Ganso recebe na intermediária, de costas para a área adversária. Com um toque ele domina a pelota girando o corpo e tirando seu marcador da jogada. Levanta a cabeça, o centro-avante sai da área pedindo a bola e todos esperam que ele a receba. Mas Paulo Henrique vê o que ninguém vê: o ponta se infiltrando entre o zagueiro e o lateral. Com um toque por baixo da bola ele faz com que ela suba, ganhando força para impedir o corte do zagueiro ao mesmo tempo em que seu movimento de rotação encurta a trajetória e impossibilita o goleiro de chegar nela. Sem se esforçar, de maneira tão natural e intuitiva, Ganso faz um passe milimétrico parecer fácil, banal. E ele nem precisa ver o prosseguimento da jogada para contabilizar mais uma assistência em seu currículo: por pior que seja a finalização de seu companheiro é impossível perder um gol depois de um passe desses. GANSO! GANSO! GANSO! Todos gritam, todos aplaudem e ele quase se irrita com a babação de ovo por causa de algo tão comum para sua habilidade. Se precisasse ele seria capaz de muito mais.
É isso que Ganso imagina antes de dormir, é isso que ele tenta colocar em prática a cada partida. E só isso.
Quando o time está sem a bola ele não abandona a marcação deliberadamente: ele simplesmente nunca entendeu que ela faz parte do jogo. Ele não deixa de se movimentar para receber por preguiça: ele espera que a bola chegue nele porque aprendeu que é assim que funciona. De certa maneira não podemos culpá-lo, ele sempre ouviu de seus treinadores que é de sua genialidade que o futebol precisa, de sua família que é diferenciado e da imprensa que ele marcará a história do esporte. Na cabeça do Ganso ele nasceu com um dom e é função do mundo enaltecê-lo e agradecê-lo por isso. Quando não acontece, a culpa é do mundo e não dele.
Eu já me enervei, me frustrei e me enfureci com esse pensamento do meia, mas então percebi que grande parte do meu estrato social age da mesma forma. Eu cresci numa escola construtivista, cheia de trabalhos em grupo, espaço para questionamentos e reforços positivos. Acho ótimo que assim tenha sido, credito grande parte das coisas que penso e sou capaz hoje a isso. Mas quando o mundo não reconhece minha genialidade logo de cara minha reação automática é a de ligar o foda-se para tudo e pensar “azar o deles, não mereciam isso mesmo”. Meus amigos passam o dia tendo idéias quase tão geniais quanto os passes que só PH Ganso é capaz de fazer, mas não percebem que se não voltarem pra marcar e não se movimentarem o dia inteiro, nada vai acontecer. Somos uma geração de acomodados: lamentamos que Ganso não esteja na Europa, mas continuamos morando na casa de nossos pais à beira dos 30. Somos uma geração blasé: desperdiçamos nossos dons todos os dias por achar que os projetos para os quais somos convidados não são dignos de nossa participação. Somos todos mimados: não somos nós que falhamos, mas o mundo que é injusto e cego.
Temos razão em odiar PH Ganso: a cada lançamento perfeito que não dá em nada, a cada gol tomado graças ao buraco que ele deixa no meio-de-campo, a cada entrevista culpando o crítico pela crítica, ele joga em nossa cara como temos que mudar de atitude. E não há nada que um mimado odeie mais do que ser confrontado com a realidade.