Medo da própria torcida é o que o cara gay vive em um estádio de futebol. Medo que a descubram e medo de todo rosário de agressões desfiado após a descoberta. Time de viado é o do lado de lá, grita o lado de cá. Do lado de cá só se aceitam guerreiros, machos, marrentos, aquele rol de palavras que, de ouvir, são de imediato coladas à heterossexualidade masculina. Nada que lembre coisa de mulher é permitido, que vira logo viadagem, que desmerece, é a pior das ofensas, desperta a vontade de resolver no murro.
É o que o palmeirense William de Lucca viveu até não aguentar mais. Mandou a real: “Tem viado no Palmeiras também, sabiam?” Olha que verdade dolorida de ouvir. E parte da sua torcida passou a ameaçá-lo de morte. “Viado aqui não!” A mesma frase que a torcida corintiana carregou em uma faixa, quando Emerson Sheik postou uma foto dando um selinho no amigo.
“Viado aqui não!” é o berro geral nesse jogo pré-estabelecido em que os machos se veem mais unidos e mais fortes. Como que acorrentados ao ideal de superioridade. Agora mais que nunca. Perceberam que não é bem assim, que nunca foi bem assim. Entre tantos torcedores e tantos jogadores, impossível nunca o manto sagrado ter sido usado por gays, quem sabe, até ídolos.
Viado lá e cá sempre houve. Basta pesquisar sobre torcidas organizadas LGBTs pelo Brasil. Mas geral faz de conta que não, que eram excentricidades isoladas e desconsideráveis, que futebol é coisa de macho, só de macho, unicamente de macho. Sabem que houve árbitro gay. Sabem que tem aquele amigo gay que vai ao jogo junto. Sabem que tem aquele gay famoso que postou foto comemorando o título. Mas geral faz de conta que não.
Geral quer manter o viado no espaço do insulto. Continuar com o grito de “Todo viado que eu conheço é… (o lado de lá)” quando tem um bocado de viado do lado de cá. Geral quer ofender e desconhece palavra melhor para o serviço.
Aí surge quem bote a boca no trombone da rede social e diga: “Tem viado aqui com vocês. E viado não é ofensa. Não é ser pior que macho não”. Geral bugou.
Chamar de viado depende da intenção, do sabor que se dá à palavra. Já fui muito criticado por usar “viadagem”, “bicha”, “miga” para me referir a gays. Entendo. Sempre é um debate áspero. E é para ser mesmo. São palavras petardos. Moldadas para bater e tirar sangue. Cunhadas em sua origem para nos humilhar e reduzir. Mas linguagem, como sempre defendo, é contexto.
Coloque uma entonação de voz depreciativa e até as corretas, as aceitas, “gay” e “homossexual” ganham um tom pejorativo. “Não se junte com aquele gay”, “Esse povinho homossexual quer dominar o Brasil”. Tem ou não tem desprezo e preconceito?
Viado sempre assustou gays brasileiros, vai continuar assustando, por não ser a palavra em si que dói, mas como vem recheada. Até a grafia ficou especial. Ganhou um “i” no lugar do “e”, se solidificou assim, para mostrar, mesmo que inconscientemente, que o gay é, digamos, ainda menor que o bicho.
Viado é a macheza ao contrário, uma ameaça à estética e ao comportamento esperado de quem nasce com um pênis. Traz uma rebeldia.
Acompanhe: Viado reforça que no topo do ecossistema está o macho e a cesta de produtos que ele representa. Macho: superior, valente, determinado, masculino. Viado: desonroso, covarde, desprezível, risível, feminino. Quando se elogia com “macho” se celebra os papéis bem definidos e aclamados de macho e fêmea. Quando se xinga com “viado” se faz o mesmo. Ambas as situações mantêm o status quo e aplaudem o preconceito. É a homofobia gritando gol.
É o hétero no protagonismo, que se dá um deslize não escapa do “Huuuuuummmm!” da desconfiança. É o gay nos bastidores, na autopatrulha, passando atestado de masculinidade para ser mais aceito, não fazer vergonha, receber parabéns por ser decente e conseguir sobreviver sem um arranhão. É todo homem vigiando a voz, o jeito de sentar, os quadris, as munhecas, seus e alheios. É o gay feminino empurrado para longe para não queimar o filme. É o orgulho hétero tendo um concorrente ainda mais danoso: o orgulho de parecer hétero.
“Viado”, “bicha”, “baitola” carregam um ranço inegável. Reciclar requer esforço e consciência de que continuarão ferindo em certas ocasiões: uma torcida inteira cantando como chacota, por exemplo. Mas se apropriar da fala opressora e torná-la sua é uma estratégia de luta bem interessante. Esvaziar o discurso do significado antigo é produtivo, ainda que demorado. O impacto da fala ainda machucará, ainda é contexto. “Todo gay que eu conheço é…” Mudou muito?
“Seu viado!”, sem dúvidas, ainda assusta. Levar pela cara ainda arde. A inhaca está longe de sair, de não incomodar, de fazer de conta que inexiste.
Mas “gay” também foi uma palavra usada para oprimir. “He is a gay guy”, desdenhavam. O que a militância dos EUA fez? Trouxe a palavra para si. Desmontou-a de tal modo que hoje dá nome à comunidade por lá. Aconteceu o mesmo com “queer”. É garantia de limpeza para “viado”? Não. Nem todo o Vanish dos supermercados dá certeza de que dará certo.
Talvez nem seja indicado lavar demais. O excesso de desinfetantes na higienização, tantas vezes, sufoca. Um cheirinho de desautorizado, subversivo, provocador e desobediente à lógica heteronormativa pode caber bem a “viado”, “sapatão”, “bicha”, “saboeira”, etc . Eu, pelo menos, não pretendo, nem quero, ser um Bebê Johnson de tão limpinho.