A vida no Lado B é uma corda bamba

*Por Alcysio Canette

O seu Luiz é um suburbano típico. Um dos mais novos de uma família de nove filhos, foi morando na casa dos irmãos mais velhos durante a adolescência e a juventude até formar a sua família. Criou-se no Méier e adjacências, o coração espiritual da cidade.

Casou, teve uma filha, trabalhava na White Martins entregando cilindros de gases hospitalares, até que sua esposa demonstrou que algo estava errado. Depois descobriram que ela tinha lúpus e coube a ele tentar equilibrar uma esposa doente e um emprego. Quando ela se foi, o segundo também não durou muito mais.

A dor da perda foi grande demais e sua única amiga virou a bebida. Depois de uns anos, não havia na família quem aguentasse mais essa situação, então sobrou só a rua. Lá, o seu Luiz sofreu demais, teve suas coisas roubadas, apanhou, pagou por pecados que nunca cometeu.

Há um tempo, conseguiram convencê-lo a entrar numa clínica de reabilitação. Ele largou do vício da bebida, voltou a viver com uma irmã e se virava como camelô em um ponto na Dias da Cruz, a rua principal do bairro. As vezes vinha visitar aqui em casa, pegar uma praia em Niterói. Não é das mais limpas, mas quebra um galho. Até se livrar de um olho cego após um transplante de córneas ele conseguiu no ano passado.

Infelizmente, a vida no Lado B é uma corda bamba sem rede e a qualquer momento um escorregão te leva para o mais profundo abismo. Um incômodo no dedão que na verdade era sintoma de trombose de veia profunda e pronto, sua vida fica por um fio no CTI do Salgado Filho. Lutou muito, mas não resistiu.

A história do meu tio-avô parece trágica, mas é uma infeliz realidade para gente demais nesse país. Como ainda tem SUS para cuidar dos mais fragilizados, ainda há uma esperança.

 

*Alcysio Canette é um dos panelista do Lado B do Rio, semanalmente na Central3

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A Lapa é foda

*Por Caio Bellandi

Quando se fala em Rio de Janeiro, o mundo inteiro deve lembrar daqueles pontos turísticos já manjados que não preciso nem citar. Mas é apenas um deles que consegue captar (quase) toda essência do carioca, inclusive no nome original.

O antigo “Aqueduto da Carioca” tem quase 300 metros de comprimento com 17 metros de altura e três séculos de idade. Números grandiosos para uma história imensa. E não estou falando só de Wilson Batista, Madame Satã ou qualquer outro símbolo malandro-boêmio do pedaço de bairro fincado entre o Centro do Rio e o Aterro do Flamengo. Falo de cenas cotidianas que definem um pouco da tal “Cidade Maravilhosa”.

Há três anos passo por ali todos os dia e em quase todos eles assisti momentos que mostravam bem onde eu estava. A primeira cena que tenho registrada foi no início da minha saga pelas ruas da Lapa, na Copa de 2014 (saudades), lotada de turistas e gringos de todos os lugares do mundo. Um grupo de trabalhadores uniformizados – pareciam prestadores de serviço da Oi ou algo do tipo, quase todos negros ou quase negros – almoçava em um restaurante quando colaram a mesa ao lado de uma com duas gringas, nacionalidade não-identificada e começaram o desenrolo, ou a paquera na gíria dos cariocas. Ousadia típica de quem convive com o flerte, seja na vitrine de corpos sarados de Ipanema ou na de sorrisos talhados do subúrbio. Infelizmente, não fiquei para ver o resultado da iniciativa.

Nessa mesma época eu paquerava uma menina que passava por mim quase todo dia na Rua do Riachuelo. Calça legging, pernas de dançarina de forró e pinta de garçonete da Lanchonete Tic Tac, lugar onde parecia exigência estar maquiadas e sorridente. Toda arrumadinha, jeitosa e uma leve marrinha que me conquistava. Chegava a dar umas paradas, jogar um sorriso, diminuir o passo, só pra ver se rolava puxar um assunto. Mas nunca recebi nenhuma retribuição. Acho que faltou a tal ousadia.

