Sou um torcedor tradicional. Gosto quando meu time ganha, não gosto quando perde. Nas derrotas eu evito lembrar que meu time perdeu, por isso me mantenho alheio às notícias e comentários sobre a partida. Nas vitórias faço o contrário. Estendo no tempo o prazer do resultado positivo, consumindo uma dose a mais da programação esportiva que a imprensa nos oferece.
Foi o que fiz na manhã de 20 de abril do ano corrente. Na véspera, o Internacional havia eliminado o Corinthians nos pênaltis pela Copa do Brasil em um jogo sufocante e carregado de importância para uma torcida que andava de cabeça baixa, recém rebaixada para a Série B.
Sofremos um gol logo no começo, mas surpreendentemente não nos abalamos. Fomos ao ataque, meio de qualquer jeito, é verdade, mas com uma paciência inédita para estes tempos de agonia. Quase no final do jogo o uruguaio Nico Lopez nos arrumou o empate, para Marcelo Lomba ser o herói da classificação nos pênaltis. O grito ainda está preso na garganta: quem tem criança pequena em casa sabe do que falo.
Naquela manhã, procurei esticar o deleite da classificação sobre um time que havia se tornado um rival colorado nos últimos tempos, por razões que não vêm ao caso. Liguei então no Redação Sportv, a melhor mesa redonda da televisão e eventual companhia das manhãs de trabalho. Programa feito desde o centro do país, é claro que falava mais sobre o time eliminado do que sobre o time classificado, mas quanto a isso já estamos acostumados, ainda que seja estranho veículos que se pretendem nacionais tratarem praças como Rio Grande do Sul, Bahia ou Pernambuco como se fossem longínquos departamentos da Venezuela.
Mas o estranhamento maior não vinha daí. Os comentários davam a impressão de que eu havia visto um jogo diferente. Os comentaristas estavam muito preocupados com a baixa qualidade técnica da partida, principalmente do lado corintiano, que teria abdicado de jogar após fazer o gol. De fato, não havia sido o jogo de muito brilho técnico, mas parecia que só aquilo não contava toda a história sobre a noite no Itaquerão.
Segui em frente. Talvez ao meio-dia, na Rádio Guaíba de Porto Alegre, eu ouvisse comentários mais próximos ao jogo que eu, pelo menos, havia visto. Mas qual não foi minha decepção quando percebi que os comentaristas davam muita importância ao número de vezes que o Inter levantara bolas na área e o quanto isso era preocupante em termos de mecânica de jogo e não sei mais o quê. Para eles, o jogo também havia sido ruim.
Errados eles não estavam. O Corinthians de fato recuara de mais e, do lado do Inter, a demissão de Antônio Carlos Zago um mês depois confirmaria que o time não vinha bem. Os dados do Footstats mostram que o Internacional levantou 43 bolas na área naquela noite de abril, um número realmente alto e indicativo de um problema que se arrastou ao longo da temporada. Porém, para efeitos de comparação, a final da mesma Copa do Brasil entre Flamengo e Cruzeiro teve mais bolas na área e menos finalizações a gol. De qualquer forma, ninguém discorda que o jogo do Itaquerão esteve longe de ser um dos melhores da temporada. A questão é outra: o jogo havia sido apenas isso?
Não pense que eu esperasse exaltações à classificação colorada que agradassem meu coração torcedor. Nada disso. O que me impressionou naqueles dias foi a redução da partida, carregada de significados e simbologias, ao que diziam os scouts.
Um time recém caído à segunda divisão havia eliminado aquele que se tornara um grande rival nos últimos anos, com provocações inclusive institucionais de parte a parte. O jogo pode não ter sido belo, mas foi uma partida empolgante para os envolvidos e consideravelmente interessante para quem assistia de sangue doce. Eis uma beleza do futebol: um jogo tecnicamente ruim pode ser um grande acontecimento. Nos programas esportivos, porém, tudo isso foi reduzido a um pebolim com número excessivo de bolas alçadas à área.
O movimento de oxigenação da análise esportiva é inegavelmente positivo. Não há mais como acompanhar um jogo sem uma boa análise que nos ajude a enxergar os movimentos e as estratégias de cada time. O comentário fanfarrão e desinformado é cada vez mais coisa do passado. Como ninguém está livre de crítica, faço uma modesta a esta ótima geração de comentaristas: na ânsia de se afastarem da geração anterior, estão fazendo uma análise tão limitada quanto a que desejam combater.
A linguagem hermética é apenas um aspecto dessa ânsia pela diferenciação. Parece que é obrigatório falar em time alternativo no lugar de time reserva, um time que troca passes virou um time associativo e todo e qualquer drible é transformado numa quebra da linha defensiva. O uso de palavras-chave, que em muitos casos mais confunde do que explica, parece ser um meio de reforçar a identidade e mostrar a que turma o comentarista pertence. Outro aspecto que mostra como é perigoso esse desejo por parecer diferente é o apego exagerado a conceitos mesmo quando a realidade acaba desmentindo as teses. Renato Portaluppi fez o Grêmio jogar o melhor futebol da América do Sul, mas ainda há quem tenha vergonha de admitir. Conceitos são importantes, mas é importante não ignorar os fatos.
Essas questões foram debatidas ao longo do ano por jornalistas esportivos e é sempre saudável uma autocrítica, mas me parece que a discussão ficou muito centrada na linguagem mais adequada para se comunicar a análise tática. Além de soar um pouco arrogante, na medida em que o problema seria apenas o de fazer a plebe entender os conceitos, reduzir a discussão à linguagem não chega àquele que, na minha modesta opinião de espectador de futebol, é o ponto central do problema.
Voltando à manhã seguinte à classificação do Inter , o ponto central da discussão é que talvez os analistas táticos estejam produzindo uma visão parcial do jogo, ou vendo menos quando acham que estão vendo mais. É claro que futebol é um jogo tático e para analisar o que acontece num jogo é preciso saber de tática. Só que no futebol também jogam a pressão da torcida, os gramados ruins, o estado de espírito dos jogadores, os vestiários, os gabinetes e mais fatores do que supõe nossa vã prancheta tática. Mais importante que isso: futebol não é só o que acontece em campo, mas os significados do que acontece em campo. Há histórias em jogo, tradições à prova, simbologias a serem preservadas ou recuperadas, rivalidades que dão peso muito maior ao resultado de campo.
Se um alquebrado Internacional consegue eliminar o Corinthians fora de casa, eu não quero exaltações à superação colorada. Mas não queiram que uma fria análise de números e movimentos de jogadores explique tudo o que aconteceu em campo.
*Daniel Cassol é jornalista fundador do Impedimento e do Puntero Izquierdo, e torcedor da parte vermelha de Porto Alegre