A rejeição aos Direitos Humanos é posição frequente no cotidiano brasileiro. Em que pese a pacífica aceitação no meio acadêmico e o profundo debate no âmbito interno dos movimentos sociais, o assunto dificilmente subsiste em contextos populares banais da vida como um ponto de ônibus, uma padaria ou almoço em família sem que se choque contra um ângulo de visão depreciativo, que os reduza aos “direitos dos bandidos”, e seus defensores a meros “protetores de bandidos”.
Importante estudo recente, com foco na opinião da população da cidade do Rio de Janeiro, revelou que 56% dos cariocas acreditam que os Direitos Humanos só defendem bandidos, enquanto 73% acreditam que os Direitos Humanos atrapalham o combate à criminalidade. São dados ilustrativos de um quadro cultural fortemente estabelecido de recusa à proteção de direitos e pessoas em nome de uma cruzada contra a figura social do “bandido”.
Em exercício de respeito ao debate, a composição do ideário popular faz despertar alguns necessários questionamentos relativos às premissas dessa cultura de negação, às consequências, ao que são e ao que não são os Direitos Humanos e, preliminarmente, às origens dessa cultura de repulsa.
Os adventos históricos que contribuíram para a tradição contemporânea ocidental de estabeler cartas políticas que enunciam direitos das pessoas têm como importante marco os movimentos de ruptura com o absolutismo monárquico então vigente na Europa, destacando-se a Revolução Francesa ocorrida no século XVIII, que documentou seus princípios através da “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, assentada em exigências de abstenção do Estado frente aos espaços dos direitos de liberdade, civis e políticos.
Para fins de comprometimento com uma abordagem mais crítica do que propriamente encantatória dos Direitos Humanos, se faz necessário pontuar que a história da enunciação de direitos se confunde, necessariamente, com a história das violações de direitos. Assim como a Declaração de origem iluminista padecia de um certo descompasso entre a intenção declarada de pregar a liberdade dos seres humanos e as suas reais pretensões de sedimentar o ideário liberal de abstenção do Estado em benefício da burguesia então ascendente, o Brasil, ao sentir os primeiros ventos da tradição jurídica do liberalismo, adotou sua primeira Constituição, em 1824, ainda no período imperial, sem fugir ao constrangimento de enunciar o direito à liberdade em paralelo ao vigente modo de produção escravista.
As declarações de direitos dos diferentes períodos históricos, bem como das distintas matizes ideológicas, do liberal ao social, sempre esbarraram no desafio de tornarem-se algo além de mera folha de papel. A crise de inefetividade dos direitos enunciados exerceu, inclusive, função preponderante para o enfraquecimento da Alemanha da República de Weimar, alicerçada sobre as bases expressas de sua Constituição de 1919, importante documento histórico declaratório de direitos sociais como educação, cultura, previdência e regulação das relações de produção e trabalho. A instabilidade política alemã, contudo, permitiu sucumbir a República e emergir o regime totalitário nazista, em consequente cenário de atrocidades sem precedentes na história da humanidade.
O período pós Segunda Guerra Mundial marca um novo parâmetro dos Direitos Humanos: a busca pela internacionalização. A partir de então, são criadas organizações como as Nações Unidas (ONU), uma Declaração Universal de Direitos Humanos é elaborada a fim de estabelecer um patamar mínimo de direitos básicos sem os quais não se pode conceber o desenvolvimento humano, os Estados passam a aderir a compromissos sob a forma de Tratados para garantir direitos, e, ainda, são estruturados tribunais internacionais destinados ao julgamento de países que não respeitem os direitos de seus cidadãos.
Tratou-se, à época, de um movimento de vanguarda que contribuiu para a sedimentação dos Direitos Humanos enquanto modo de imposição de limites do poder dos Estados, os consolidando como direitos dos indivíduos contra a arbitrariedade estatal. A ciência do Direito, neste contexto histórico, viveu período de intensas transformações teóricas, pregando a vinculação jurídica – e não mais meramente retórica ou política – das declarações de direitos e das Constituições, centralizando o valor da dignidade humana como parâmetro condicionante de toda a produção a legislativa dos países, da interpretação das normas e da atividade de todos os seus operadores, incluindo os governos.
O Brasil, por sua vez, passava ao largo das construções sobre Direitos Humanos. Nos anos 30, o Estado Novo, perpetrado por Getúlio Vargas, baseou-se em pretexto anticomunista, documentado, inclusive, na própria Constituição brasileira de 1937, para atacar de forma imoderada as instituições republicanas e as liberdades públicas. Fechamento do Congresso Nacional, concentração dos Poderes Legislativo e Executivo nas mãos do chefe de governo, ingerência sobre o Poder Judiciário, domínio estatal dos sindicatos, dissolução dos partidos políticos, nomeação de interventores nos Estados, e, em especial, fortalecimento de um aparato policial dirigido às perseguições, torturas e mortes são alguns dos exemplos de práticas subterrâneas características do período em relação a opositores.
