1982, 2014 e o advogado do diabo

Por Leandro Iamin

A Seleção Brasileira de 1982 é, para mim, pelo que representou, a grande equipe da história de nosso futebol, e eu tenho que escrever isso logo de cara pois vou, em meu texto inaugural neste blog, fazer o papel de advogado do diabo. Ou de advogado dos nem-tão-diabólicos-assim.

1982 não foi só um time de futebol. Foi um momento crucial de nossa história política recente. O Brasil estava afundado no colapso econômico que despertou a massa para o fim do regime militar (sim, estou afirmando que a falta de dinheiro incomoda mais a massa do que uma ideologia vigente da qual se discorda). Aquele time de futebol metaforizou uma expressão artística que por anos foi negada em um Brasil passivo diante de uma ditadura que proibia o canto, a dança, o grito, o colorido e o diverso. Pela média de idade do time de 2014, posso concluir que estes jogadores de agora são os filhos da abertura política do Brasil, pós 84.

É um outro Brasil. As eleições de outubro polarizam as pessoas pelo estômago, não pelo cérebro, pela raiva e não por real interesse nas questões que envolvem o governo de um país tão múltiplo como este. O brasileiro comum, médio, trabalhador, mudou tão quanto o futebol nesse mesmo período. Ganhou pressa cega, perdeu cadência e romantismo, outros ficaram mais cafonas e menos humorados, a redondeza urbana rejeita a harmonia da vida dividida, anseia a competição social, não aceita nem quer aceitar o canto, a dança e o colorido do diverso. E o futebol se transformou na máquina e no palco que sabemos.

O Brasil de 82 tinha seus craques atuando no país, você irá me dizer. É justo, isso estreitava os laços. E eram craques MESMO. Porém, não eram anjos que queriam atuar perto da gente por prazer. O futebol pagava e manipulava menos grana, e foi justo nessa época que brasileiros começaram a fazer as malas numa crescente imensa. Deste time de 82, boa parte foi buscar dinheiro e futebol noutro continente. Estariam no exterior, todos eles, em 2014. Errados? O mundo enlouqueceu e levou o futebol, não os jogadores, a um estado de esquizofrenia midiática, estética, econômica. Os atletas só jogaram o jogo que tinham pra jogar. Eu lamento dizer, mas as mulheres que eu paqueraria de um jeito em 82, se eu fosse vivo e adulto, eu paqueraria de outro em 2014. O homem dança conforme a música e remar contra a maré sempre será a atividade de 1%, não de 99%. Eu, que muitas vezes estou no grupo do 1%, acho petulante condenar os 99%. E por falar em 99, basta olhar os dois “9” da seleção, Fred e Jô, que atuam no Brasil e mesmo que façam gols e levantem taças, não são valorizados no país, vivem como alvo de desconfiança. Falta-lhes o Chelsea, ou nos falta coerência?

O que eu quero dizer, objetivamente, é: os jogadores do Brasil que vão para o Mundial podiam fazer o quê de tão diferente do que fazem? Voltar no tempo não é uma opção para eles. Copa das Confederações. Rival na semifinal, vitória com drama, Neymar manda beijinho em resposta a provocação em um escanteio. Em 82 seria considerado drama e picardia em vitória épica. Na final, o melhor time do mundo apanha de forma categórica e a torcida, de perfil abonado que escancara o que se tornou o futebol, joga junto com coração e emoção reais. Dante, contra a Itália na primeira fase, peitou toda a delegação dos caras, ficou maluco por nada, com sangue nos olhos. É um time que joga o jogo, e sente o que faz.

O Brasil da Copa de 82 sofreu contra o forte, foi ok contra o médio e detonou o fraco na primeira fase em que ganhou de todos. Nos dois clássicos da segunda fase, ganhou de um, perdeu de outro, eliminado. No placar, campanha normal. Nas imagens, golaços, estilo, classe, alegria. Veja o terceiro gol brasileiro contra a Espanha ano passado, o gol derradeiro da Copa das Confederações. Pegada pra roubar a bola, troca de passes linda e rápida, conclusão precisa, uma pintura de lance. O time de 82 assinaria, como assinaria o gol de Neymar, com o pé ruim, no primeiro tempo.

Não é exatamente o time de 82 o foco da saudade. É o que estava por trás da vida que se levava. A vida que se leva hoje é muito carregada de descrença, cheia de “já vi pior”, “já vi melhor”, o “não gostei” dá mais impulso de ação do que o “gostei” e a emoção é sempre chamada de mentirosa, exagerada, ingênua. A seleção que o Felipão montou é um time interessante e interessado. Que respeitou e vestiu a camisa no fato e na filosofia. Oscar não vai ser Zico, Hulk não será Éder, e eu vou poupar Neymar e sócrates, os dois ícones mais desgastados destas duas gerações, de comparações: eles, tal qual o próprio futebol de ontem e de hoje, são cada vez mais metáforas de um desejo do que alvos de análise serena.

Ou você tem dúvidas que o Sócrates seria severamente criticado pelo seu jeito de ser e jogar, se fosse, hoje, um jogador de 25 anos?

Ao time de 82, a reverência, a lembrança imortal daqueles 5 jogos e daquele tetra que não veio. O Doutor de Bola disse anos depois à Revista Caros Amigos: “Ganhar não tem importância nenhuma. O importante é ser feliz”. Desejo esta felicidade a quem só enxerga defeito nas coisas ou só se satisfaz quando tudo está certo e perfeito. Ao time de 2014, que não contará com a mesma torcida apaixonada e nem terá o mesmo contexto a seu favor, fica o crédito pelo que fez até aqui, e a reflexão para alguns, se a tristeza do futebol moderno que se joga pedindo atenção no tapete de nossa sala está nos levando a atacar o alvo errado.

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Leandro Iamin é jornalista e editor do blog da central 3, além de apresentar os programas O Som das Torcidas e De Chuá.

 

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