Como também não retribuí as olhadas de cima a baixo de um jovem senhor, na casa dos 40/50 anos, cavanhaque e brinquinho, na mesma Riachuelo. O cidadão só faltava babar por mim, virava a cara para me acompanhar, mas nunca pediu meu telefone. Também faltou ousadia a ele.

Em que outro lugar, senão na Riachuelo com Inválidos, quarteirão que parece me perseguir, uma  moradora de rua recusa um sanduíche de uma senhora bem vestida? A da rua, inclusive, talvez seja a mendiga mais bem alimentada de toda a cidade. Sempre que passo por ela, está tomando seu suco com pão no café da manhã ou batendo um arroz com macarrão na quentinha caprichada no almoço. Que bom.

Há muito povo de rua na Lapa.

Um dia, um grupo dessas pessoas sem lenço e sem documento batucava alegremente, às nove da manhã, o sambaço “Ex-amor”, um dos meus preferidos de Martinho José Ferreira, que diz que “nos desgastamos transformando tudo em dor, mas mesmo assim eu acredito que valeu”. E eu, que andava meio sorumbático, abri um sorriso e quase caí no batuque, acreditando que a caravana da vida sempre segue no ritmo de um samba bom que se encontra em cada esquina na Lapa.

Amor e rua, aliás, andam juntos pelos Arcos. E não só nos caninos que acompanham seus donos com ou sem fartura de comida. Deitado na sarjeta e visivelmente alcoolizado, vi um cidadão apontar para uma travesti e se declarar: “Sou vidrado na sua”. A donzela não respondeu. Nem sempre a ousadia basta, mas valeu a tentativa. Quem sabe um dia ele não conseguirá transformar o desejo em realidade, como quando vi um casal de mendigos transar (ou tentar) em pé, debaixo do Aqueduto, por volta das sete da noite, movimento intenso, não só do trânsito, mas também pélvicos.

Mas a cena que resume a minha observação diária e me faz pensar ser a Lapa o microcosmo do Rio foi quando, na coleira, um pitbull esperava sentado ao lado, enquanto o dono segurava a guia e mijava na árvore. Na Lapa, é assim: o dono mija na árvore. O cachorro educadamente aguarda. Acho que é assim no Rio e no Brasil também, provavelmente.

Admito: tenho uma queda irresistível pela Lapa. É o meu lugar preferido porque é onde estão os mais variados estabelecimentos e as mais atraentes pessoas. Turistas, povo da rua, patricinha zona sul e trabalhador do subúrbio, nos bares ou nos depósitos de bebidas, nas pistas de dança ou nas ruas. E às vezes, em todas elas.

É a tequila do “tequileiro” de rua, é a dose de Jagermeister do Rio Scenarium, é a cerveja gelada do Boteco Arco-Íris e o chopp do Sokana. A cachaça dos depósitos, o podrão da tia, o Bob’s do posto. O rock, o forró, o reggae, o funk, o samba e todos os outros separados ou juntos. É o álcool, é o baseado, é o natureba, é o careta.

De dia, a fila dos que têm fome e pressa. Ao cair da noite, o frio dos que não têm teto. Ao sol, a Folha Dirigida e o jornal O Dia, os prédios antigos e cheios de história. À luz da lua, a saga no Odisséia, o pagode no Brazooka, os tambores e os cânticos de paz dos hare krishnas pelas ruas.

A Lapa é uma Fundição de cores e gente dentro de um Circo de emoções. A Lapa é alma do Rio. A Lapa é foda.

 

*Caio Bellandi é jornalista e panelista do Lado B do Rio

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Uma tarde Lado B

*Por Daniel Soares

Em tempos de Flamengo (meu time) itinerante, jogando em todo o país, menos no Rio de Janeiro, eu estava com saudade de estádio. Até compareci à estreia na Libertadores, no Maracanã, no início de março. Muito embora golear em estádio lotado seja ótimo, eu estava também com saudade de um certo tipo de jogo. Aquele meio vazio, no qual podemos rodar pelo estádio, trocar de lado no segundo tempo e ouvir causos arquibancada afora. Daí, como os jogos do Mais Querido na cidade se tornaram eventos concorridos, de tão raros (e caros), resolvi que aquilo que eu procurava só poderia ser encontrado no Lado B do futebol.