Enquanto o mundo pós Segunda Guerra convergia para a eleição de parâmetros mínimos de civilidade, fato em torno do qual os blocos socialista e capitalista passaram a se debruçar – ainda que suas contribuições não se dissociassem de suas respectivas pretensões de globalismo – o Brasil, por mais uma vez, fracassava em tentativa de restabelecimento de uma República e caía em novo golpe de Estado em 1964.
Mais do que manter o Brasil alheio aos relevantes Tratados Internacionais produzidos a partir da década de 60, o governo militar brasileiro estabeleceu uma forte cultura de repressão interna aos discursos que se identificavam com as agendas debatidas internacionalmente sobre os Direitos Humanos. Seguindo essa tônica, as ligas camponesas, o operariado urbano, a teologia da libertação, a luta pela anistia política são alguns dos exemplos de movimentos sobre os quais recaía o rótulo de “subversivos”, ainda que o termo que não se restringisse ao campo do controle repressivo político de opositores, mas, sim, mais amplamente, de um campo de controle moral da população.
Quando, em 2008, por ocasião dos 40 anos da edição do Ato Institucional nº 5, documento símbolo do ápice repressivo da ditadura militar, o instituto Datafolha pesquisou a memória dos brasileiros, 82% afirmaram desconhecer o significado de sua sigla. O resultado guarda certa coerência com aqueles recentemente observados relativos aos Direitos Humanos. Ambos são frutos de políticas de Estado que produziram impacto muito consistente na formação social brasileira, contra as quais nosso projeto educacional pós ditatorial se revela, tanto quando nossa política institucional, absolutamente distante de proporcionar uma real ruptura com valores antidemocráticos.
Se, por um lado, a construção dos Direitos Humanos no mundo é longa e paulatina, a cultura de repulsa a esses valores na sociedade brasileira também consiste em projeto de longa sedimentação, a ponto de conflitos modernos relevantes, a exemplo dos elevadíssimos índices de homicídios de jovens negros pobres das periferias, muitos dos quais praticados por agentes do Estado, serem ainda relegados ao espaço social da subversão.
Como condição agravante ao quadro, a opinião popular, reforçada pelos meios de comunicação, legitima uma política de segurança pública de “combate à criminalidade”, baseada na lógica de enfrentamento e de tratamento da população das áreas mais pobres e vulneráveis como potencial inimiga de guerra, contra quem se admite uma série de violações de direitos garantidos e de compromissos assumidos pelo país em Tratados Internacionais. O sucesso retórico do discurso, verificável pela quantidade de ocupantes de cargos eletivos que nele se apoiam, é inversamente proporcional aos resultados apresentados, haja vista o crescimento das práticas policiais ilegais, como se exemplifica o contexto do Rio de Janeiro, cujos agentes estatais são responáveis por 25% dos homicídios praticados na capital do Estado em 2017. Fosse uma política bem sucedida, os 10 anos de crescimento da violência estatal apontados no estudo deveriam culminar em maior sensação de segurança da população. Ao contrário, ensejaram Intervenção Federal – diga-se, em mais uma jogada política com apoio da população.
Mesmo governos amplamente impopulares, que fracassam em políticas públicas nas mais diversas áreas, parecem desfrutar de carta branca da opinião popular para agir fora das margens legais quando se trata de políticas repressivas. Como se a polícia sob controle de um governo não fosse sua responsabilidade, como se agentes públicos de alguma espécie não pudessem se submeter a limites legais, ou como se a lógica irracional populista de “combate” não se prestasse a ser o combustível de uma guerra na qual necessariamente morrerão agentes de Estado e população civil.
Verificamos, então, um estágio de retroalimentação: o Estado se propõe ao enfrentamento da criminalidade, a opinião pública, expressa sem a absorção das lições históricas, respalda atuações ilegais, os índices de violência se elevam, enquanto, novamente, o Estado prossegue em busca de soluções repressivas que recairão sobre parcela determinada da sociedade, com amparo da voz popular. E assim por diante. Sem afetações positivas dos indicadores sociais. Em última análise, o desprezo pelos Direitos Humanos se traduz em amplificação da violência contra as camadas mais vulneráveis da sociedade, que, após serem alijadas de pressupostos básicos de uma vida digna, se encontrarão marcadas pelo rótulo cínico dos “bandidos”, dos “subversivos”, que as colocará sob a mira das armas do Estado, que dispararão sob aplausos em praça pública, num grande espetáculo de atraso civilizatório.
- RODOLFO ZAGO é advogado militante pelos Direitos Fundamentais