Estamos na semana entre as provas do Enem, aquele teste que todo ano mobiliza a nação por motivos nem sempre tão válidos. Eu não tenho nada a ver com isso. Fiz a minha avaliação do ensino médio 17 anos atrás, exatamente quando tinha 17 anos. Começarei essas malfadadas linhas lembrando aquela modorrenta tarde de domingo na abafada na Zona Sul da capital pernambucana.
Em 2001, o teste não servia como porta de entrada para alguma faculdade. Houve um boato (sim, naquele passado não tão distante conversa fiada era chamada de boato mesmo e não de fake news. Em Candeias chamávamos de pala de butico) que uma parte da nota valeria certa porcentagem nos vestibular da Universidade Federal de Pernambuco. Não lembro ao certo se isso se concretizou, a prova só valia mesmo para avaliar como era que estava o aprendizado dos alunos do antigo 2º grau.
Lembro quase nada das questões que caíram naquele calhamaço de papel que nos entregaram com um monte de perguntas. Tema da redação também não faço a mais vaga ideia. Recordo que a escolha do prédio onde se faria o exame era definido por ordem alfabética e não pela proximidade da residência. Por isso minha maior lembrança do meu Enem atende pelo nome de Gisele.
A menina de cabelos curtos e um sorriso capaz de me engolir teve que sair de Rio Doce, em Olinda, para responder a um sem fim de perguntas em Boa Viagem. Para quem não conhece Recife, afirmo: é longe. Minha timidez era maior naquela época, e minha memória também. Por isso não tenho muita certeza, mas acho que foi ela que puxou papo comigo. Mas a minha capacidade de decorar as coisas no fim da minha da adolescência fez com que eu conseguisse o telefone dela sem ela me falar.
Explico: No começo do século 21, pasmem, não eram todos os adolescentes que tinham acesso a um telefone celular. Gisele precisou falar com a mãe. Fomos até o orelhão (um telefone público, jovens) e ela ligou para sua residência. Decorei a sequência numérica e na segunda-feira mandei a timidez para as cucuias e repeti os oito números. Ela ficou surpresa com a minha cara de pau. Eu também.
Abismado, abobalhado, atabacado ou abestalhado como na época desse meu affair, esquema, rolo, romance ou ôia que tive com Gisele, fiquei também ao ver os comentários sobre a avaliação do ensino médio deste ano. Tinha de tanta abobrinha e outros quitutes falados sobre a prova que dou meu diagnóstico empunhado o meu diploma de doutor de nada: a maior epidemia brasileira da atualidade é a falta de interpretação de texto.
Ave, Nossa Senhora da Conceição! Quanto choro e ranger de dentes por aparecer questões que traziam textos de Galeano, expressões do iorubá das monas. Aquenda, racha! Direitos humanos, golpe de 64. Tudo isso foi demais para os gremlins da direita se arderem e multiplicarem como quem levou um banho de água fria. Tudo por falta de interpretação de texto.
Vocifero outra verdade do alto do meu conhecimento sobre nada. O danado do Enem não é um prova de português, matemática, biologia, química, ciências da natureza, ciências ocultas ou o escambau que o valha. O coitado é apenas uma prova de interpretação de texto. Por isso deve ser difícil para uma maioria que apoia um saco de cocô na cadeira da presidência a república entender isso. E não está nas entrelinhas. Está na fuça.
Sobre Gisele, se vocês sabem interpretar um texto devem imaginar como se desenrolou essa aventura juvenil. Saudade dos orelhões.