anos de idade. Duvido que ainda hoje eles entendam o que essa música queria dizer. Talvez nem entendam essa crônica.

“Acho que crescemos demais
Aconteceu o que temíamos
Não vamos mais nos entender
Se foi a natureza ou o sistema, só o tempo, dirá”.

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As mentiras que conto

 

Um dia fui um professor universitário do curso de biologia marinha. Teve outra vez que afirmei ser um funcionário de baixo calão, que só carimba papeladas, da Abin. Já disse que era porteiro e só estava indo para o aeroporto entregar uma mala que uma dondoca do condomínio tinha esquecido e o síndico do prédio me obrigou a fazer aquela missão.

Sou um mentiroso nato, daqueles que não tem medo de ver o nariz crescer, assim como todos que tentam fugir de alguma situação incômoda. As maiores vítimas das minhas falsas afirmações são taxistas e motoristas de Uber e outros aplicativos do gênero. Tudo isso para não render conversa. Normalmente eu até gosto de trocar ideia com alguém que passa boa parte do dia em frente a um volante e trocando marchas, mas há momentos que só quero chegar ao meu destino em silêncio. De boa, nada pessoal.

São nesses momentos que recorro à falta da verdade para ver se consigo alguns minutos de silêncio parado no combalido trânsito paulistano. Mas assim como tentar responder com as monossilábicas “tá”, “ok”e “não”, a tática de inventar um personagem desinteressante nem sempre funciona. Quando disse, certa vez, que era um mero estudante do curso de matemática, o condutor do carro afirmou que foi professor da matéria durante muito tempo e hoje estava aposentado. Eu, que nunca entendi aquela história de números dentro de colchetes, falhei miseravelmente na minha tentativa de não-assunto.

Antes que parece algo classista, costumo também mentir para outros seres que não têm a profissão de levar pessoas de um ponto a outro dentro de um automóvel. Coitado dos meus vizinhos. Conversas sobre o clima ou cachorro fedorento do andar de baixo são os meus favoritos dentro daquele meio de transporte chamado elevador.

Mas há sempre um condômino mais ousado e querendo ter uma intimidade que eu não tenho nenhuma intenção de dar e pergunta o que eu faço da vida. A moradora da porta do lado jura que sou desenhista, o síndico tem certeza que professor de futebol de um projeto social para crianças carentes. Os porteiros e vigias, as melhores pessoas daquele ecossistema, sabem de toda a verdade sobre a minha vida. Deles não há como esconder nada.

Não tenho vergonha das coisas que faço, mas ao afirmar que sou jornalista sempre vem aquela pergunta sobre a Globo e a obrigatoriedade do diploma. Cansa responder as mesmas coisas. Quando falo que sou escritor, sou sempre obrigado a explicar o que é literatura independente, crise do mercado editorial, fora que sempre tem um esperto que pede um livro de brinde. Qual a necessidade de comprar um exemplar, não é mesmo?

Considero as minhas mentiras as melhores do mundo. Me divirto nas histórias que conto e me surpreendo com tamanha criatividade em tão pouco tempo para desenvolver uma história. Viva o improviso. E se você chegou até o final dessa crônica, um aviso: tudo que você leu até aqui pode ser uma grande mentira.

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Te pego num clique

É mais um dia comum na internet brasileira. Vocês está lá de bobeira em qualquer rede social passando os dedos na tela do seu celular ou descendo a barra de rolagem do desktop, e explodem na sua cara as coisas de sempre. Os memes do dia, um textão aqui, uma lacração ali, a velha arenga dos reaças-lunáticos-terraplanismo-arma-na-mao versus esquerda-vamos-abraçar-o-sol-vem-cá-fazer-ciranda.

Eis que de repente, não mais que de repente… pêi! Você caiu nela, a pegadinha do cliquebait. Pra quem não está a par do que se trata esse neologismo internético, vou dar a letra. É o caça-clique, o oportunismo, o me engana que eu gosto. Em resumo: apelação nua e crua. Eles, esses sociais medias malvadões, junto com os editores hypes, vivem de jogar casca de bananas na sua timeline. E você e eu, trouxas que somos, caímos iguais a água da goteira.

Para quem viveu os anos 1990, a analogia a ser feita é com o vale-tudo que rolava nas tardes de domingo na TV do Brasil, ou a Arábia Saudita de Biquini, como preferirem chamar. Naquele época a Rede Globo fazia coisas como colocar uma mulher deitada numa mesa coberta de peixe cru e arroz empapado (alguns teimam em chamar isso de sushi) enquanto atores e outros personagens do mundo irreal se serviam. Mudando de canal, a TV de Silvio Santos era especialista em closes genitais de bundas para cima, rebolando dentro d’água ao som de Companhia do Pagode e Karametade.

