Achando ruim ou bom, vai ter viado

Nem precisa ter muito viado na Globo para incomodar. E nem tem. Compare o número de personagens héteros com o dos homos e veja. Mas basta um. Só a visão de um único de nós que dê sinais de ser o que é já incomoda. Já atrai olhares de ladinho, ataques virulentos. Basta um para que a raiva desperte.

Quem nunca ouviu a expressão “Aqui tá cheio de viado” em meio a uma multidão, quando no máximo tem meia dúzia que foi identificada? Escapou da formatação macho heterozão, seja por uma rebolada ali, uma desmunhecada aqui, um sapato de cor desautorizada, levantam-se as suspeitas e abre-se a rodinha de discussões. É viado, não é, é, não é… É. Vem logo o encaixe: “Esse mundo tá cheio de viado, antes não era assim. Tá demais”.

Sempre houve muito viado. Só não era declarado. Antes a gente tinha medo de segurar a mão do namorado em público. Antes era inconcebível deitar a cabeça no ombro do outro fora dos guetos. Beijar nem pensar. Usávamos cadeados necessários para mantermos a integridade física. Se hoje os ataques persistem, décadas atrás, eram certos e massivamente aprovados.

Viado bom era viado apagado. O que se envergonhava de si e se calava sobre si. Ou o caricato. O que subia ao palco para o desempenho cômico e plumoso. E se fosse um hétero no papel, melhor ainda. Era um herói que abdicava um pouco de sua macheza para botar a bicha no lugar dela. O de bobo da corte.

Não que a discriminação seja culpa dos gays femininos e bem-humorados. Foram instrumentalizados. Roteiristas e diretores nem ligavam se eles eram mais que humor, com sentimentos, angústias, alegrias singelas, qualquer outra expressão humana além do espalhafato. Foram (e são) espremidos, resumidos e usados como molde do ridículo, aprisionados e vendidos na embalagem do anti-homem.

Quanto mais o cara se afasta do rótulo macho alfa, mais risível e agressivo era o tratamento. Assusta e força esconderijos. Vigiávamos munhecas, quadris, voz e expressões. Os nossos, dos amigos e dos namorados. Nada podia lembrar o viado pintoso para não atrair atenção, ojeriza e porrada.

A repressão camuflou aparências, mas não nossos afetos e relações. Continuávamos paquerando, beijando, nos pegando nas boates, nas vielas escuras, transando, namorando, montando casa e dividindo cama. Continuávamos apanhando, sendo expulsos pelos pais, taxados de vergonha da família.

A mídia não se tornou a maravilha das inclusões. Mas mudou. Teve até um rapaz transexual gay na novela das 21h. Teve beijo lésbico em Malhação. Teve transa de dois caras com direito a nudez no horário das 23h. Não é que agora tem muito viado. É que tem mais visibilidade. Pelo simples fato de que lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros existem.

A vida é e sempre foi cheia de viados, mais do que pensa a vã filosofia. Há, inclusive, o enrustido. Que ainda carrega medo e não se revela. Que pratica auto-opressão em nome da reputação. Pode ser teu irmão, teu pai, teu avô. O atendente da padaria, o mecânico a quem você confia o carro ou dentista para quem você abre a boca. Pode ser teu melhor amigo, com quem você conversou várias vezes sobre a rodada do Brasileirão ou daquela balada top com várias gatas. Pode ser teu namorado, teu marido de 25 anos de casamento, teu filho para quem você comprou carrinho e fantasia do Superman.

Quando o mundo era o de antes, achava-se que viado era só longe, aquele de quem se ouvia falar e nem se temia que um dia entrasse em casa. Viado em família de bem e cristã era impossível. Todas blindadas do pecado. No entanto, é nelas que nasceram e nascem.

Hoje, os gays estão perto. O filho hétero tem amigo gay. A filha hétero usa filtro de arco-íris para apoiar a causa. A novela tem galã gay. Pabllo Vittar tem milhares de fãs héteros, queira ou não queira o tribunal facebookiano que a julga.

Têm-se cada vez menos ocultação, menos gay obedecendo às antigas regras ditadas para poder existir. É o que dá raiva em quem não quer saber de viado. Até nos que pagam de bonzinhos, que misturam cordialidade e fingimento, com “Não tenho nada contra gays”, “Gosto deles”, mas sem capacidade para disfarçar o cinismo já embutido no discurso. Acostumaram-se com o privilégio da heterossexualidade tratada como normal, como única sexualidade aprovada, como protagonista absoluta da vida. Não mais. Aí, sentem-se oprimidos, perdidos e revoltados com a balança se igualando.

Vai ter viado, vai ter travesti, vai ter lésbica, vai ter bissexual, vai ter quem dá pinta, vai ter quem é mais discreto, o festivo, o caseiro, o da pegação, o do matrimônio, o unicórnio… vai ter na novela, no seriado, na Globo, na Netflix, na música, no cinema, no shopping, na casa da frente, advogando, medicando, maquiando, comentando, gerando opinião, passeando de mãos dadas, trocando alianças. Reclame ou aprove, vai ter.

 

*Miguel Rios é jornalista, recifense, militante LGBT e filho de Oxalá.

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