*Por Caio Bellandi
Quando se fala em Rio de Janeiro, o mundo inteiro deve lembrar daqueles pontos turísticos já manjados que não preciso nem citar. Mas é apenas um deles que consegue captar (quase) toda essência do carioca, inclusive no nome original.
O antigo “Aqueduto da Carioca” tem quase 300 metros de comprimento com 17 metros de altura e três séculos de idade. Números grandiosos para uma história imensa. E não estou falando só de Wilson Batista, Madame Satã ou qualquer outro símbolo malandro-boêmio do pedaço de bairro fincado entre o Centro do Rio e o Aterro do Flamengo. Falo de cenas cotidianas que definem um pouco da tal “Cidade Maravilhosa”.
Há três anos passo por ali todos os dia e em quase todos eles assisti momentos que mostravam bem onde eu estava. A primeira cena que tenho registrada foi no início da minha saga pelas ruas da Lapa, na Copa de 2014 (saudades), lotada de turistas e gringos de todos os lugares do mundo. Um grupo de trabalhadores uniformizados – pareciam prestadores de serviço da Oi ou algo do tipo, quase todos negros ou quase negros – almoçava em um restaurante quando colaram a mesa ao lado de uma com duas gringas, nacionalidade não-identificada e começaram o desenrolo, ou a paquera na gíria dos cariocas. Ousadia típica de quem convive com o flerte, seja na vitrine de corpos sarados de Ipanema ou na de sorrisos talhados do subúrbio. Infelizmente, não fiquei para ver o resultado da iniciativa.
Nessa mesma época eu paquerava uma menina que passava por mim quase todo dia na Rua do Riachuelo. Calça legging, pernas de dançarina de forró e pinta de garçonete da Lanchonete Tic Tac, lugar onde parecia exigência estar maquiadas e sorridente. Toda arrumadinha, jeitosa e uma leve marrinha que me conquistava. Chegava a dar umas paradas, jogar um sorriso, diminuir o passo, só pra ver se rolava puxar um assunto. Mas nunca recebi nenhuma retribuição. Acho que faltou a tal ousadia.
Como também não retribuí as olhadas de cima a baixo de um jovem senhor, na casa dos 40/50 anos, cavanhaque e brinquinho, na mesma Riachuelo. O cidadão só faltava babar por mim, virava a cara para me acompanhar, mas nunca pediu meu telefone. Também faltou ousadia a ele.
Em que outro lugar, senão na Riachuelo com Inválidos, quarteirão que parece me perseguir, uma moradora de rua recusa um sanduíche de uma senhora bem vestida? A da rua, inclusive, talvez seja a mendiga mais bem alimentada de toda a cidade. Sempre que passo por ela, está tomando seu suco com pão no café da manhã ou batendo um arroz com macarrão na quentinha caprichada no almoço. Que bom.
Há muito povo de rua na Lapa.
Um dia, um grupo dessas pessoas sem lenço e sem documento batucava alegremente, às nove da manhã, o sambaço “Ex-amor”, um dos meus preferidos de Martinho José Ferreira, que diz que “nos desgastamos transformando tudo em dor, mas mesmo assim eu acredito que valeu”. E eu, que andava meio sorumbático, abri um sorriso e quase caí no batuque, acreditando que a caravana da vida sempre segue no ritmo de um samba bom que se encontra em cada esquina na Lapa.
Amor e rua, aliás, andam juntos pelos Arcos. E não só nos caninos que acompanham seus donos com ou sem fartura de comida. Deitado na sarjeta e visivelmente alcoolizado, vi um cidadão apontar para uma travesti e se declarar: “Sou vidrado na sua”. A donzela não respondeu. Nem sempre a ousadia basta, mas valeu a tentativa. Quem sabe um dia ele não conseguirá transformar o desejo em realidade, como quando vi um casal de mendigos transar (ou tentar) em pé, debaixo do Aqueduto, por volta das sete da noite, movimento intenso, não só do trânsito, mas também pélvicos.
Mas a cena que resume a minha observação diária e me faz pensar ser a Lapa o microcosmo do Rio foi quando, na coleira, um pitbull esperava sentado ao lado, enquanto o dono segurava a guia e mijava na árvore. Na Lapa, é assim: o dono mija na árvore. O cachorro educadamente aguarda. Acho que é assim no Rio e no Brasil também, provavelmente.
Admito: tenho uma queda irresistível pela Lapa. É o meu lugar preferido porque é onde estão os mais variados estabelecimentos e as mais atraentes pessoas. Turistas, povo da rua, patricinha zona sul e trabalhador do subúrbio, nos bares ou nos depósitos de bebidas, nas pistas de dança ou nas ruas. E às vezes, em todas elas.
É a tequila do “tequileiro” de rua, é a dose de Jagermeister do Rio Scenarium, é a cerveja gelada do Boteco Arco-Íris e o chopp do Sokana. A cachaça dos depósitos, o podrão da tia, o Bob’s do posto. O rock, o forró, o reggae, o funk, o samba e todos os outros separados ou juntos. É o álcool, é o baseado, é o natureba, é o careta.
De dia, a fila dos que têm fome e pressa. Ao cair da noite, o frio dos que não têm teto. Ao sol, a Folha Dirigida e o jornal O Dia, os prédios antigos e cheios de história. À luz da lua, a saga no Odisséia, o pagode no Brazooka, os tambores e os cânticos de paz dos hare krishnas pelas ruas.
A Lapa é uma Fundição de cores e gente dentro de um Circo de emoções. A Lapa é alma do Rio. A Lapa é foda.
*Caio Bellandi é jornalista e panelista do Lado B do Rio