E tudo isso tinha um único motivo: a audiência. Quanto maior o número no Ibope, mais caro ficava o espaço publicitário e mais dinheiro as emissoras ganhavam. Passados duas décadas continua a guerra para que mais pessoas vejam algo e, com isso, as empresas de comunicação ganhem mais receita com publicidade. Vinte anos se passaram e há uma certa sofisticação no apelo.

As bizarrices não estão mais tanto no conteúdo, e sim nas chamadas. O mecanismo é o seguinte: Peguem palavras que gerem interesse do público e force a barra para que elas apareçam no título. Não importa se eles fazem sentido ou não. Quando o assunto for futebol, mesmo que for pra falar do campeonato do Azerbajão, tem que se encontrar um jeito de colocar a palavra Neymar no título. MAQUEIRO QUE TIROU NEYMAR DE CAMPO HOJE FAZ SUCESSO COMO SORVETEIRO EM DUQUE DE CAXIAS, é um exemplo

Continuando no futebol, também vale colocar os nomes dos times mais populares do país, mesmo se eles não tiverem em campo. Segue a imagem abaixo como exemplo.

Dentro do clickbait tem também aquilo que é conhecido como jornalismo José Punheta. Nesse caso os termos topless e sensual sempre aparecem. Nisso o internauta pimpão acredita que clicando naquele link reduzido encontrará a sub-celebridade mostrando tudo e mais um pouco, mas tem que se contentar com uma foto de umas costas desnudas ou um contra-luz que marca a sillhueta. E quando o assunto futebol e mulheres em poses sensuais se unem, meus amigos, é a pitomba do munguzá. Suco de feijão puro. Cuscuz fino.

Isso são só as chamadas, isso sem falar que o texto jornalístico millenium é amarrado que nem buchada de bode no tal do SEO. Repetir um certo de número de palavras-chaves dispostas de uma maneira quase imperceptível para que gere ranqueamento no Google e assim apareça primeiro nas buscas. Isso sem falar nas ferramentas de algorítimos atualmente utilizadas. E mesmo se o usuário clicou e passou menos de dez segundo na página, isso já conta como acesso para o pessoal do comercial. Cai em mim dindin.

Juro que passei horas aqui em frente do meu combalido computador guerreiro pensando em uma manchete apelativa para esse texto. Queria dar um daqueles título que terminam com ponto de exclamação. Depois de fritar os miolos o melhor que cheguei foi: JORNALISTA CRÍTICO DE NEYMAR AVALIA AS MANCHETES DA INTERNET MOSTRANDO ABDOMEM TRINCADO.

Acho que não levo jeito para essas coisas.

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“É o sistema”

O dia estava bem mais ou menos. Monotonia cotidiana. Mensagens filosóficas, sentimentais e os memes do dia no Whatsapp. Um amigo do trabalho que pede uma ajuda que não vai atrapalhar muito, o chefe que tem lembra de uns prazos e vamos que vamos no meio de uma semana que mistura calor, frio e umas boas risadas. Contratempo nenhum até então. Mas o ventou virou.

Durante o almoço veio a lembrança das contas para pagar e voltou a mente a recordação de ser um homem de Neanderthal para assuntos bancários. Não uso a internet e nem aplicativos para transações financeiras. Sou daquelas pessoas que esfregam a barriga no caixa eletrônico, espera aquele fiozinho de luz vermelha aparecer e coloca o código de barras embaixo. Nada contra a tecnologia, é só mais um método de sair da inércia em frente ao computador e fazer uma caminhada após a refeição do meio do dia. Médicos recomendam.

A conta do condomínio estava um dia atrasada, coisa que acontece com que recebe o salário integral no dia 21 de cada mês. Ah data miserável! Pois bem, lá vai eu puxar fichinha e esperar para ser atendido na boca do caixa por um atendente. Acredito que exista jovens com menos de 20 anos que nunca fizeram essa ação na vida. Mas até chegar lá, há de ser passar pela bendita porta giratória. Muito mais do que ser uma divisória entre a parte de dentro e de fora de uma agência bancária, esse rito de passagem é acontecimento social e antropológico. Ainda mais se você for negro.

Lá vou eu, lá vou eu, sem festa nenhuma na avenida. Aquela semiconcha de acrílico que fica presa na porta de vidro blindado recebeu minha carteira e meu celular. O artefato de guardar dinheiro só tinha papel e plástico. Travou. O guarda negro de roupas pretas por trás da superfície transparente mandou eu voltar até a linha amarela. Obedeci o jogo de cores. Tentei a operação novamente e… travou de novo.

