As cagadas do Netflix com a série Hot Girls Wanted

*Por Thiago Borbolla

Hot Girls Wanted, enquanto era só um documentário que foi exibido em 2015 no Festival de Sundance e, depois, se tornou um dos chamados “Originais Netflix” que criticava a indústria da pornografia nos EUA, nunca foi, digamos assim, bem visto pelos chamados trabalhadores sexuais – homens e, especialmente, mulheres que trabalham com sexo. Pornografia, prostituição, erotismo… Enfim. 😛

Enquanto Rashida Jones, uma das produtoras do filme, dizia em entrevistas que esta indústria não poderia ser boa por ser “performativa, as mulheres não ficam felizes com aquilo”, trabalhadores sexuais e defensores ironizavam. “O que me dava ‘alegria’ na pornografia (como a maioria dos trabalhos que eu tive) era ser pago”, afirmou uma. “Me desculpe, barista. Eu preciso te devolver esse latte. Eu não vi nenhuma alegria da sua parte enquanto você fazia” respondeu outra.

Hot Girls Wanted não foi feito por ninguém que trabalha na indústria do sexo e foi planejado muito obviamente pra cumprir uma agenda, que era fazer este negócio parecer ruim”, disse a “prolífica perversa profana poliamorosa pansexual política dominatrix profissional e escritora” Mistress Matisse. “Esse filme não foi uma chamada pra fortalecer os direitos das modelos/atrizes, foi uma história pra assustá-las sobre o que poderia e o que vai, inevitavelmente, acontecer se elas tentarem seguir o caminho da liberdade econômica. Não havia nada no filme que sequer indicasse algo que a indústria poderia mudar”.

“Essas meninas estão sendo exploradas, sim. O filme sugere que é porque a pornografia existe em primeiro lugar. Mas eu não culpo a pornografia” afirmou Casey Calvert, atriz pornô desde 2012, ao Daily Dot. “Eu culpo ‘agentes’ e companhias que não enxergam essas adolescentes como seres humanos, mas como cifrões. Se você mostra uns dois mil dólares na frente de uma garota de 18 anos que fugiu de casa, é óbvio que ela não vai dizer não”.

Brooklyn Daniels, uma das garotas que aparecem no documentário – enquanto posa pro seu primeiro ensaio sensual ouvindo do fotógrafo que a cara que ela fez em determinado momento fez “a sua ereção desaparecer” – e que continuou, pelo menos até o fim de 2015 trabalhando na pornografia, disse também ao Daily Dot que a produção capturou corretamente certos aspectos da indústria e que “fez exatamente o que precisava ser feito pra conscientizar”.

“Eu não acho que estavam tentando fazer a indústria parecer pior”, disse ela. “Eu acredito que tudo o que eles fizeram foi mostrar um pouco melhor o lado ‘amador’ da pornografia, não falando dos grandes produtores e estrelas porque, convenhamos, eles fazem tudo muito mais certo do que os produtores amadores. Esse documentário apenas mostrou pras pessoas o que realmente acontece com a maioria das garotas na indústria. Não com todas.”

Como muito bem diz a matéria do Daily Dot, “as diferentes reações a Hot Girls Wanted, de diferentes segmentos das indústrias pornográfica e sexual, ilustra como são variados seus trabalhos e experiências. É impossível pra uma pessoa, aparentemente, mostrar corretamente que a indústria do sexo ou pornografia é ‘boa’ ou ‘ruim’ quando existem milhões de pessoas trabalhando em um monte de empregos diferentes, cada um navegando num conjunto profundamente pessoal de valores, reações, relações e backgrounds econômicos”.

É um fato e isso não vale apenas dessas duas indústrias. Na real, vale pra provavelmente todas, especialmente as que lidam com entretenimento de qualquer tipo. Trabalhar sempre têm seus lados bastante ruins e outros muito bons, tudo depende da narrativa. E tudo bem, também, se focar em algo específico, como Hot Girls Wanted fez com as teens amadoras da Flórida, ou como Um Homem entre Gigantes fez com a NFL.

O problema é que não ficou nisso.

Com o sucesso do filme, o Netflix encomendou para Jill Bauer e Ronna Gradus, diretoras do filme, uma série pra continuar contando aquela história: Hot Girls Wanted: Turned On, que estreou no serviço em 21 de Abril, dessa vez adicionando uma coisa um pouco mais de Black Mirror, mostrando a INTERSECÇÃO entre a tecnologia e a putaria.

Embora tenha aberto um pouco o seu foco, entrevistando uma galera da, digamos assim, “parte boa” da pornografia, a produção deu uma escorregada monstra: pouco depois da estreia, várias pessoas retratadas por lá vieram a público reclamar por se sentirem exploradas pela série.