Tabela do Carioca escrutinada, decidi-me por Bangu x Boavista, num sábado à tarde em Moça Bonita. Os atrativos eram vários. Do lado do Bangu, Loco Abreu em seu retorno ao Rio de Janeiro. Do outro lado, o “Cariocão All Stars” como bem define o pessoal do Baião de Dois, colegas na Central 3. O goleiro Felipe e o zagueiro Gustavo, ambos ex-Flamengo; o meia Fellype Gabriel, ex-Flamengo e Botafogo; e o técnico Joel Santana, que dispensa apresentações.

O estádio do Bangu fica ao fundo de uma bem cuidada praça, em frente à estação de trem de Guilherme da Silveira. É somente a poucos metros do estádio que dá pra perceber que tem jogo. Uns dois ambulantes vendem cerveja e refrigerantes. Tem uma barraca de pastel e uns dois varais com camisas piratas do Bangu. Ao se aproximar da bilheteria sou abordado por um ambulante, oferecendo ingresso a R$15 (a inteira na bilheteria sai a R$20). São meias-entradas que ele vende um pouco mais caro. Não tenho dinheiro trocado e a diferença em relação ao preço oficial se transforma em uma capa de chuva vagabunda (o céu tem nuvens ameaçadoras e Moça Bonita conta com cobertura apenas nas sociais).

A entrada no estádio não tem catracas. Um funcionário do clube recolhe os canhotos dos ingressos de papel no portão. A partir daí, você está livre para ir a qualquer setor do estádio. Não havia nada que impedisse, inclusive, o acesso à área dos jogadores. Subo a arquibancada principal, junto à social, e tenho uma visão nostálgica. As antigas cadeirinhas amarelas, que habitaram dois setores das arquibancadas do antigo Maracanã (de 2000 a 2010) estão lá. Cadeiras retiradas do estádio pré-Copa foram distribuídas para os estádios pequenos do Rio.

O jogo não está lotado, mas também não é vazio. A parte central está quase lotada. Até um deputado federal com base na região (conhecido por andar sempre com um pitoresco chapéu de cowboy) apareceu para prestigiar. Um popular o reconhece e faz um pequeno protesto: “o povo só toma!!”. O deputado sorri amarelo e seus seguranças observam intimidadores. O popular não se intimida, mas em poucos segundos segue para seu lugar na arquibancada.

O jogo, que é televisionado pela TV a cabo, atrasa alguns minutos. Não havia policiamento em campo. A viatura da PM chega e está tudo resolvido. A bola rola. Dois minutos de jogo e o zagueiro do Boavista põe a mão na bola. Loco Abreu surge, garboso, para a cobrança. No meio do gol. O goleiro não escolheu canto e faz a defesa. Apupos na torcida. Loco Abreu não faz no campeonato o que dele se esperava. “Esse aí veio só pra ter matéria com o Bangu”, resmunga um. “Só quer saber de ganhar dinheiro”, responde o mesmo que abordara o deputado.

O jogo segue entre resmungos e gritos de apoio. O torcedor resmungão é interpelado por uma senhora pelo excesso de palavrões. Ele dá um passa-fora nela, que diz que por causa disso vai passar a torcer pelo Boavista. O torcedor boquirroto ainda encontra tempo para fazer bullying com o filho adolescente vascaíno: “tem estádio, mas não tem time!”. Deve ser muito duro sofrer bullying em casa de um torcedor do Bangu.

No segundo tempo eu me mudo para a arquibancada oposta. É onde se concentra a torcida organizada Bangoró (e sua seção infantil, a Banguaraná). Há ainda alguns torcedores soltos, mais quietos e sóbrios que os do outro lado. Um deles, encostado no último degrau, assiste ao jogo com os olhos da resignação de quem já viu passar por aquele gramado times do mesmo nível dos grandes nos anos 60 aos 80.

Na enésima vez que o lateral direito tentou uma jogada e se enrolou com bola, ele não aguantou e gritou: “centra de primeira! Você sabe que não tem capacidade de conduzir!”. No fim do jogo o Boavista quase marca e a torcida alvirrubra que queria a vitória passa a desejar o fim do jogo para garantir um pontinho. O árbitro apita pela última vez sem que as redes tenham balançado. Não vi gol, mas vi o que eu queria.

 

*Daniel Soares é integrante do podcast Lado B do Rio, na Central3.

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