O senhor do outro lado encostou inocentemente na arma que estava na cintura e pediu para que eu mostrasse os bolsos. Puxei o tecido da parte interna da calça e só tinha contas a pagar. Retornei a linha amarela mais uma vez e…Travou. Na quarta tentativa ocorreu um passe de mágica e a porta da esperança que dá voltas no próprio eixo destravou. Sorriso nenhum transparecia na minha face, mas o segurança me mostrou os dentes e soltou: “Não tenho culpa, é o sistema”.

Resposta mais sincera e simbólica não poderia haver. Sim, é esse sistema que propaga o medo aos quatro ventos. Um negro de calças largas, em um bairro nobre como Itaim Bibi, querendo adentrar uma agência bancária sozinho no horário pós-almoço é um perigo real para sociedade. Vocês não acham? O bairro citado nesse parágrafo merece uma crônica futura só sobre ele, mas deixo aqui um spoiler: me acho o centro do universo por ser único ser de dreads na Joaquim Floriano ao meio dia. É momento que todos os olhos quem me veem nessa rua fazem questão de me encarar com espanto. Estamos em agosto de 2018. Pasmem.

Mas voltando a história da porta que roda, é o sistema, segurança-irmão-de-cor, que nos coloca nessas posições. Você aí do outro lado na missão de segunda a sexta parar sujeitos feitos eu que querem adentrar seu local terceirizado de trabalho. Você acredita que não tem culpa, e talvez nem tenha mesmo. Quem sabe não seja melhor a gente jogar a culpa em que inventou a tal giratória. Ou no miserável que mandou instalá-las.

É o sistema, esse monstro invisível que nos esmaga diariamente e que tenta tirar o que nos resta de dignidade. As pessoas que souberam do ocorrido vieram se solidarizar a mim e até perguntaram se eu estava com raiva. Sinceramente o sentimento é outro e nem sei se consigo nominá-lo. Mas não tenho dúvidas que ele não é bom e está contra tudo isso que chamam de sistema.

Resposta da instituição bancária depois que relatei o fato nas redes sociais

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Morar sozinho não é tão bom assim

Eu tinha o objetivo de nunca começar um texto com a expressão “na minha época…”. Eu também almejava sair da casa dos meus pais ainda quando fosse muito novo. A primeira meta continuo conseguindo, mesmo quase cometendo esse pecado pessoal no início dessa crônica. Também alcancei a segunda, mesmo que isso tem me custado muito da minha sanidade e poucos arrependimentos.

Com vinte e bem poucos anos peguei as minhas mudas de roupa, devolvi as chaves pra minha mãe, fechei a porta e não olhei pra trás. Não tem nenhum drama aqui. Segui todos os padrões cunhados décadas atrás. Tinha um apartamento financiado, uns estudos concluídos e um casamento a se constituir depois de anos de namoro e noivado. Se isso é o sonho da classe média sobre constituição da família tradicional brasileira e faz parte da formação de um cidadão de bem, eu cumpri todos os protocolos. Em tempo: Deus me livre ser um cidadão de bem.

Convites, igreja, festa, lua de mel, brigas, discussões de relacionamentos e divórcio. Depois de tudo isso num curto espaço de tempo, lá estava eu morando sozinho pela primeira vez numa caixa de concreto de 60 metros quadrados. A partir daí algumas lições foram aprendidas na marra e outras maravilhas foram acontecendo. Mas não se iludam, os perrengues são bem maiores, e mais constantes, do que as glórias.

Desde o período descrito acima até hoje já dividi o teto com mais pessoas do que os dedos de uma mão podem contar. Atualmente, após mais de três décadas fazendo peso em cima da terra, moro pela quarta vez acompanhado de ninguém. Nesses momentos de solidão habitacional você descobre que domingo é o pior dia para não ter ninguém para compartilhar o sofá.

O primeiro dia da semana é rotina. Acordar de ressaca, pedir o almoço, dormir na rede, acordar no final do primeiro tempo do jogo das quatro na TV, algum filme (atualmente Netflix, mas já foi DVD), final do Faustão, o que sobrou do almoço como jantar, gols da rodada no Fantástico e lá se foi o dia do Senhor e do almoço de família. Segunda-feira já chega chutando a bunda e te expulsando do ninho.

Ni Brisant, poeta e camisa 9 dos versos, tem uma lista extensa sobre as maiores dificuldades de morar só. Inclusive fazer listas é um desses malefícios. Mas ele lembra também de um específico que pra mim é prova real que o Inferno está localizado no espaço onde vive apenas uma única alma. Ficar doente e não ter a quem recorrer. Isso é horrível e não desejo essa praga nem para um eleitor de Bolsonaro.

Mas tem um outro drama que, vez ou outra, me dá uns petelecos no cérebro. E se eu tiver uma parada cardíaca durante o sono, quanto tempo vai demorar para alguém dar falta de mim? Quem vai arrombar a entrada do lar e me vê petrificado em cima do colchão? Não avisei a ninguém que quero metade das minhas cinzas no mar de Candeias e outra metade no gramado do Arruda.

