A ditadura do comportamento padronizado está sendo implantada a passos acelerados e, a essa altura, todos já sabem. Pensando assim, talvez fosse apenas questão de tempo a transposição do padrão Premier League de torcer (?) para lugares menos “civilizados”.
No Brasil, em sua eterna saga de mirar o que há de mais luxuoso no primeiro mundo ao mesmo tempo em que oferece serviços públicos de quinto mundo à maioria de seus cidadãos, o processo é o mais adiantado.
A Copa do Mundo foi apenas o cavalo de troia para entorpecer mentes deslumbradas com os encantos televisivos do futebol europeu e todo o seu padrão de conforto, segurança e outros blablablás.
Agora, parece que o próximo passo do processo de higienização é a sagrada Copa Libertadores da América.
Por conta do declínio técnico provocado por “índices chineses” de exportação de atletas, la Copa vem sendo crescentemente exaltada por suas nuances “místicas”, torcidas ensandecidas, belíssimas e coloridas festas repletas de “foguetes e bandeiras” – como dizia aquela música de arquibancada cada vez mais obsoleta.
Não podemos competir com os zilhões de euros que fazem da Champions League a coqueluche do futebol mundial, beleza. Mas em sentimento e festa popular jamais seremos superados, orgulhamo-nos.
No entanto, parece que esse imenso patrimônio afetivo da competição está ameaçado. Conhecida por sua inoperância e negligência quanto à evolução do futebol sul-americano, a Conmebol agora bate recordes de punição em seu STJD copeiro.
Trata-se de seu Tribunal de Disciplina, que apareceu da noite para o dia (janeiro de 2013) com superpoderes, a exemplo do seu congênere brasileiro. Ele é formado por um advogado vinculado a cada federação nacional. E há uma Câmara de Apelações, mas que só pode ser acionada em casos mais graves.
O problema não é a organizadora do futebol sudaca estabelecer um organismo como esse, afinal, nosso futebol sempre teve brechas abertas para a imposição da lei do mais forte. Além disso, a não suspensão por cartões amarelos acumulados e a ausência de critérios claros para casos gritantes de violência ou indisciplina nunca foram o verdadeiro charme do torneio. Pelo contrário, sempre foram sua fonte de descrédito, especialmente num passado mais distante.
Apesar disso, não é menos problemático que dirigentes conhecidos por parasitar o futebol décadas a fio nomeiem suas “sumidades” do direito esportivo para deliberar, a portas fechadas e sumariamente, quem perde mando de campo, quantos jogos de suspensão determinado jogador receberá, enfim, o que pode e o que não pode.
Indo direto ao ponto, é uma farsa uma entidade comandada por figuras envolvidas em subornos, como já está claro no caso ISL-FIFA, querer impor uma verdadeira disciplina e política de segurança nos espetáculos do continente. Sem contar que não há indício algum de que os componentes do tribunal tenham sido nomeados por critérios respeitáveis.
Assim, vimos uma avalanche de punições absurdas neste início de 2015. Pelo “recebimento” de seu time na final da edição passada, o San Lorenzo enfrenta o Corinthians de portões fechados. Um jogaço é transformado em anticlímax por dirigentes que em outros tempos compactuaram com os valores das ditaduras militares que afligiram o continente.
Já a Universidad de Chile, teve seus torcedores proibidos de irem a dois jogos como visitante, não sei se por jogarem papel picado ou acenderem um pisca-pisca. Por motivos semelhantes, o Nacional decidiu sua (má) sorte na fase prévia sem sua torcida contra o Palestino. Aliás, o jogo foi interrompido pela entrada de gás lacrimogêneo no campo, por conta de conflitos entre torcedores e policiais do lado de fora, mostrando toda a eficácia da punição. Por fim, o Alianza, por uma briga causada por seus torcedores no aeroporto de Lima, jogou a pré-Libertadores contra o Huracán rodeado de concreto frio.
Dentro de campo, vemos algumas suspensões desproporcionais de jogadores, como Guerrero e Centurión neste ano e Luis Fabiano em 2013, quando até outro dia o cartão amarelo dava a ridícula multa de 100 dólares.
Enquanto isso, não sabemos quem de fato está mandando na Conmebol desde a renúncia de Nicolas Leoz. Com o passado nada glorioso da entidade, o cheiro de terra de ninguém é forte. O que, dado o histórico, gera justíssimas suspeitas sobre algumas arbitragens.
Como bem lembrou Leo Ferro, a hipocrisia é grande, pois, na hora de vender o torneio, o banco do país colonizador faz um belo filmete com fumaça, bandeiras, fogos, torcedores em transe pendurados em alambrados. Tudo o que querem nos proibir de fazer.
O horizonte só pode ser o mesmo verificado aqui no Brasil. “Valorizar o produto”, transformá-lo num espetáculo sob medida para os consumistas de plantão e tentar aumentar os preços de tudo, dentro da capacidade de exploração econômica que cada país permitir.
Com todo o apoio midiático, grande parte das pessoas acreditará que, agora sim!, estamos no caminho certo (da Champions League, claro).
Depois, ao sair do estádio comportado e cheiroso, esse mesmo torcedor não encontrará a malha de transporte inglesa, o sistema de saúde alemão, a segurança pública holandesa ou os direitos sociais franceses. E, consumado o golpe, se questionará aonde foi que deixamos a nossa alma.