Aquele Zé em seu armário fumê

Zé é homossexual. Os amigos até sabem, os colegas de trabalho também, a família idem. Zé sabe que sabem dele. Mas Zé, ainda assim, fala pouco de si. Fala quase nada de seus romances. Fala nada de suas noitadas. Nada, nadinha mesmo, de suas transas. Zé só ouve. Ouve seus amigos comentarem de esposas, namoradas, transas. Zé não se faz de hétero. Zé crê ter saído do armário. Não saiu.

Viver em um armário fumê é rotineiro para Zé. Acostumou-se. Considera seu habitat natural, lugar ideal. Não alcança que ele criou porque foi induzido a criar. Foi levado a crer que homossexualidade é assunto proibido. Que ele é assunto errado. Que precisa ser oculto. Que é necessário não se expor. Que ele é ser constrangedor. Que para ser aceito, ele tem que usar véu.

Jura não estar no armário esse tal de Zé. Jura que é bem resolvido. Zé se define como discreto. Zé apela para um despiste usual: atribuir seu silêncio à escolha por privacidade.

Zé se auto-oprime e nem percebe. Se percebe, se engana. Zé prefere manter tudo como está, porque como está vai indo, apesar da vontade de se abrir, apesar de ouvir piadinhas e engoli-las sem se manifestar, apesar daquela inveja de ver o retrato de um abraço de casa na mesa do colega de trabalho ao lado, apesar de ouvir em alto e bom som o convite da amiga que vai dar uma festa e lhe manda uma indireta para que leve seu amor, apesar de tantos pesares cotidianos.

Quando alguém não fala sobre sua homossexualidade ou bissexualidade e coloca tal decisão na conta da privacidade, esse alguém é como Zé. Desonesto consigo. Não há como culpar esse alguém por completo. Esses Zés ou Marias vivem em um universo que lhes diz desde criança o que são relacionamentos corretos, naturais e apresentáveis: os entre homem e mulher. E o que são relacionamentos errados, abomináveis, no mínimo suportáveis desde que secretos, comentados aos sussurros: os entre iguais.

Se fosse por privacidade, como Zé insiste, por que casais héteros divulgam tanto, postam tantas fotos, revelam-se tanto? Porque heterossexualidade flui sem barragens. Meninos e meninas héteros não precisam se envergonhar de confessar por qual ator ou atriz sentem atração. Não precisam temer em revelar a papai e mamãe sobre quem são. Não precisam averiguar o entorno para saber se podem andar de mãos dadas na rua com o primeiro amor. Não precisam preparar terreno para dar a entender no escritório sua orientação sexual. Heterossexualidade escorre.

Homossexualidade, bissexualidade e transexualidade enfrentam toda uma pista de obstáculos. De abandono a surras. De incriminação a assassinato. De meia aceitação a cobrança de discrição. De discrição a crítica severa por levantar bandeira do arco-íris.

Zé não é igual a Tião que vive sua sexualidade sem problemas, vai às festas da empresa com o namorado, já enviou os convites do casamento para o fim do ano e posta fotos na boite cercado de drags, drinks e lacres. Duvido que Tião não tenha passado por opressões semelhantes a de Zé. Mas a vida não é exatamente idêntica para todo mundo, nem todo mundo é igual em personalidade e capacidade de superação. E Tião pode ter sido um Zé ou, quem sabe, um Zé em um armário de chumbo. Quem nunca debaixo desse rolo heterocompressor?

Zé não é o problema. Zé a vítima. Zé é o que o ator hollywoodiano Dan Amboyer foi. “Sendo um ator jovem nessa indústria, sempre fui advertido para me manter quieto. Foi difícil viver com isso. Mas nunca interpretei um personagem gay e eu não queria ficar limitado por uma percepção estranha.” Dan saiu do seu armário fumê para se casar com Erick P. Berger diante de amigos e imprensa. Tornou-se insuportável. Quebrou o vidro e foi respirar oxigênio.

“Existem outros atores por aí que apenas mantém isso como um aspecto não falado de suas vidas e nunca discutem em público”, completou Dan. Adivinha por quê? Medo. Falta-lhes coragem. No entanto, a covardia não é gratuita. É adestrada. Até um leão teme o chicote do domador. Sabe que fere, sabe que tem que obedecer.

Se topar com um Zé, o que é bem fácil, ajude-o. Vá com calma, dê coragem em conta-gotas, ganhe a confiança dele, incentive-o. Mas não seja a inquisição. Seja a revolução.

 

**Miguel Rios é jornalista, recifense, militante LGBT e filho de Oxalá

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“Abastece o avião”

*Por Maurício Targino

Aqueles que mandaram abastecer o avião são um retrato fidedigno de um país chamado Brasil

Depois de meses de comoção, Força Chape pra lá, Vamos Chape pra cá, finalmente um pequeno grupo mostrou um comportamento “digno” (que se frisem as aspas) do que é o verdadeiro brasileiro contemporâneo.

Sim, é da pequena parte da torcida do Criciúma que cantou “Ão, ão, ão, abastece o avião” em “homenagem” (não deixem de frisar às aspas) à Chapecoense, durante partida entre as duas equipes pelo campeonato catarinense.

É hora de esquecer todo aquele carinho e empatia diante da tragédia que abalou o mundo naquela madrugada no final de novembro de 2016. Respeitar a dor não é coisa de brasileiro. Usá-la como “arma” para tripudiar alguém – como um rival futebolístico, por exemplo – tem mais a ver com esse Brasil que, nos tempos de Ary Barroso, cantava e era feliz.

Já foi diferente. Quando o árbitro – frise bem, ÁRBITRO – Dulcídio Wanderley Boschilia apitou uma final de Campeonato Paulista menos de 20 dias após sofrer um acidente de carro no qual a esposa morreu, foi aplaudido no estádio pelas torcidas de São Paulo e Corinthians no Morumbi.

Menos de uma década depois, parte da torcida do Flamengo cantou “Ó vascaíno, por que estás tão triste, mas o que foi que aconteceu? Foi o Dener que bateu o carro, se enforcou no cinto e depois morreu” nas arquibancadas de outro finado, o Maracanã. Daí adiante, foi ladeira abaixo.

Mas voltemos a Santa Catarina, onde começou nosso texto. Antes da “zoação” (aspas frisadas, por gentileza) chegar à arquibancada, a “bravata” já tinha começado com o vice-presidente do Marcílio Dias soltou a pérola de que o avião do seu time não precisava cair para que o clube se tornasse uma potência.

Ou seja, mais que uma declaração infeliz, o “estamos vivendo nossa tragédia particular, que é o rebaixamento” dito por um dirigente do Internacional poucos dias após o acidente, foi um prenúncio.

Em terra de Hucks, Gentillis, Sheherazades, Bolsonaros e afins, fica difícil entender como zombar do sofrimento alheio ainda causa surpresa ou indignação para alguns.

 

*Maurício Targino é jornalista, faz parte da bancada do Baião de Dois, na Central3, e assina a coluna Tarja Preta

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