Só aqueles que tem a certeza da ausência de vida humana do outro lado da porta sabem o desespero que é colocar as mãos no bolso e perceber que deixou as chaves em lugar desconhecido. A angústia e obrigatoriedade de passar o tempo escutando vizinho ou porteiro do prédio dando mil dicas para que você não seja burro ou displicente o suficiente para que algo parecido não ocorra outra vez.

Não vou me ater aqui aos serviços domésticos. Isso faz parte da parte boa. Limpa quando quiser, sem ter ninguém na sua orelha, e conclui no seu tempo. Qual o problema se a faxina de um kitnet durar uma semana? Não ter que dar satisfações a quase ninguém sobre a hora que sai ou que chega é uma das poucas vantagens de ter o eco das paredes como companhia dentro de casa. Mas é pouco, muito pouco, para berrar aos quatro ventos a alegria de uma falsa independência.

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Acabou a discussão de bar

Certas coisas não estão em tratados, convenções ou documentos oficias, mas são regras e direitos universais. Para boa convivência entre os iguais. Não é preciso uma instauração jurídica, ou algo que o valha, porque essas tais coisas simplesmente são. Estão por aí desde que chamaram esse mundo pelo nome e não há problema nenhum nisso. Ou há, a partir do momento que querem mudar essas circunstâncias.

Uma desses cânones da humanidade é o direito da dúvida, mas parece que atualmente ninguém quer se valer dele. Qual o problema de não precisar saber de tudo? Já não se tem mais aquele prazer incômodo de ficar com a pulga atrás da orelha. Aquele pé atrás hoje nem mais dá aqueles chutes incertos sabendo-se lá onde vão parar. O que vale agora é cravar com a sola e afirmar com bestas convicções.

A sombra da dúvida diminui com o passar do tempo e quem quer ter o prazer de não saber é bombardeado a cada dia com as certezas que ficam em seu encalço. Não adianta fugir. A culpa é dos novos tempos. Qualquer informação ao alcance de mão. Não sabe? Esqueceu? É só conferir se a conexão do seu 4G está ok e… voilà! Ali está o link que você precisava e acabar com ansiedade que o afligia para saber se o ator daquele filme era o Morgam Freeman ou Samuel L. Jackson.

Longe de mim querer ser saudosista, tecnologia está aí para nos ajudar e viva o avanço da ciência, mas tenho lembranças açucaradas das boas brigas de bar. De um lado, cheio de razão nenhuma, o barrigudo de bigode bradava: “Aquele gol foi do Silas Lenhador”. Na outra ponta da mesa o magrelo de finos óculos e caneta no bolso da camisa soltava: “Que nada! Você está falando merda. O gol foi do Mimi, e digo mais, aos quinze do segundo tempo”.

Estava criado o impasse e dali só sairiam depois do veredicto dado por, nada mais, nada menos, do que Gomes, o juiz de paz, que quando não estava resolvendo esse tipo de arenga voltava as funções de garçom e enchia o copo dos dois brigões de boca. “Autoridade, diz para esse bêbado que ele está todo errado e confirma o que eu disse. O gol foi ou não foi do Mimi?”

E assim as coisas eram resolvidas. O garçom pegava conversa de meia orelha e dizia que um dos dois estava errado, geralmente o mais nervoso, para que aquela discussão rendesse muito ainda e aumentasse o tamanho da conta. Na semana seguinte, ou na mesa ao lado, haveria um quiproquó parecido e todo mundo voltava com uma dúvida diferente para casa. “Acho que ele pode ter razão. O Silas Lenhador estava jogando muito naquela época”.

Duvido um imbróglio desse acontecer em dois mil e esses anos. Segue a cena. @HumansontheWall segura seu chopp IPA enquanto espera seu hamburguinho artesanal ser servido. Seu amigo @ThePriceDark chega e senta na cadeira de praia que está ao seu lado instalada na calçada em frente ao bar que está uns 180 km do mar mais próximo. Com os olhares fixados nas telas daquilo que eu dia chamaram telefone celular, um deles indaga:

Tá sabendo que o ator fulano vai ser o protagonista daquela franquia iraniana?” “Não vai ser o fulano, vai ser o Beltrano”. “Tem certeza?”. “Não, pera. Bro, qual a senha do wi-fi?” O garçom aponta uma sequência de números na parte de baixo do cardápio feito de papel reciclado. Em menos de um minuto. “Tá vendo, olha aqui, é o Beltrano mesmo, te falei”. Fim da dúvida e Bro, o garçom, chega com o hamburguinho.

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