(Carnaval é uma festa colorida, mas o monocromatismo domina as festas pagas)
A memória não ajuda, por isso não consigo me lembrar quem era o amigo de copo. Se iniciava uma noite abafada de janeiro e estávamos encostados na porta de entrada do Bar de Sebastião, olhando o esplendor da Igreja de Santa Cruz. O pátio começava a ficar todo enfeitado para a festa mais aguardada do ano, que chegaria na entrada do mês seguinte. O companheiro, que não recordo, deu a sentença depois de um grande gole:
– Se for pago, não é Carnaval.
Essa frase deveria estar estampada em todos os anúncios de qualquer festa que faça alguma menção à folia de Momo. Pediu pulseirinha, abadá, oferece open bar, por módicos preços estratosféricos, caia fora. É uma cilada já diria um antigo personagem de TV ou mesmo uma banda de pagode dos anos 90. Carnaval, em sua essência, é uma festa democrática, mas estamos no país que finge que sabe o que é democracia.
Pagar pra ver uma banda de rock, uma dupla sertaneja, uma funkeira em um lugar climatizado com a presença de gente “diferenciada” pode ocorrer em qualquer época do ano, e não há mal nenhum nisso. Sair de casa fantasiado da coisa mais absurda que se possa imaginar sem ser julgado por ninguém só é possível durante quatro dias de um ano inteiro. O Carnaval te dar o salvo-conduto ou a licença poética de fazer coisas inconcebíveis em 361 dias. Então seria melhor aproveitar esses momentos únicos ao invés da repetição das mesmas coisas de sempre.
E é nesse período também que se deve aproveitar o pouco tempo e espaço dado para ouvir frevos, antigas marchinhas, aqueles sambas clássicos, uns bons axés. Sertanejo, funk e outras melosidades que estão na mídia maciçamente continuarão lá o tempo todo. Dê uma chance, pelo menos nesse pouco tempo, para as tradições carnavalescas, sejam elas blocos, troças, escolas ou só um grupo de amigos batendo numa lata. Anitta e Safadão chegarão até você de março até dezembro.
O Carnaval é aquele momento que você é mais um na multidão, mas também pode se destacar no meio dela. E essa a graça da coisa. No meio de milhares de pessoas a sua fantasia pode ser a mais linda, original e criativa daquele bloco. Você pode encarnar aquele personagem e viver ele durante a folia inteira. Por outro lado, trancado no seu camarote com pista vip, você será mais um dentro da uniformidade dos abadás. Pode até gastar mais dinheiro mandando customizar a sua camisa-ingresso, mas continuará dentro de uma massa humana monocromática.
A quem vá falar da questão da segurança, conforto e comodidade. Bem, eu penso que perrengues são componentes do Carnaval tal qual purpurina no corpo e sorrisos nos lábios. Estou saindo de casa para cair no passo e não para fazer compras em um shopping. Vai faltar banheiro? Vai. A cerveja vai tá quente? Vai. Vai ter empurra-empurra? Em todos os lugares. Mais repito: É Carnaval e não uma aula de ioga dentro de uma spa. Faz parte contratempos, aproveite eles e seja feliz.
Mas Carnaval, mesmo na rua, não se faz sem dinheiro. É preciso pagar, e bem, os músicos da orquestra ou bateria que estão trabalhando enquanto você cai na gandaia. Em cima disso, alguns blocos de rua caem na falácia da capitalização por meio das suas prévias. E aí repetem o modelo da camarotização. Cobram fortunas para suas festas de aquecimento que seguem a mesma lógica de pulseirinha, open bar e ambiente climatizado.
É possível levantar um dinheiro bom fazendo aquilo que os mais antigos sempre fizeram e ainda utilizando a tecnologia ao seu favor. Rifa, vaquinha, bingo, crowdfunding. As possibilidades são infintas. Quem gosta da sua agremiação, seja lá por qual motivo for, vai chegar junto e dar essa força. Tenha certeza.
Não duvido que seja possível se divertir muito gastando fortunas em poucas horas. Mas aquele sentimento de liberdade, de romper padrões e costumes, mesmo por poucos dias, isso só vai ser possível gastando a sola daquele seu tênis mais velho no asfalto, e possivelmente ele fique por lá mesmo. A certeza é que depois de passar um autêntico Carnaval na rua, você voltará para casa sabendo que custa muito pouco para ser feliz.
*Gil Luiz Mendes é escritor e jornalista e comando o Baião de Dois, na Central3