Texto publicado após o episódio com o Tinga no Peru, mas que continua atual
Todo texto que propõe raciocínios fora do padrão “Racismo é a pior coisa do mundo –> órgãos responsáveis pelo futebol tem que agir –> toda punição é válida” precisa de um aviso para ser lido. Aqui vai o meu:
O racismo é detestável, inaceitável e me causa profunda tristeza e vergonha como membro da sociedade e animal (ser humano) que o pratica, mas eu não acho que a solução passe por sanções da CBF, CONMEBOL, FIFA, etc.
Aviso dado, gostaria de provocar a discussão de qual é o problema do racismo. “Discriminar alguém por causa da cor da pele” é o ato que nos causa náusea, mas o problema está nas consequências dele: o alvo do insulto se sentir mal e envergonhado por ter nascido negro e aqueles à sua volta esperarem (no sentido de “antecipar” e não necessariamente de “gostar”) que ele se sinta assim. O fato de alguém acreditar que alguma “raça” seja inferior, externalizar isso e tentar, assim, diminuir outro ser humano nos deixa putos, arrasados, deprimidos, etc.
A partir disso, eu acredito que o problema do racismo só estará resolvido quando chamar alguém de “macaco” for tão ofensivo quanto chamar um branco de “leitoso”, alguém que usa óculos de “quatro-olhos”, etc. Quando for algo infantil, bobo, sem qualquer sentido. Quando uma pessoa chamar o outro de macaco com o intuito de ofender e todos ao redor pensarem “quantos anos tem essa pessoa?”, quando sentirem pena do insultor e não do insultado, quando rirem ao saber de uma situação dessas, poderemos dizer que vivemos num mundo sem racismo.
É claro que enquanto não chegamos lá temos que agir contra casos de racismo, como os que vem acontecendo este ano no futebol brasileiro/sulamericano. Mas vejo dois motivos para procurarmos soluções mais inteligentes do que multar e tirar mandos e pontos das equipes cujas torcidas proferirem insultos racistas.
O primeiro é que cria-se um tabu que somado ao descrédito dos órgãos dirigentes corre o risco de ser visto como algo divertido, valente e corajoso de ser quebrado. Ao invés de se discutir (a falta de) fundamentos daquela ação e porque aquilo é errado, proibe-se e pune-se, criando mais raiva que consciência. Como a CBF não é vista como representante da sociedade (e muito menos expressão desta), também não se passa o recado de que todos acham aquilo errado, mas sim de que não pode e pronto. Assim, deixamos de nos aproximar daquele mundo onde acreditar no racismo é visto como atraso mental e passamos a torcer para que ninguém mais toque no assunto para não termos que lidar com ele.
O segundo é que cria-se um precedente que dificilmente encontrará argumentos racionais e objetivos para não ser aplicado a outros casos. É muito fácil para um grupo anti-homofobia pleitear que determinado clube seja punido porque sua torcida chamou um jogador adversário de “viado”, o que pode até ser legitimo mas não é consenso como o racismo (e dizer que isso é da cultura do futebol ou que a menos que o jogador seja homossexual assumido não tem problema não são argumentos convincentes). Um grupo de defesa dos valores gaúchos também poderia equiparar gritos de “gaúcho viado” a ofensas contra nordestinos (que na nossa cabeça são completamente diferentes, mas dificilmente o seriam perante a lei) e pedir punições a rodo. O raciocínio se estende a praticamente qualquer grito que se ouça num estádio, seja no Brasil ou na Europa, e no fundo só mostra como ao tentarmos objetivar nossa moral criamos consequências que vão contra ela.*
Como combater o racismo sem criar um tabu nem criar um monstro que se vire contra o futebol depois? A resposta talvez pareça utópica, mas desacreditá-la também é desacreditar no mundo em que pretensamente cremos e queremos salvar: aqueles que acham que uma prática é inaceitável devem demonstrar isso e juntos fazer com que ela seja inviável. Um jogador vítima de ofensas racistas deve ter o apoio de todas as torcidas para que fique claro que chamar alguém de macaco não o faz fraquejar, mas sim fortalecer, um time cuja torcida agiu de maneira preconceituosa tem que ouvir “racista! racista! time de racista!” quando jogar fora de casa. Uma torcida pode ir toda pintada de negro em apoio a seus jogadores, jogadores podem parar partidas caso gritos racistas sejam ouvidos, clubes podem adotar diversas ações para combater o problema e jornalistas podem usar seu espaço para demonstrar que ser racista no final das contas é extremamente bobo. Algumas dessas instâncias já são usadas, mas todas tem que entrar em ação juntas e a cada caso aumentarem de intensidade, para que a sociedade demonstre que aquilo não é aceitável, sem usar órgãos que não tem mais credibilidade nem pra fazer um calendário.
Desse modo, o racista entenderá que o mundo está em desacordo com ele e não que a CBF quer proibí-lo de se expressar (e a CBF proíbe tantas coisas que são legítimas e deveriam ser incentivadas que ficaria difícil distinguir os casos) e estará mais disposto a ouvir e mudar de atitude. E se a sociedade futebolista achasse errado chamar os adversários de viado provavelmente tal atitude se tornaria inaceitável, enquanto “carioca vagabundo” seria aceito caso essa fosse a opinião geral. É uma ideia com raízes anarquistas que num mundo cada vez mais ligado ao que é oficial (em oposição ao que é real e espontâneo) talvez soe estranha, mas no final é só uma retomada a como as coisas funcionariam se os órgãos oficiais não tentassem emular tal processo.
* acredito que nossa moral é subjetiva, mas procuramos critérios objetivos para justificá-la. Como citado, aceitamos xingamentos a gaúchos, mas não a nordestinos. Poderia se argumentar que esses são minoria e aqueles não, mas aceitamos xingamentos homofóbicos num estádio. Um argumento possível é o de que aquilo faz parte daquele ambiente, mas isso abriria precedente para peruanos dizerem que por lá chamar de macaco faz parte do ambiente futebol. Uma saída seria dizer que isso é tão ofensivo que não se aceita que algo assim exista (o que já seria um pouco autoritário, mas tudo bem), mas é público que os rivais do Liverpool chamam seus torcedores de “favelados que comem ratos” e ninguém se ofende a esse ponto com isso. Enfim, quanto mais tentamos definir regras objetivas mais nos afundamos em argumentos ad hoc que dificilmente param em pé. Outro exemplo, ninguém é a favor do estupro, mas muitos achavam normal gritar para Silvia Regina: “juíza vagabunda, eu vou comer sua bunda e sua buceta, ê, ê, ê, ê, ê, ê, vou chupar suas teta”.