Eu tinha o objetivo de nunca começar um texto com a expressão “na minha época…”. Eu também almejava sair da casa dos meus pais ainda quando fosse muito novo. A primeira meta continuo conseguindo, mesmo quase cometendo esse pecado pessoal no início dessa crônica. Também alcancei a segunda, mesmo que isso tem me custado muito da minha sanidade e poucos arrependimentos.
Com vinte e bem poucos anos peguei as minhas mudas de roupa, devolvi as chaves pra minha mãe, fechei a porta e não olhei pra trás. Não tem nenhum drama aqui. Segui todos os padrões cunhados décadas atrás. Tinha um apartamento financiado, uns estudos concluídos e um casamento a se constituir depois de anos de namoro e noivado. Se isso é o sonho da classe média sobre constituição da família tradicional brasileira e faz parte da formação de um cidadão de bem, eu cumpri todos os protocolos. Em tempo: Deus me livre ser um cidadão de bem.
Convites, igreja, festa, lua de mel, brigas, discussões de relacionamentos e divórcio. Depois de tudo isso num curto espaço de tempo, lá estava eu morando sozinho pela primeira vez numa caixa de concreto de 60 metros quadrados. A partir daí algumas lições foram aprendidas na marra e outras maravilhas foram acontecendo. Mas não se iludam, os perrengues são bem maiores, e mais constantes, do que as glórias.
Desde o período descrito acima até hoje já dividi o teto com mais pessoas do que os dedos de uma mão podem contar. Atualmente, após mais de três décadas fazendo peso em cima da terra, moro pela quarta vez acompanhado de ninguém. Nesses momentos de solidão habitacional você descobre que domingo é o pior dia para não ter ninguém para compartilhar o sofá.
O primeiro dia da semana é rotina. Acordar de ressaca, pedir o almoço, dormir na rede, acordar no final do primeiro tempo do jogo das quatro na TV, algum filme (atualmente Netflix, mas já foi DVD), final do Faustão, o que sobrou do almoço como jantar, gols da rodada no Fantástico e lá se foi o dia do Senhor e do almoço de família. Segunda-feira já chega chutando a bunda e te expulsando do ninho.
Ni Brisant, poeta e camisa 9 dos versos, tem uma lista extensa sobre as maiores dificuldades de morar só. Inclusive fazer listas é um desses malefícios. Mas ele lembra também de um específico que pra mim é prova real que o Inferno está localizado no espaço onde vive apenas uma única alma. Ficar doente e não ter a quem recorrer. Isso é horrível e não desejo essa praga nem para um eleitor de Bolsonaro.
Mas tem um outro drama que, vez ou outra, me dá uns petelecos no cérebro. E se eu tiver uma parada cardíaca durante o sono, quanto tempo vai demorar para alguém dar falta de mim? Quem vai arrombar a entrada do lar e me vê petrificado em cima do colchão? Não avisei a ninguém que quero metade das minhas cinzas no mar de Candeias e outra metade no gramado do Arruda.
Só aqueles que tem a certeza da ausência de vida humana do outro lado da porta sabem o desespero que é colocar as mãos no bolso e perceber que deixou as chaves em lugar desconhecido. A angústia e obrigatoriedade de passar o tempo escutando vizinho ou porteiro do prédio dando mil dicas para que você não seja burro ou displicente o suficiente para que algo parecido não ocorra outra vez.
Não vou me ater aqui aos serviços domésticos. Isso faz parte da parte boa. Limpa quando quiser, sem ter ninguém na sua orelha, e conclui no seu tempo. Qual o problema se a faxina de um kitnet durar uma semana? Não ter que dar satisfações a quase ninguém sobre a hora que sai ou que chega é uma das poucas vantagens de ter o eco das paredes como companhia dentro de casa. Mas é pouco, muito pouco, para berrar aos quatro ventos a alegria de uma falsa independência.