Effy Elizabeth e Autumn Kayy, por exemplo, só descobriram que estavam no documentário quando um amigo as avisou pelo twitter. “Eu odiei precisar avisar minha família”, afirmou Effy que, embora tenha dito que eles já soubessem do seu trabalho, sentiu que precisava avisá-los. “Eu não tenho problemas em aparecer, mas minha família não merece nenhum backlash por conta do trabalho que eu escolhi pra mim” disse ela em entrevista ao Vocativ.

Kayy afirmou que tentou entrar em contato com os produtores também via twitter, mas recebeu uma resposta dizendo que “nós podemos colocar você em contato com nossa produtora pra eles explicarem o fair use”, uma parada BASTANTE subjetiva que, em resumo, permite que nos EUA materiais públicos possam ser usados por outros.

“A narrativa meio que foi sequestrada, dizendo que nós expusemos trabalhadores sexuais e que os colocamos em perigo por dizer ao mundo que eram trabalhadores sexuais, quando na verdade nós nunca fizemos isso”, afirmou Ronna Gradus à Variety.

“Elas se viram e, no twitter, como elas, usando seus próprios handles, twittaram ‘Meu deus, estamos no Netflix. Meu deus ninguém nos avisou. Meu deus, nós somos trabalhadoras sexuais e aparecemos no Netflix'”, ironizou. “Elas se identificam como trabalhadoras sexuais. E essa é a informação que se perdeu nessa história. Nós não sabíamos quem elas eram. Nós nunca saberíamos, quem assiste nunca saberia, a não ser que elas se identificassem”.

Bom, Ronna Gradus só se esqueceu, como apontou a própria Effy Elizabeth, que “todo mundo está no Netflix”, incluindo familiares, amigos e conhecidos que poderiam identificá-las, ao contrário do Twitter, onde inclusive é possível evitar que certas pessoas vejam seu perfil.

Gia Paige protagoniza ainda um caso que não chegou a ser mencionado, explicado ou retratado. Além de ter mudado de ideia quanto a sua participação no filme depois de ter assinado a autorização para uso de imagem por conta do rumo que a sua entrevista estava levando e isso não ter sido respeitado (“Lembram quando vocês me prometeram cortar minha parte porque vocês estavam tentando me fazer falar sobre minha família e eu me senti desconfortável?” perguntou em seu twitter. “Porque eu lembro. Obrigado por manter sua palavra. Cobras”), seu primeiro nome real foi exibido em um dos episódios e, bom, o nome real talvez seja a coisa mais intocável da indústria pornográfica.

Aí já viu.

Na época de toda essa discussão, a Free Speech Coalition, a associação comercial da indústria pornográfica, enviou uma carta aberta ao Netflix exigindo que a série fosse tirada do ar, afirmando que era “irônico – e perturbador – que uma série mainstream que pretende falar sobre ética trabalhista entre atores de filmes adultos e focar em questões de empoderamento parece explorá-los para seus próprios ganhos”. E completam: “Se as alegações contra esse projeto tiverem substância, os produtores podem estar perpetuando práticas trabalhistas injustas contra atores pornográficos em sua própria produção”

Sem resposta, no dia 16 de maio uma nova carta foi enviada, dessa vez assinada por mais de 50 ativistas, atores, doutores, acadêmicos e organizações de direitos dos trabalhadores sexuais exigindo uma reunião pra tratar dos problemas e pedindo que nomes e quaisquer outras fotos que possam identificar quem não autorizou o uso das suas imagens sejam apagados de alguma maneira.

“A atriz que teve seu nome legal exposto no documentário contra sua vontade, apesar das promessas verbais dos produtores, teve sua família sofrendo assédios desde a nossa última carta. Correspondências com imagens explícitas do seu trabalho foram enviadas para a casa da sua mãe, enquanto familiares em diversos endereços receberam coisas parecidas, além de ela ter sido ameaçada online”, diz um trecho da carta aberta, que pode ser lida na íntegra aqui.

“Ao contrário do que os produtores assumem, nem toda exposição é boa. Modelos têm o direito de limitar os estados ou países onde seus shows podem ser vistos, para que suas famílias, vizinhos, dono dos imóveis onde moram e outros não possam acessá-los ou identificá-los. Quando a série mostra um cliente acessando na área de membros de sites de webcam, várias faces, nomes e outras características identificáveis de modelos estão claramente visíveis. Ao exibir esses materiais para uma audiência internacional, o Netflix os expôs, atravessando os padrões da indústria usados para protegê-los”.

Até o momento, nem o Netflix nem os produtores de Hot Girls Wanted: Turned On responderam à carta ou fizeram qualquer mudança na série. Meio que… tá ficando feio, né?

 

*Por Thiago Borbolla é editor do Judão 

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